sábado, 24 de março de 2007

HISTÓRIAS PARA CONTAR AOS NETOS

- Avô, vou transformar-te em burro.
É a minha neta Vitória, que há três anos encanta a vida desta família, com a magia duma fada amorosa.
Quando ela encarna a personalidade da fada, nada escapa ao seu poder. Basta-lhe um chapéu em cone, polvilhado de estrelas e uma varinha, que para ser mágica também exige uma estrela.
- Plim! Avô, já és burro.
Assim, com esta simplicidade.
Sabes netinha, quando o avô era pequeno, assim um bocadinho maior do que tu, uns senhores com poderes mágicos, também transformaram o avô em burro.
O avô conta-te a história.
Corria o 2º ano (actual 6º), com toda a normalidade, sem sobressaltos, quando num dia de Maio sobreveio sobre o casarão de Aldeia Nova uma tempestade medonha, daquelas de assustar o próprio Adamastor. O chumbo passaria a prata no confronto com aquele céu carregado. A chuva desabava a pipos. O flash dos relâmpagos e o ribombar dos trovões assemelhavam-se à ira de Bush contra o senhor de Bagdad. O casarão tremia e vocês, ainda não tremem? O professor de Matemática (leigo) interrompeu a aula, e veio sentar-se num lugar vago da minha secretária. Estava lívido e com olhos baços. Debruçou-se sobre a mesa e pousou a cabeça sobre os braços, o tempo todo, enquanto durou a borrasca.
Na inocência e inconsciência dos meus doze anos, não atribui significado especialmente aterrador ao fenómeno. Na minha terra estes fenómenos nunca atingiam estas proporções, e bastava uma invocação a S. Bárbara, que a minha mãe recitava na perfeição, para nos sossegar. Portanto comportei-me naturalmente, como usual.
Terminada a borrasca, o Prof. (naquele tempo ainda não se chamava Stôr) enfrentou-me com ar de nenhuns amigos e vociferou.
– Você esteve este tempo todo a troçar de mim! Mas isto vai-lhe sair caro.
– Senhor professor – disse eu – de forma alguma. Porque havia eu de fazer isso? Naquele momento eu deixava de ser tratado como uma criança e passava a ser confrontado com a agressividade de um adulto face a outro do mesmo estatuto. Daí em diante todos os pretextos serviram para o dito Prof. me hostilizar. E no fim do ano arranjou maneira de me chumbar, numa disciplina que era o meu forte, de tal modo que nas horas de estudo em que não tinha qualquer motivação para estudar, dedicava-me a exercitar problemas de Matemática para melhor passar o tempo.
Quando se chumbava a uma única disciplina, fazia-se novo exame no início do próximo ano lectivo. Estudei imenso nessas férias, embora tivesse consciência de que sabia o suficiente para prosseguir para o ano imediato. Dispensei o explicador que os meus pais me ofereceram, o que significaria um sacrifício acrescido ao que já suportavam para me manter a estudar.
No ano seguinte, inexplicavelmente, o tal exame de repetição demorou imenso a sair. Assim, fui acompanhando as disciplinas do 3º ano, por indicação superior. Quando finalmente o exame surgiu, foi o próprio Director, que se encarregou de o orientar. Da prova escrita, tenho a consciência que fiz quase tudo bem, mas nunca soube de qualquer resultado. Na oral, com a presença de outro Professor, após responder correctamente às questões relativas à matéria do 2º ano, o Director achou por bem pôr-me questões do 3º ano sob pretexto de que eu tinha já frequentado algumas aulas. O próprio professor assistente se apressou a contestar o critério. Fui mandado sair enquanto ficaram a discutir o assunto. O veredicto veio inexoravelmente confirmar os meus piores receios. “O menino volta para o 2º ano”. Deixei o Nelson, o Vitorino e outros amigos, e juntei-me ao Celestino, ao Leopoldo, ao Filipe, ao Ginja e outros igualmente amigos.
- Avô, agora já não és burro.
- Plim! Já és avô outra vez.
Com este anjo de fada, a transformação demora apenas alguns minutos. Com os prestidigitadores de Aldeia Nova fui asno por muito mais tempo, até me reabilitar sem varinha mágica. A minha auto-confiança recompôs-se quando no 3º e 4º anos tive professores de matemática de nível superior: o P. Domingos e o P. Miguel.
Como teria sido a minha vida se não tivesse acontecido aquela trovoada?
Descrevo isto por piada ou talvez por catarse, mas sobretudo para relembrar os métodos de ensino de outros tempos. Não guardo qualquer rancor, como aliás demonstrei nas inúmeras vezes em que nos cruzamos depois disso.
O Director teve com certeza as suas razões. Eu era demasiado brincalhão e desestabilizador com a agravante de ser distraído. Dar uma lapada na cabeça dum colega num momento de recolhimento com um padre atrás de mim, ou acertar em cheio com um berlinde na cabeça dum colega que estava diante do quadro, não são próprias dum seminarista. Nesta última situação, esqueci-me que alguém me podia denunciar ao saudoso P. Oliveira, a troco de uma estampa de santinho. Então, os santinhos tinham mais cotação que os ídolos de futebol ou de cinema.
Eu compreendi, não sei se logo nessa altura, que para ter um percurso liso, naquela Instituição, não bastava ser bom aluno. A praxis tinha que acompanhar a gnosis ao contrário do frei Tomás, que não devia ser dominicano.
Foi o meu primeiro percalço no sonho duma carreira para bispo, mas fiquei mais calado, mais sisudo, mais tímido, numa palavra, mais seminarista.
Se comeres a papa toda, o avô conta-te outra história, um dia.
A. Alexandrino

