sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Saudade: o Bilhete de Identidade do Povo Português? Por Julie Champagne

Meus caros amigos,

Ao preparar uma série de emissões sobre a saudade, para a “Radio Altitude”, radio portuguesa baseada em Clermont ferrand, deparei com este texto, magnífico, que eu gostaria de ter escrito pois corresponde a tudo o que eu penso, viví e ainda sinto... Até mesmo a descrição da cidade de Essaouira, que os marroquinos apelidam de “o porto português, (onde passei férias há um mês) corresponde ao que vivi e ressenti. Um muito obrigado a Julie Champagne. O nome é muito lindo e bem françês, mas só alguém com uma alma portuguesa pode escrever de forma tão justa e com tanto sentimento, sobre a saudade. É com a devida vénia e agradecimentos que transcrevemos este texto no nosso blog. Fernando.


Quando ouvem a palavra saudade são muitos os que pensam: - Ah sim, a saudade, a palavra que não se pode traduzir e que identifica os portugueses. Mas a saudade não é uma palavra, não é o bilhete de identidade dos portugueses; a saudade não se pode perceber nem definir, mas apenas viver, experienciar. A saudade expressa-se em sentimentos, música, poemas, cantos mas, certamente, não é com palavras que a podemos traduzir. Antes de ser pensada a suadade foi cantada considera Eduardo Lourenço no seu Labirinto da Saudade.


São tantos os que já procuraram definir a saudade como tantas são as hipóteses que colocaram para descrevê-la, mas a melhor maneira de compreendê-la é ir a Portugal, misturar-se com os portugueses e mergulhar na cultura lusitana.

Tal como o filho que apresenta, simultaneamente, características da mãe e do pai, assim a saudade é, igualmente, uma mistura de muitos sentimentos: melancolia, nostalgia, monotonia, tédio, esperança, desespero, tristeza, conforto, etc. Alegrar-se de sofrer, sofrer por se sentir alegre…

O conceito de saudade tem o seu locus nascendi algures em Marrocos, onde Dom Sebastião morreu mas ninguém pôde testemunhar a sua morte. Assim começou o movimento, quase seita, do sebastianismo, na qual os discípulos crêem que Dom Sebastião não morreu na batalha e que voltará num dia de nevoeiro, para que reine de novo a glória e a força do Portugal das Descobertas. Por isso, a saudade portuguesa exprime, entre outras coisas, o passado que foi e o futuro que nunca será. Um grande paradoxo que vivem os portugueses face às esperanças que têm no futuro de Portugal. Sonham com um destino maravilhoso, idêntico à época das Descobertas e, ao mesmo tempo, não fazem nada e não esperam nada porque não crêem que Portugal possa brilhar de novo. Em vez de baixar as expectativas que têm para o seu país, os portugueses preferem viver no passado e deixar passar o presente. Trata-se de um passado futuro! Escutemos Álvaro de Campos na sua Tabacaria: Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.


A saudade que sentem os portugueses pode eventualmente ser explicada geograficamente. Com efeito, Portugal é um país pequeno cercado pelo mar, quase como uma ilha, que predispõe os seus habitantes a deixarem o continente. Não é por isso, supreendente a vontade que os portugueses têm em se virarem para o mundo, lançando-se ao mar. Os portugueses não gostam de limites

e, por isso, evitam-nos. Os portugueses gostam de desafios; ficam tristes quando falham, mas ficariam ainda mais tristes se não tivessem tentado. As descobertas portugueses situam-se, algures, no passado porque as colónias já o foram. De todo o lado onde os portugueses chegaram, deixam e trazem lembranças da sua passagem. Da arquitectura à língua, de Marrocos à China, passando pela Índia, Japão e Timor.


Por exemplo, quando fui a Morrocos, visitei a cidade de Essa ouira (antiga Mogador), uma pequena cidade portuária, que, pela sua situação geográfica foi acossada por muitos visitantes indesejados. Mas a influência mais marcante que nela se inscreve é a que os portugueses deixaram. Muitos edifícios da cidade apresentam uma arquitectura bem portuguesa, sobre tudo a fortaleza.


