1. O século XX da Igreja católica, até à década de 50, foi extremamente fértil em movimentos de carácter social, bíblico, pastoral, missionário, litúrgico, ecuménico e teológico. Foi também uma época abundante em medidas de repressão contra esses movimentos.
Coube a João XXIII, no seu breve pontificado (1958-1963), o mérito não só de suspender essa repressão, mas de tornar a Igreja católica um espaço de liberdade aberta ao diálogo em todas as direcções. Quem viveu de forma consciente a época anterior ao Concílio e a comparar com os gestos e os documentos do Vaticano II não pode deixar de se espantar com a revolução cultural que eles significam. A crise desencadeada pelo bispo Lefebvre (1905-1991) teve uma expressão muito reduzida. Serviu sobretudo como chantagem contra as reformas mais inovadoras.
Os grandes obstáculos vieram daqueles que se diziam a favor do Concílio e das suas reformas, mas para as contrariar. Nas suas aplicações viam, apenas, erros doutrinais, anarquia no campo litúrgico, influência marxista na pastoral social e, na ética, perda do sentido do pecado.
Depressa surgiu, neste clima, um documento fatal – a Humanae Vitae (1968) – acerca da concepção ética da vida sexual de solteiros e casados. Teve grande influência no aumento dos chamados “católicos não praticantes”. Por outro lado, a recusa das críticas ao celibato obrigatório dos padres teve efeitos devastadores nos ministérios ordenados. Voltou-se a insistir em que as mulheres, por serem mulheres, escusavam de pensar na possibilidade do sacramento da Ordem. Os divorciados recasados continuaram a ser considerados católicos e a serem incentivados a ir à Missa, mas a não poderem, inexplicavelmente, participar na comunhão eucarística que devem recomendar aos próprios filhos.
A Congregação para a Doutrina da Fé – presidida durante muito tempo pelo Cardeal Ratzinger – não foi capaz de viver descontraída perante o debate doutrinal e as novas exigências pastorais. Regressou à repressão dos teólogos que não reproduzissem o seu estilo. Amontoando documentos, julgou que podia parar as vertiginosas mudanças do mundo e ocultar os sinais dos tempos.
2. Perante a carência de padres, foi lançado, com grande aparato, o Ano Sacerdotal. Esta iniciativa de promoção do chamado sacerdócio ministerial, além da sua ambiguidade, está a ser esvaziada pela incapacidade que os Bispos e o Papa manifestaram em face do fenómeno da pedofilia de sacerdotes em muitas partes da cristandade. Não vale a pena clamar contra a evidente parcialidade com que este assunto tem sido tratado nos meios de comunicação. Continuam a ignorar as muitas instituições de acolhimento de crianças vítimas de violações nas próprias famílias e nos mais diversos grupos sociais. Parece-me que o mínimo que se pode pedir a todas as instâncias, confessionais ou laicas, é muito simples: quando for detectada, em alguém, uma tendência de atracção sexual por crianças, a única solução é impedir que essa pessoa tenha qualquer contacto com elas. Não discuto a natureza dessa tendência.
3. Repetem-me que não devo ceder à campanha montada contra a Igreja na pessoa dos Padres, dos Bispos e do Papa e não cedo. Volto, porém, ao primeiro ponto deste texto, à maior redescoberta da eclesiologia do Vaticano II: a hierarquia não é a Igreja. A hierarquia é um serviço indispensável à Igreja, na Igreja de todos. Por outro lado, o Papa é o bispo de Roma, não é o bispo de todas as dioceses católicas. A responsabilidade pela vida da Igreja, vida do Espírito de Cristo, é colegial. A “papolatria” é uma doença que faz mal ao Papa, aos Bispos, aos Padres e, sobretudo, ao povo cristão. Depois do Vaticano II, isto foi muitas vezes esquecido, como já recordei no ponto dois.
