Por vezes, até dou comigo a pensar que vos incomodo com estas minhas crónicas de algibeira, tecidas em prosa insalubre e que pouco ou nada vos dirão. São, porém, as memórias que guardo do nosso tempo. E atrevo-me a partilhar convosco mais esta:
Já éramos poucos, no ano número cinco de Aldeia Nova. Penso que os recordo a todos: Para além de mim, o Fernando Vaz, o Arnaldo, o Rufino, O Vitorino, o Domingos e o Igreja. Não sei se o Lino ainda começou o ano connosco!... Se faltar algum, o Fernando corrige. As aulas eram no último compartimento à direita, ao fundo do corredor, no sentido oposto à capela. O mobiliário era composto por duas ou três mesas compridas, bancos corridos de igual tamanho, a secretária do magister e um móvel-vitrina que servia de laboratório. O espólio do laboratório seria parco em espécies, mas farto em frascos, onde até descobrimos um produto que, atirado ao poço da quinta, reagia explosivamente. Para além de tudo isto, tinha também um metrónomo que, dando-se-lhe corda, aguentava uns bons minutos no seu tic-tac compassado. A sala era de dimensões reduzidas e tinha uma janela que dava para a zona da adega e para uma figueira a que quase se lhe chegava com o braço. Os nossos mestres eram o Pe. Vicente na física, o Pe. Xico (Tomate) a português, inglês suponho que era o Pe. Legault, Matemática o Pe. Domingos, já não me ocorrem os outros e a latim era o Santo Pe. Clemente Maria de Oliveira, falecido à volta de uma dúzia de anos. Tomei conhecimento da sua morte pela revista Visão, que dela dava notícia por ele ter sido o tradutor dos Lusíadas para latim. Acreditai que li a notícia com emoção, muita saudade e respeito pela sua memória.
Quando dávamos conta que o Pe. Oliveira saía do seu quarto para vir dar a aula, dava-se corda ao metrónomo. Entre a complacência e a irritação lá perguntava ele a razão daquele barulho. De cada um de nós ou de todos em simultâneo, ouvia a mais disparatada justificação. Tudo servia de pretexto, para fazer das aulas do Pe. Oliveira uma sessão de boa disposição, a que ele não achava graça nenhuma. Um de nós, já não interessa quem, braços cruzados sobre a mesa, um raro silêncio sepulcral e uma bola de ping-pong escondida na mão fechada. Bastava soltá-la sem tirar a mão da mesa e ouvia-se o barulho trrrr…trrrr...trrrr –Mas o que é isto? –questionava o mestre. –São os xarréus, -respondia o transmontano de Franco, a quem houvemos de avivar a memória no último encontro de Aldeia Nova.
Diz-me a experiência, que os textos longos se tornam fastidiosos. Fico-me por aqui hoje, mas prometo voltar ás aulas do Pe. Oliveira, para quem todos éramos ratos cegos e fedelhos de calça rachada.
Nelson
7 comentários:
Meu Caro Nelson,
Então o fim do nosso Blog não é «criar laços, recordando ontem»? Se esse é o sentimento que nos anima, só temos que agradecer-te por teres trazido ao Blog factos que se se reportam à nossa vivência de Aldeia Nova!... E já lá vão uns anos!... Pela parte que me toca, digo que o simples facto de interromper, de quando em quando, as rotinas do meu dia a dia com essas vivências, é terapia bastante para me rir, mesmo que esteja sozinho e, consequentemente,
ficar mais bem disposto!... Estimulo-te, pois, a trazer ao Blog todos os factos que a tua boa memória registe dos tempos de Aldeia Nova, contribuindo assim para momentos de boa disposição daqueles que foram actores ou simples espectadores dos mesmos.
E deixem-se de considerações dispiciendas ou pseudo intelectuais
aqueles que parece quererem apagar ou renegar o passado...Como em qualquer outro percurso da nossa vida aconteceram coisas boas e coisas menos boas. O que importa/releva é que o saldo final
regista quase 100% em coisas boas...Cofesso que não retinha com o pormenor por ti descrito a relação que tínhamos com os nossos Mestres. Temos, no entanto, todos presente que essa relação se caracterizava por um misto de reverência e irreverência .
Que o diga o Alexandrino que se inspira nessas vivências para encantar os netos com «contos velhinhos» de Aldeia Nova...
Recordo-me bem dos Pe,s Oliveira,António(Tomate..),Vicente e Domingos. Já em Lisboa, a frequentar o 1º ano de Direito, fui visitar o Pe Olivera a uma Quinta(Queluz) para formalmente lhe agradecer os ensinamentos de Latim que dele recebi, os quais, com facilidade, me permitiram o acesso à Faculdade. Abraçou-me ternamente e desejou-me felicidades na vida... Os seus olhos sorriam de satisfação... Foi um homem bom que, com reconhecimento, recordarei para sempre. O Pe Vicente celebrou a missa do meu casamento e presidiu à respectiva cerimónia na Igreja de Fátima, em Lisboa.