E os portugueses mobilizaram o recurso mais poderoso para as descobertas : o mar! Foi com o mar que chegaram até mundos desconhecidos e também foi o mar que definiu o reino do Portugal das Descobertas. Por isso, Portugal foi cobiçado mais de uma vez pelos seus vizinhos e saudosos inimigos de estimação. O mar também foi, e ainda é, indispensável à alimentação e prosperidade dos portugueses. No entanto, os portugueses não conseguem pensar o mar sem saudade, porque o mar venturoso também matou muitos deles: exploradores, navegadores, pescadores, homens, mulheres, crianças, esposos, esposas, filhos, filhas, mães, pais, avôs, avós, irmãos, irmãs, tios, tias, primos, primas, amigos, amigas, etc. O mar conferiu -e confere ainda - poder aos portugueses mas também lhes mostra, às vezes, que é maior do que eles. Esta dura lição de humildade, esta impotência, esta imprevisibilidade e este paradoxo do mar são componentes do grande sentimento da saudade.


Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!

E quando o navio larga do cais

E se repara de repente que se abriu um espaço

Entre o cais e o navio,

Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,

Uma névoa de sentimentos de tristeza

Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas

Como a primeira janela onde a madrugada bate,

E me envolve como uma recordação duma outra pessoa

Que fôsse misteriosamente minha.

-Álvaro de Campos (Ode Marítima)


A saudade também influenciou muito a cultura portuguesa inspirando autores, pintores e músicos. A saudade lê-se, vê-se e ouve-se. O Fado representa o melhor exemplo da influência da saudade no mundo da música, sobretudo quando cantado pela voz fabulosa e autêntica da Amália Rodrigues. Esta combinação única e mágica de cantos e de guitarra portuguesa conquistou amadores de música em todo o planeta, como os grandes exploradores portugueses conquistaram o mar. Raras são as pessoas que escapam às emoções quando ouvem o fado. A intensidade dos sentimentos e a concentração da saudade, presentes na língua internacional

da música, comovem o público e também nós podemos viver a saudade nem que seja apenas por um instante.


Eu só entendo o fado

pla gente amargurada à noite a soluçar baixinho

que chega ao coração num tom magoado

tão frio como as neves do caminho

que chora uma saudade ou canta ansiedade

de quem tem por amor chorado

dirão que isto é fatal, é natural

mas é lisboeta

e isto é que é o fado

- Amália Rodrigues

(Fado Lisboeta)


Na literatura, podem-se encontrar muitos autores inspirados na saudade. Os seus textos transpiram uma saudade tangível, como o cheiro a peixe nos portos de Portugal. Encontramos esta atmosfera da saudade, de cortar à faca, na poesia de Fernando Pessoa e dos seus heterónimos, especialmente em O Marinheiro e Tabacaria.

Só o mar das outras terras é que é belo.

Aquele que nós vemos dá-nos sempre saudades daquele que não veremos nunca...- Fernando Pessoa (O Marinheiro)

Luís de Camões é outro grande poeta português que canta a saudade. A sua obra memorável é uma epopeia moderna sobre as Grandes Explorações e Descobertas dos Portugueses. Os dez cantos d'Os Lusíadas - Lusíadas vem do povo lusitano, os antepassados dos portugueses - não falam somente das aventuras e dos eventos históricos que rodeiam as explorações e as descobertas, mas também falam dos sentimentos e da personalidade dos exploradores. Camões dá uma alma a esta narração que revive debaixo da sua pena com tinta de mar.


E também as memórias gloriosas

Daqueles Reis, que foram dilatando

A Fé, o Império, e as terras viciosas

De África e de Ásia andaram devastando;

E aqueles, que por obras valerosas

Se vão da lei da morte libertando;

Cantando espalharei por toda parte,

Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

Luís de Camões (Os Lusíadas, Canto I)


Há que referir ainda que a paixão dos portugueses por tudo o que fazem, por tudo o que vivem também faz parte da saudade. Têm uma paixão pela vida, pelo mar, pela música, pela boa comida e bom vinho, pela língua portuguesa, etc. E também vivem o amor com paixão. Desejos impossíveis, desejos que insuflam a vida nos apaixonados. Os desejos satisfeitos cortam o prazer de sofrer, de ser privado. Um bom exemplo disso é o suicídio de Mário de Sá-Carneiro quando se apercebeu que a mulher que cobiçava, apesar de prostituta, também o amava!