O povo cristão não teve formas, mediações, de fazer sentir a sua voz. A opinião pública na Igreja não foi nem cultivada nem escutada. É, por isso, normal que ninguém peça contas aos cristãos que, na base, são o rosto verdadeiro de Cristo e se colocam ao serviço dos mais pobres, dos excluídos da mesa comum e das vítimas da pedofilia. São a Igreja serva e pobre, para usar o título de uma obra célebre de Yves Congar, traduzida para português em 1964. Obra a não esquecer quando se prepara a vinda de Bento XVI a Portugal em grandes dificuldades para diversos extractos da nossa sociedade.
Não deve ser preciso lembrar aos organizadores desta visita o que S. Bernardo (1090-1153) escreveu ao Papa Eugénio III: “(…) tudo isso e as pretensões de prestígio ou de riqueza vêm de Constantino, não de Pedro”.
Celebramos, hoje, a Ressurreição de Cristo, mas celebramo-la por causa da nossa ressurreição, da ressurreição da Igreja, salva em esperança e ameaçada de morte como, no livro do Apocalipse, é dito à igreja de Sardes: “Conheço as tuas obras; tens fama de estar vivo, mas estás morto. Sê vigilante e fortifica aquilo que está a morrer, pois não encontrei perfeitas as tuas obras, diante do meu Deus. Recorda, portanto, o que recebeste e ouviste. Guarda-o e arrepende-te” (3, 1-3). Estás sempre perante o Mestre da compaixão infinita.
4 comentários:
Estou inteiramente de acordo com o que o Frei Bento Domingues escreveu no Público
no dia 4 de Abril. Só um Homem lúcido e corajoso, como ele, pode escrever desta forma. É o Espírito que o ilumina para nos dar um carácter de esperança, libertador e construtivo aberto à existência concreta. É o Espírito que ilumina o inesgotável carácter crítico dos seus escritos e da sua atitude crítica. É um homem sempre pronto a responder a quem lhe pede a razão da esperança!..
Bem-haja pelo que escreve.
Um grande abraço.
Abílio Rocha.
É sempre com grande prazer e muito proveito que leio e faço ler as crónicas semanais do frei Bento. Leio sempre com uns dias de atraso, não directamente no « Público » mas no site do Instituto de São Tomás de Aquino-ISTA. http://WWW.triplov.com/ista/. Parece-me tão evidente e claro tudo o que o frei Bento escreve … Na verdade até caio das nuvens quando encontro pessoas (padres ou diàconos, por ex. e até o meu arcebispo), que não veem o que para mim é evidente! Não pretendo ser objectivo!... Sou um sujeito. Para mim é uma questão de bom senso. Muitas destas ideias que o frei Bento continua a divulgar, jà estavam explicitadas ou implicitas nas conclusões do Concílio Vaticano II. Antes disso já muitos teologos, entre eles o frei Bento, o mais novo de todos, trabalhavam para que a Igreja se inspirasse mais no Evengelho e estivesse mais atenta aos homens que às leis, fossem elas canónicas. Já muito antes do Concílio o frei Bento nos ajudavam a reflectir, como professor de teologia a partir de 1964. Recordo-me da conclusão de um curso/reflexão sobre a Igreja… Os bispos e o papa não são mais igreja que o zé ou o António ou qualquer um de nós, que fomos batizados. O Batismo é que faz de nós Povo de Deus, membros da Igreja. O sacramento da ordem que recebem os diáconos presbíteros e bispos não é para serem mais igreja (agora falo eu) mas para se ocuparem da intendência, da administração, como é necessario em toda a organisação humana. Os titulos honoríficos de arcebispo e cardial nem sequer tem fundamento em qualquer sacramento. A eleição do papa, se olhamos para o passado, nem sempre foi inspirada pelo Espirito Santo e muitos andavam bem longe da Santidade. Tendo em conta o passado da Igreja e mesmo alguns aspectos do seu presente, todos os seus membros a começar pelo Papa, devia ser mais humilde e ouvir atentamente a voz do povo de Deus e de toda a humanidade.
