NO ANIVERSÁRIO DO INÍCIO DA GUERRA DO IRAQUE
No 4º aniversário do início da guerra do Iraque, parece-me do maior interesse ouvir a voz dos nossos mestres sobre o tema.
A reflexão do frei Bento Domingues tem toda a actualidade, mesmo tendo sido publicada há seis meses.
A. Alexandrino
A MENTIRA E O ESTADO DO MUNDO
BENTO DOMINGUES, O.P. ................................Público, Lisboa, 14.10.2006
1. Embora de forma muito linear, pode dizer-se que a mentira consiste em afirmar algo, que sabemos que é falso, com a intenção de enganar, confundir ou manipular. Mas há mentiras e mentiras. Não existe só uma hierarquia de verdades, como reconheceu, até para as verdades da fé cristã, o Vaticano II. Também há hierarquia nas mentiras. As que dizem respeito à paz e à guerra são as mais perigosas. Podem envenenar a própria concepção da dignidade humana.
Desde Março de 2003, segundo um estudo publicado pela prestigiosa revista médica inglesa, The Lancet, já morreram mais de 650 mil civis devido à violência desencadeada no Iraque. Como observou, há dias, Luís Bassets, em el país, estes números equivalem a quatro "hiroshimas". George W. Bush tentou desvalorizar o relatório, mas pertence-lhe, directa e indirectamente, a responsabilidade desta interminável matança.
Sabia-se que havia tensões entre a Administração Bush e as agências de espionagem. Agora, parece que explodiram. Bush teima em repetir que os EUA estão a ganhar a guerra contra o terrorismo. No entanto, 16 organismos de espionagem concluíram que a guerra no Iraque, longe de fazer recuar o terrorismo, serviu para o exacerbar e propagar. O radicalismo islâmico difundiu-se por toda a parte. Para Bruce Hoffman, catedrático de estudos de segurança da Universidade Georgetown, a conclusão geral que brota dos documentos é esta: «não dispomos de balas suficientes para todos os inimigos que criamos».
No próximo dia 7 de Novembro, haverá eleições intercalares. Não se sabe ainda quais serão as consequências, no eleitorado, das novas informações que começam a saltar para o debate público. Já se conhece a capacidade da Administração Bush para fazer passar a mentira por verdade. Os cínicos dirão que, no mundo em que vivemos, já não faz sentido ter preocupações desse género. Há dois mil anos, Pilatos era da mesma opinião: ao Império não interessa a verdade, mas a manutenção e a expansão do seu poder.
2. Ian Buruma, professor de Democracia, Direitos Humanos e Jornalismo, no comentário a um livro recente – The greatest story ever sold ("A maior história alguma vez vendida") – de Frank Rich, toca directamente nessa questão. A realidade já não interessa para a forma como o mundo funciona hoje. O império cria a sua própria realidade. E o mais inquietante, insiste Buruma, é que esta arrogância vai no mesmo sentido de muitos outros fenómenos: «a destruição pós-moderna da verdade objectiva, os bloguistas e os fala-baratos das «talk radios» (rádios de opinião), que apontam o caminho aos meios de comunicação, as empresas jornalistas compradas por grupos de entretenimento, os meios cada vez mais numerosos e aperfeiçoados de manipulação da realidade» (1).
O tema da obra de Frank Rich é, precisamente, sobre a criação de uma realidade falsificada. Não é, em primeiro lugar, uma obra de análise política ou geopolítica. Não se detém sobre os argumentos a favor ou contra a deposição de Saddam Hussein, sobre as consequências da intervenção militar dos EUA no Médio Oriente, nem sobre a ameaça do extremismo islamita. Mas sabe que George W. Bush e o seu conselheiro político jogaram com os medos e o patriotismo para ganhar as eleições. O vice-presidente, Dick Cheney e os seus apoiantes neo-conservadores, eram partidários de uma guerra no Iraque muito antes dos atentados de 11 de Setembro de 2001, a fim de mudar o xadrez do Médio Oriente. Se acreditavam numa redistribuição das cartas, nessa zona, para lutar contra o terrorismo, enganaram-se redondamente.
A documentada tese de Frank Rich é muito clara: a Administração Bush mentiu sobre as causas da guerra, sobre a forma como foi conduzida e sobre as suas terríveis consequências, arranjando maneira de fazer com que a informação e os factos se ajustassem à decisão de entrar em guerra.