Olho em volta de mim. Todos possuem -

Um afecto, um sorriso ou um abraço.

Só para mim as ânsias se diluem

E não possuo mesmo quando enlaço.

Mário de Sá-Carneiro (Como eu não possuo)


Por outro lado, é também significativa a paixão dos portugueses pela pátria. Muitos, vivem, agora, noutros países, mas ninguém deixou Portugal porque não gostava da cultura ou do país. Alguns deixaram Portugal com a esperança de uma vida melhor, para si e para os filhos. Mas, sobretudo, os portugueses saiam de Portugal para ter a oportunidade de ter saudades da pátria e da cultura lusitana! Para eles, ter saudades é um prazer e este prazer quase sádico representa um outro paradoxo do povo português. Todos os portugueses que encontrei no Quebeque têm orgulho em ser portugueses e não renegam as raízes portugueses. Pelo contrário, querem que os filhos nascidos fora de Portugal, falem Português e conheçam a cultura e a história dos seus antepassados. E, por isso, acho que a cultura portuguesa será sempre bem viva e bem conhecida.


Amor da Pátria

Vereis amor da pátria, não movido

De prêmio vil, mas alto e quase eterno:

Que não é prêmio vil ser conhecido

Por um pregão do ninho meu paterno.

Ouvi: vereis o nome engrandecido

Daqueles de quem sois senhor supremo,

E julgareis qual é mais excelente,

Se ser do mundo Rei, se de tal gente.

Luís de Camões (Os Lusíadas, Canto I)


Há que acrescentar ainda: os portugueses são patriotas mas também muito pacifistas (brandos costumes oblige). Gostam das cultura portuguesa e querem que seja conhecida em todo o lado, mas não a impões, defendem ou promovem, como outros povos que conhecemos muito bem. Não querem converter todos em portugueses, mas apenas difundir a cultura e a língua portuguesa através do mundo.

Em conclusão, os portugueses não têm a tecnologia dos japoneses, a população dos chineses, o rigor dos alemães, a pontualidade dos suíços, a siesta dos espanhois, os queijos dos franceses, o Vaticano dos italianos, a estupidez dos americanos (graças a Deus!), mas têm a saudade. A bem dizer, não têm a saudade mas são a saudade: na cultura, na língua, na cozinha, na música, na literatura, no coração, na alma. E para todo o lado para onde vão, trazem com eles esta saudade e transmitem o amor de Portugal aos que encontram no caminho.

Para acabar, deixo aqui um poema meu, cuja inspiração me foi aparecendo, no decorrer da realização deste trabalho sobre a saudade. É a minha interpretação desse sentimento bem português, que apenas a arte pode expressar convenientemente...


Saudade

Uma lágrima de tinta

Que toca uma guitarra

Uma lágrima de tristeza

Uma lágrima de alegria

Uma lágrima de melancolia

Uma lágrima de euforia :

Uma melodia única

Salgada como o mar

Que faz voltar os navios

Como os corações vazios

Fado tinto de azul

Como os olhos da musa

Uma melodia única

Um sentimento português

Uma identidade sem idade

A saudade sem idade

Referências :

LOURENÇO Eduardo (1997), Mythologie de la Saudade. Série Lusitane, Editions Chandeigne, 206 p.

DE CAMPOS Álvaro (1997), Ode Marítima; Ode Triunfal; Opiário; Tabacaria. Lisboa, Contexto, 74p., ISBN 972-26-1364-2

PESSOA Fernando (1952), Poemas Dramáticos. Colecção poesia, Edições Ática.

DE CAMÕES Luís (1572), Os Lusíadas. Edição do Instituto Camões, www.instituto-camoes.pt/

DE SÁ-CARNEIRO Mário (1914) Dispersão. Lisboa


1 comentário:

Unknown disse...

Obrigado Fernando por publicares este texto no nosso blog. A autora interpretou bem a nossa palavra "saudade", que realmente não tem tradução em língua nenhuma, senão a nossa.
Um abraço
Neves de Carvalho