Anda meio mundo a dar voltas aos registos mais remotos que os respectivos cérebros armazenaram no início da idade adulta, para trazer a primeiro plano das imagens da memória, a figura de um tal frei Imeldo, José Oliveira à civil. A dificuldade tem sido geral, pelo que a interrogação persiste, até haver alguém disponível a vasculhar os arquivos do convento de Fátima. Para não continuarmos nesta angústia, resolvi elaborar um retrato-robot, que nos pode ajudar nas investigações.
- Patena querida, podes descer, que já aqui está o táxi.
- Desço já, fofinho.
O Dr.Oliveira preserva a esposa do sol e dos olhares concupiscentes dos estranhos, porque a quer alva como a neve que só viu na televisão e livre da cobiça alheia.
Acomodam-se com dificuldade no banco traseiro, para conseguir fechar a porta do automóvel. Os amortecedores gemem debaixo dos cento e quinze quilos do “fofinho” e dos oitenta e cinco da sua “doçura”.
-Para a igreja de S. Domingos, por favor.
Todos os domingos, o programa repete-se, invariavelmente sob os mesmos horários:
Despertar às oito horas, logo seguido de alvorada ruidosa de “flatulências”;
Às 9:15 descer para apanhar o táxi, por forma a chegar à igreja às 9:45 a tempo de distribuir uma moedas pelos pedintes e ir cumprimentar o senhor prior antes da missa das 10:00. As ombreiras da porta daquela igreja, ampararam o corpo enfraquecido de Camões, que ali também estendeu a mão à Caridade, assim como a outras senhoras abastadas.
O casal colabora activamente na missa. Ele é o único que sabe dar as respostas em latim ao celebrante e acompanhar o gregoriano (competências adquiridas no convento de Fátima), enquanto os restantes assistentes bichanam padre-nossos e ave marias e outros seguem o evoluir das pombas junto ao tecto. Ele sente-se feliz com novas normas litúrgicas do papa Bento XVI, mas ainda espera mais do que a encíclica “Sacramentum Caritatis”. Isto é ele a falar.
A D. Patena colabora na recolha do ofertório, (fazendo cair alguns bancos à sua passagem). Arruma a estola e a sobrepeliz, cuida das flores, e tira as teias de aranha aos santos.
Ambos têm colaborações várias no apostolado da igreja. O Dr.Oliveira, com as bases adquiridas num curso de pintura por correspondência, tem contribuído para a recuperação da igreja muito danificada após o incêndio de 1958. Avivou as chamas do inferno, recolocou os cornos e o rabo ao demo, recuperou o facho do cão de S. Bomingos, pintou com bruch os olhos da Maria Madalena, reavivou-lhe as rosáceas da face e o vermelho dos lábios, para lhe restituir o ar sedutor, além de outros restauros.
No fim da missa, o Dr. Oliveira encarrega-se de contar o fruto da colecta e registá-lo no livro de contabilidade do clero, que só tem a coluna do haver. Cabe-lhe ainda proceder, no dia seguinte, ao depósito na conta bancária do prior, cumprindo assim o mandamento da Santa Madre Igreja: contribuir para a sustentação do clero.
Ás 11:00 em ponto, o casal de pombinhos, dirige-se à pastelaria Suiça, para a quebra de jejum.
- Bom dia, Sr. Doutor. Vai ser o costume, não é?
- Sim, António. Mas hoje, excepcionalmente, traga mais dois pastelinhos de nata.
De excepção em excepção, já vão na bonita conta de oito pastelinhos de nata cada um, acompanhados de galão claro, para ela e coca-cola para ele.
De regresso a casa, começam o almoço invariavelmente às 12:30. Deixemo-los agora em silêncio, para não perderem pitada do humor fino do Manuel Luís Goucha. Continuarão mastigando durante o telejornal, e mesmo às catorze horas, quando vão fazer a sesta, ainda vão retirando resíduos esquecidos nos intervalos dos dentes.
Após a sesta, tomarão o eléctrico, exactamente ás 16:00 horas, que os levará ao jardim botânico.
Mas enquanto ressonam ruidosamente, vou contar-lhes a razão porque o Dr. Oliveira nunca adquiriu carro, apesar de ter carta de condução desde a precoce idade dos quarenta e cinco anos.
Meticuloso como sempre, o Dr. Oliveira começou paulatinamente a estudar a aquisição do automóvel familiar, com oitenta e cinco cavalos, cinco velocidades, quatro rodas a rodar e uma suplente, cinco lugares para ocupantes e uma bagageira ampla. Da imagem da Nª Srª de Fátima para o “tablier” e do cãozinho de peluche, com a cabeça a abanar para enfeitar a chapeleira, encarregar-se-ia a D. Patena.
Começou por elaborar uma lista exaustiva, de todas as marcas de carros com aquelas características. Levou uma cópia para a escola onde lecciona e ficou com outra em casa. Sempre que ouvia contar a ocorrência de um acidente perguntava invariavelmente de que marca eram os carros envolvidos. Acto contínuo, abria a gaveta da secretária e riscava na lista dos automóveis. Após assistirem variadas vezes a esta operação, os colegas, andavam intrigados. Aliás insurgiram-se várias vezes por o Dr. Oliveira se preocupar apenas com a marca e modelo dos carros acidentados e nunca com os feridos ou mortos. – Oh Oliveira, afinal tu és amigo da onça, ou melhor, da lata?
Imperturbável, o “fofinho” lá foi excluindo da lista todos os carros que sabia terem tido acidentes. E assim, passado o período de análise e reflexão, que para ele tem de ser prolongado para analisar todas as variáveis, o Dr. Oliveira chegou à conclusão que nenhum carro era fiável, pois tinha a lista riscada de fio a pavio.
(Não perca o próximo episódio, no qual acompanharemos as diversões do Dr. Oliveira, nas tardes de Domingo.)
Ezequiel Vintém – (ex-frei Pancrácio)