Também encontrei, em Lisboa, na zona do Rossio, uma ou duas vezes, nos de 1963/1964, o Pe António. Fomos beber um café e falar um pouco de Aldeia Nova . Ainda que um grande viciado em tabaco,recordo-o como um bom professor de Português,... Estas memórias perdurarão para sempre se registadas no Blog...E há muito mais...Ainda ninguém escreveu sobre as preciosas «musas» que fizeram brotar o afecto de muitos e o perder(?) das suas vocações...
Um abraço para todos
J. Celestino
Amigo nelson,
Leio e releio sempre com o mesmo prezer as tuas memórias, que são também nossas! Os nomes de vez em quando falham-me, mas as situações ficaram bem gravadas. Um dia com o Pe Oliveira a balbúrdia foi tal, as mesas abanavam e avançavam de tal modo que abanaram também a mesa do professor, fazendo cair seu relógio de bolso, que se partiu!...Penso que também os nossos corações se partiram (de duros não tinhamos nada) ao ver que o Pe Oliveira reagiu como uma criança, quase com as lágrimas nos olhos e disse com voz doce, é uma recordação do meu pai! Ainda hoje me arrepio ao pensar nesta cena...Caiu na sala um silêncio de morte onde pairava o remorço. O Pe Oliveira recomeçou a aula, e de vez em quando levantava a cabeça e perguntava: compreendem, posso continuar? Nós acenavamos que sim, com ar contrito. Ao fim de dez minutos ele parou a aula, fixou-nos atentamente e disse: que se passa vós estais doentes?! Nesse dia, na verdade, ninguém tinha vontade de brincadeira, mas ...fomos obrigados a recomeçar, e ele voltou a sorrir. Apesar de nossas atitudes durante as aulas, sempre tivèmos pelo Pe Oliveira e por sua erudição, respeito e admiração!
Diz-se por aqui: "Quando a esmola é muita, o santo desconfia!..." O Bom Pe. Oliveirinha, estranhou o nosso silêncio, o nosso diferente comportamento! Recordo perfeitamente esse episódio e ainda estou a ver o relógio, já com a caixa escurecida. Era um homem meticuloso, que até recortava num papel a dimensão da coroa que lhe haviamos de fazer, quando éramos barbeiros, e um de nós era chamado ao seu quarto para lhe aparar o cabelo. Lembras-te?
Ai as musas, Celestino!... Por exemplo aquela loira, que morava logo a seguir à "velha casa" e que o pai era uma espécie de carpinteiro avençado do seminário?!... Se bem me lembro, dava pelo nome de uma variedade de tangerinas, mas nos conciliábulos secretos era referenciada pelo nome de código de "Gata Parda". Acho que todos os pinga-amor tiveram por ela uma paixão assolapada e a pobre moça sem nada saber!... Vá, caro Celestino, é tempo de ires deixando também as tuas memórias!...
Abraços para todos.
Meu caro Nelson,
Estamos mesmo a viver o dia de ontem... ainda que uns bons anos depois...Esta é a virtualidade do Blog...Lembro-me bem dessa «felina» que, como tu dizes,também dava pelo nome de uma varidade de tangerinas...ou de frutas várias, diria eu... É verdade, a pobre «bichana», talvez sem o saber,parece que ainda arranhou o coração de alguns «tarecos» menos serenos do nosso grupo... Mas havia outras «felinas» que não passavam despercebidas aos mais fogosos «gatões».....A Preciosa e a Júlia... Foram vivências «fantásticas», não foram?
Apreciadas à luz dos circunsticialismos de tempo, modo e lugar em que ocorreram ( segundo os métodos jurídicos a que hoje recorro...)explicam a pureza do nosso despertar para a vida... E se hoje recordamos, sorrindo, essas quase infantis vivências é porque elas nunca foram apagadas do nosso mundo afectivo...
E sem afecto, a vida não faz sentido...
Pós Páscoa, vou ver se alinho algumas memórias...
Um forte abraço para todos, em especial para aqueles que já em Aldeia Nova/Fátima não escondiam
a sua vulnerabilidade pelas «gatas pardas,brancas, pretas ou de qualquer cor»!...
J. Celestino
Uma variedade muita apreciada de tangerinas, são as "clementinas", não é verdade J. Celestino? Particularmente, suculentas, doces e preciosas!... Eu sei que tu sabias!
Bem, bem, isto está bonito!... Então a generosa benfeitora doou aquela casa à Ordem, num descampado, longe de tudo e sobretudo do bulício da carne, para criar almas puras ao serviço de Deus, sem comboios por perto nem luz eléctrica e nem assim?... Claro, com os “livros” que lá fui encontrar daí a uns anos, vejo agora claramente que não poderia ter outro destino diferente do vosso, suas mentes…!
O que mais impressiona, ainda hoje, é que essas musas, eram eternas… inspiraram várias gerações. Por vossa culpa teriam ficado para tias, imagino eu.
Ferraz Faria, Manuel
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