« A recusa das críticas ao celibato obrigatório dos padres teve efeitos devastadores nos ministérios ordenados. Voltou-se a insistir em que as mulheres, por serem mulheres, escusavam de pensar na possibilidade do sacramento da Ordem. » Seria tempo que como igreja, ultrapassemos a mentalidade catara, que já São Domingos Combateu, e consideremos o amor mesmo carnal, como um bem, não obrigatório evidentemente. Que o sacramento do matrimónio nunca posa ser um pretexto para se recusar o sacramento da ordem.
É reammente mais que tempo que a mulher seja igual ao homem mesmo na Igreja. Hoje , na nossa sociedade, todas as portas estão abertas à mulher. Ela pode aceder a todos os postos de responsabilidade nas empresas privadas e públicas. É Ministro, Primeiro Ministro, Presidente da Republica, Rainha… Até quando Roma vai continuar a desprezar mais de metade do povo de Deus recusando-lhe, por princípio, que receba o sacramento da ordem, privando assim toda a Igreja de carismas indispensáveis ? Que o nosso papa não pense homem, mulher mas PESSOA. Toda a PESSOA deve ter os mesmos direitos e deveres. Toda a PESSOA deve poder responder a uma vocação de diacono ou presbítero (no masculino ou no femenino); Deve poder dirigir uma igreja local (bispo) assim como a Igreja Universal (papa). É para mim uma evidência que a Igreja deve evoluir neste sentido e ràpidamente. Admiro profundamente o frei Bento pela sua coragem e entusiasmo mas também pela sua constância ! Esperemos que como diz o ditado” água mole em pedra dura, tanto dá até que fura » Um abraço, Fernando
Louvo a sabedoria do Frei Bento, mas também a profundidade e clareza que me faz entender as coisas e ideias elevadas de que fala.
Este texto traz também uma visão histórica que nos ajuda a situar na panorâmica da Igreja.
Coisas que passam pela evolução dentro de um senso comum e notoriamente de um bom senso. Onde sempre situei o pensamento cristão.
A posição da mulher na Igreja, nos tempos que correm, continua a surpreender-me.
Não imagino,ou talvez consiga imaginar, o que sucederia se as mulheres fossem impedidas de ter acesso a cargos na Política, na Educação, na Justiça, nas estruturas empresariais, etc, etc, ( exemplos que o Fernando Vaz bem invocou)e apenas pudessem ser cidadãos de segunda, limitadas por um qualquer Decreto ou norma temporal, a funções subordinadas e secundarizadas...
A Igreja ao declarar e decretar pelos seus iluminados "Chefes" e condutores a menoridade redutora da mulher (mãe, irmã, companheira, dos próprios iluminados que assim a desclassificam)corre o risco de gradualmente deixar na colmeia, poucas abelhas laboriosas e incansáveis, e ficar com as estruturas gradualmente esvaziadas por teorias que, na sua essência, não podem ser cristãs.
Cuidado que as mulheres são tão inteligentes como os homens e acabaram os tempos em que não as deixavam sair de casa, estudar, votar, trabalhar, ter autonomia económica, tempos em que a subserviência era uma virtude intocável. Coloquemo-nos do outro lado: como poderíamos nós, homens, ocidentais ( já nem falo do Médio Oriente e paragens ainda mais cristalizadas e desiguais...) aceitar a posição secundarizada que as mulheres têm na Igreja?
Admira-me que não tenha chegado ainda a revolução.
O(s) tema(s) é fascinante e gostei muito das ideias expressas.
Um abraço aos grandes Pensadores e se exprimiram e enriqueceram este blog.
Antero
Textos destes, enriquecem este espaço.Este sítio é plural e diversificado, pelo que se torna em meu entender atractivo, de fácil leitura e acolhedor.Não comento o texto, pois não me sinto habilitado para tal. Comungo no entanto, com o que frei Bento Domingues escreve, entre outras coisas: "a Humanae Vitae...
Quanto ao resto, limito-me a dizer... Frei Bento Domingues no seu melhor!.
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