No final de 2001, Dick Cheney assegurou que a ligação entre o Iraque e Mohamed Atta, um dos terroristas do 11 de Setembro, era absolutamente verídica. No Verão de 2002, declarou que Saddam Hussein persistia em querer dotar-se de armas nucleares e não havia qualquer dúvida de que possuía armas de destruição maciça. Referiu-se, ainda, a tubos de alumínio que Saddam Hussein tencionava utilizar, para enriquecer urânio, a fim de fabricar uma arma nuclear. Os iraquianos, disse ele, tinham obtido esse urânio no Níger. Em Outubro de 2002, o Presidente Bush declarou: «Perante a escalada do perigo, não podemos permitir-nos esperar pela prova definitiva, que poderá apresentar-se sob a forma de um cogumelo atómico».
Hoje, sabemos que não havia nada de verdade nessas afirmações. Serviram, no entanto, para justificar a entrada na guerra.
Segundo Rich, os jornais mais sérios publicaram as afirmações da Casa Branca na primeira página, relegando as interrogações para a última. Não faltará quem diga que mexer nessa pouca vergonha serve, apenas, para desprestigiar os jornais mais reputados, mais sérios, do mundo anglófono e, finalmente, para oferecer munições aos inimigos dos EUA e fortalecer o anti-americanismo.
É precisamente o contrário. É urgente obrigar os meios de comunicação e, em particular, os jornais de grande prestígio a verem-se ao espelho das mentiras que são capazes de difundir e apoiar.
Note-se que é um antigo crítico de teatro, Frank Rich, que está a analisar a montagem dessa encenação criminosa, «a maior história alguma vez vendida». Conhecido o seu desfecho trágico, custa acreditar que os EUA deixem a Administração Bush continuar com a loucura do combate ao "eixo do mal" formado, não só pelo Iraque, mas também pelo Irão e pela Coreia do Norte. É por isso que Pyongyang se atreveu a exercitar a sua própria loucura. O Irão também continua a escrever, de forma bastante surrealista, a sua peça teatral. Este país não acredita que os EUA queiram reeditar o que está a acontecer no Iraque.
Diante disto, que fazer? Acabar com a ideia de que as mentiras do terrorismo podem ser vencidas com as paranóias anti-terroristas baseadas na mentira.
João Paulo II opôs-se, com todos os meios ao seu alcance, à invasão do Iraque. Para ele, como já tinha escrito numa mensagem em 1980, «a verdade é a força da paz». A mentira é a força da guerra.
(1) Ian Buruma, Intoxicação, maquilhagem e encenação. A realidade ditada pela Casa Branca, in "Courrier Internacional", nº 79 (6-12 de Outubro de 2006).
No 4º aniversário do início da guerra do Iraque, parece-me do maior interesse ouvir a voz dos nossos mestres sobre o tema.
A reflexão do frei Bento Domingues tem toda a actualidade, mesmo tendo sido publicada há seis meses.
A. Alexandrino
A MENTIRA E O ESTADO DO MUNDO
BENTO DOMINGUES, O.P. ................................Público, Lisboa, 14.10.2006
1. Embora de forma muito linear, pode dizer-se que a mentira consiste em afirmar algo, que sabemos que é falso, com a intenção de enganar, confundir ou manipular. Mas há mentiras e mentiras. Não existe só uma hierarquia de verdades, como reconheceu, até para as verdades da fé cristã, o Vaticano II. Também há hierarquia nas mentiras. As que dizem respeito à paz e à guerra são as mais perigosas. Podem envenenar a própria concepção da dignidade humana.
Desde Março de 2003, segundo um estudo publicado pela prestigiosa revista médica inglesa, The Lancet, já morreram mais de 650 mil civis devido à violência desencadeada no Iraque. Como observou, há dias, Luís Bassets, em el país, estes números equivalem a quatro "hiroshimas". George W. Bush tentou desvalorizar o relatório, mas pertence-lhe, directa e indirectamente, a responsabilidade desta interminável matança.
Sabia-se que havia tensões entre a Administração Bush e as agências de espionagem. Agora, parece que explodiram. Bush teima em repetir que os EUA estão a ganhar a guerra contra o terrorismo. No entanto, 16 organismos de espionagem concluíram que a guerra no Iraque, longe de fazer recuar o terrorismo, serviu para o exacerbar e propagar. O radicalismo islâmico difundiu-se por toda a parte. Para Bruce Hoffman, catedrático de estudos de segurança da Universidade Georgetown, a conclusão geral que brota dos documentos é esta: «não dispomos de balas suficientes para todos os inimigos que criamos».
No próximo dia 7 de Novembro, haverá eleições intercalares. Não se sabe ainda quais serão as consequências, no eleitorado, das novas informações que começam a saltar para o debate público. Já se conhece a capacidade da Administração Bush para fazer passar a mentira por verdade. Os cínicos dirão que, no mundo em que vivemos, já não faz sentido ter preocupações desse género. Há dois mil anos, Pilatos era da mesma opinião: ao Império não interessa a verdade, mas a manutenção e a expansão do seu poder.