5 comentários:

Anónimo disse...

Penso que todos vamos comer a papinha toda, para termos direito a outra história. Duvido que tenhas ensinado a pontuação ao Saramago, pois ele com duas frases faz uma página. Disseram-me, e acredito, que seguiste com ele cursos de contos e narrações...Ao abrir o blog deparei com a tua magía! És um verdadeiro mágico, pois consseguiste apagar (só por um momento) cincuenta anos da minha vida. Parece que era sempre no 2° ano que eles nos cortavam os voadoiros...Comigo foram mais simpáticos, pois foi logo em geografía e história, passando assim o verão tranquilo. Na verdade o comportamento contava mais que as notas e era sempre o Director que decidia e não os professores. Que o Pe Luís Cerdeira repouse em Paz. A prova que eles se enganaram completamente, está na carreira brilhantissíma que nós fizemos e ainda continuamos. Os nossos netos bem sabem que nós somos os mais fortes e os mais inteligentes do mundo! Não é isso que conta?! Um abraço do papy, Fernando.

Anónimo disse...

Tenho recuado a Aldeia Nova, quase só a expensas minhas. Hoje fui guiado por ti, fui contigo caminhando ao longo da estrada dos doze anos. Como é ter doze anos?...
Obrigado por este bocadinho. São estes nacos de memória que fazem rico este nosso espaço. Obrigado e continua, "até que a mão nos doa", como me dizias na tua mensagem. Por mim, tentarei fazer o mesmo

Anónimo disse...

Interessante história de um avô para o neto, Alexandrino.
Ainda bem que a vida ensinou a alguns de nós a deixarmos de ser burros. Olha lá, esse professor de Mat. chamar-se-ia Amândio? É que o prof. Amândio dava aulas na escola do Olival e vinha ensinar mat. a Aldeia Nova. Ele vive actualmente em Torres Novas e quando nos encontramos ainda damos dois dedos de conversa.
Um abraço.
Ed. Bento

Armando disse...

Descança Eduardo. Eu não pretendia de modo algum identificar a personagem. São àguas passadas que felizmente esqueci. Mas para que nenhum inocente seja inculpado, informo que não se trata do prof. Amândio, que me parece surgiu mais tarde.
A vantagem de contar estas histórias aos netos, é que as crianças não perguntam: quem era? foi castigado?
A minha neta conclui desta forma: "Vitória, Vitória , acabou-se a história. E agora vamos... dormir".
A. Alexandrino

Manuel FF disse...

Provavelmente, teria sido por isso que te escolheram para prefeito do Estudo de Baixo, quando eu era puto do 1º ano. Podias ter avisado que querias ser bispo e nós tínhamos-te facilitado a vidinha. Assim, não nos livramos de alguns croques na cabeça... mas fez-se justiça.
Chau, Alexandrino. Um abraço amigo.
Ferraz Faria, Manuel