Nunca vesti o hábito dos dominicanos, a não ser aquele de popeline, assim um tipo pano de lençol, quando era escalado para ajudar à missa. Já vos disse, e alguns de vós recordar-se-ão que, por causa da física e de um tal frei Vicente, fiquei com o pé no degrau que dava acesso a Fátima. Por isso, as minhas memórias desses tempos de menino, são todas de Aldeia Nova, que depois visitei muitas vezes, até para mostrar aos meus filhos o sítio onde adquiri os primeiros saberes. Recordo ainda os primeiros dias, o primeiro dos primeiros dias, quando fui encaminhado para aquele dormitório, que era anexo, e que estava reservado aos meninos caloiros, imberbes e que a cada canto carpiam lágrimas de saudade e adaptação. Só ali recolhíamos noite feita, com um petromax a iluminar e um mestre a acompanhar. E é precisamente para recordar a figura tenebrosa de um perfeito de nacionalidade espanhola, cujo nome eu ainda recordo e que, se a memória me não atraiçoa era Avelino Aboim Gonzalez de Tiembra. Catalão, andaluz, basco ou galego, isso já não sei, mas era o “espanhol”. Tinha umas práticas, que punham em pânico todos aqueles que habitávamos aquele dormitório. É que o homem atacava os meninos na cama, a pretexto de fazer cócegas e sei lá o que mais. Tinha as suas presas seleccionadas e ninguém gostava da brincadeira. Nunca fui atacado pelo “espanhol”, mas que se apoderava de mim e dos outros, um tremendo pânico sempre que ele aparecia, isso tenho presente. Hoje, o castelhano seria um pedófilo e mais nada!... Mas houve uma outra situação que eu guardei, talvez fruto do medo que nutria por tal personagem. Se bem vos recordais, ele era músico, leccionava inglês, dava ginástica e não sei que mais.
Não tenho nada contra os espanhóis, nem mesmo contra os Filipes, pois se a sua ocupação tivesse vingado, hoje teríamos, o IVA e a gasolina mais baratos e um salário mínimo mais elevado. Mas o “espanhol” um dia teve uma saída de que eu, menino que ao tempo (mais que hoje), nutria um profundo respeito pela soberania nacional, não gostei. Era o fruto da história, das pelejas com os castelhanos e das coças que sempre lhes infligimos. Estávamos naquela formatura incómoda do fim de um recreio, em frente à “sala de estudo de baixo”, mais ou menos desalinhados e possuídos daquela irrequietude tão própria da nossa idade. À nossa frente, apostava-se o “espanhol” com cara de poucos amigos e os olhos a faiscar raiva contra os meninos irrequietos e inofensivos que nós éramos. Bate as palmas e vocifera no seu portunhol: -“Alinhados!... Cheguem para trás!... Se Portugal es pequeño, será grande Espanha!...”
Não gostei da arremetida do Avelino, nem tereis gostado todos vós, que por certo já não recordareis e episódio. Ele atingiu a minha nacionalíssima dignidade e feriu o meu portuguesíssimo orgulho. Trouxe-o hoje aqui, como espero trazer mais. Eles marcaram um tempo, e uma vida… A nossa vida.
Nelson Veiga
3 comentários:
Meu Caro Nelson,
Bem sei que andavam por lá uns «apalpa palhinhas.....», como se diz em linguagem académica...
Que fazer? Dar-lhe uns pontapés, como eu um dia fiz...Foi remédio santo...
Que Deus não os castigue muito..., mas os aqueça/purifique durante uns tempos no purgatório... para que não vão arranjar sarilhos no Céu...
Um forte abraço
J. Celestino
Logo que tomei conhecimento deste texto do Nelson tive vontade de intervir, mas preferí reflectir durante alguns dias. Penso que nenhum de nós foi traumatizado com essas agressões, (eu só soportei tentativas) que alguns, representando a autoridade, tentavam infligir-nos!... Sempre nos sentimos protegidos e a nossa palavra nunca foi posta em dúvida, mesmo se não era fácil libertá-la. Não me recordo do espanhol, mas recordo-me de outros que não citarei, visto que a caça às bruxas já há muito tempo que fechou! Devemos olhar para essa época com lucidez, sem condescendência, condenando todos esses actos sem reserva, mas como muito bem diz o Celestino, deixemos a Deus a liberdade de purificar seus autores. Dos nossos colegas nenhum precisa de ser purificado, pois nenhum foi agressor mas agredido, nenhum foi culpado mas vitima. Nenhum deve corar ao relembrar esses atentados à sua integridade, mas que a vergonha caia sobre os manipuladores. O mais importante foi o convívio com os colegas, sempre correcto e sem sombras. Tudo era trasparente, tudo era amizade sincéra...e ainda continúa. Um abraço do Fernando.
Nem eu, com a minha crónica, pretendi iniciar caça ás bruxas. Como ali deixo dito, as minhas memórias são de Aldeia Nova, e umas são mais gratificantes que outras. Mas o espanhol era, para nós meninos, uma figura tenebrosa. Já não recordo os pontapés do Celestino!... Mas se foram bem direccionados, tanto melhor.
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