2. Ian Buruma, professor de Democracia, Direitos Humanos e Jornalismo, no comentário a um livro recente – The greatest story ever sold ("A maior história alguma vez vendida") – de Frank Rich, toca directamente nessa questão. A realidade já não interessa para a forma como o mundo funciona hoje. O império cria a sua própria realidade. E o mais inquietante, insiste Buruma, é que esta arrogância vai no mesmo sentido de muitos outros fenómenos: «a destruição pós-moderna da verdade objectiva, os bloguistas e os fala-baratos das «talk radios» (rádios de opinião), que apontam o caminho aos meios de comunicação, as empresas jornalistas compradas por grupos de entretenimento, os meios cada vez mais numerosos e aperfeiçoados de manipulação da realidade» (1).
O tema da obra de Frank Rich é, precisamente, sobre a criação de uma realidade falsificada. Não é, em primeiro lugar, uma obra de análise política ou geopolítica. Não se detém sobre os argumentos a favor ou contra a deposição de Saddam Hussein, sobre as consequências da intervenção militar dos EUA no Médio Oriente, nem sobre a ameaça do extremismo islamita. Mas sabe que George W. Bush e o seu conselheiro político jogaram com os medos e o patriotismo para ganhar as eleições. O vice-presidente, Dick Cheney e os seus apoiantes neo-conservadores, eram partidários de uma guerra no Iraque muito antes dos atentados de 11 de Setembro de 2001, a fim de mudar o xadrez do Médio Oriente. Se acreditavam numa redistribuição das cartas, nessa zona, para lutar contra o terrorismo, enganaram-se redondamente.
A documentada tese de Frank Rich é muito clara: a Administração Bush mentiu sobre as causas da guerra, sobre a forma como foi conduzida e sobre as suas terríveis consequências, arranjando maneira de fazer com que a informação e os factos se ajustassem à decisão de entrar em guerra.
No final de 2001, Dick Cheney assegurou que a ligação entre o Iraque e Mohamed Atta, um dos terroristas do 11 de Setembro, era absolutamente verídica. No Verão de 2002, declarou que Saddam Hussein persistia em querer dotar-se de armas nucleares e não havia qualquer dúvida de que possuía armas de destruição maciça. Referiu-se, ainda, a tubos de alumínio que Saddam Hussein tencionava utilizar, para enriquecer urânio, a fim de fabricar uma arma nuclear. Os iraquianos, disse ele, tinham obtido esse urânio no Níger. Em Outubro de 2002, o Presidente Bush declarou: «Perante a escalada do perigo, não podemos permitir-nos esperar pela prova definitiva, que poderá apresentar-se sob a forma de um cogumelo atómico».
Hoje, sabemos que não havia nada de verdade nessas afirmações. Serviram, no entanto, para justificar a entrada na guerra.
Segundo Rich, os jornais mais sérios publicaram as afirmações da Casa Branca na primeira página, relegando as interrogações para a última. Não faltará quem diga que mexer nessa pouca vergonha serve, apenas, para desprestigiar os jornais mais reputados, mais sérios, do mundo anglófono e, finalmente, para oferecer munições aos inimigos dos EUA e fortalecer o anti-americanismo.
É precisamente o contrário. É urgente obrigar os meios de comunicação e, em particular, os jornais de grande prestígio a verem-se ao espelho das mentiras que são capazes de difundir e apoiar.
Note-se que é um antigo crítico de teatro, Frank Rich, que está a analisar a montagem dessa encenação criminosa, «a maior história alguma vez vendida». Conhecido o seu desfecho trágico, custa acreditar que os EUA deixem a Administração Bush continuar com a loucura do combate ao "eixo do mal" formado, não só pelo Iraque, mas também pelo Irão e pela Coreia do Norte. É por isso que Pyongyang se atreveu a exercitar a sua própria loucura. O Irão também continua a escrever, de forma bastante surrealista, a sua peça teatral. Este país não acredita que os EUA queiram reeditar o que está a acontecer no Iraque.
Diante disto, que fazer? Acabar com a ideia de que as mentiras do terrorismo podem ser vencidas com as paranóias anti-terroristas baseadas na mentira.
João Paulo II opôs-se, com todos os meios ao seu alcance, à invasão do Iraque. Para ele, como já tinha escrito numa mensagem em 1980, «a verdade é a força da paz». A mentira é a força da guerra.
(1) Ian Buruma, Intoxicação, maquilhagem e encenação. A realidade ditada pela Casa Branca, in "Courrier Internacional", nº 79 (6-12 de Outubro de 2006).
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