quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

O ALEXANDRINO EXPONDO-SE

Brotei duma família cristianizada já com padrinhos e tudo para não correr o risco de morrer mouro. Passei a infância toda na rua, correndo palas terras, subindo às árvores e não dando nenhuma importância ao computador (agora é que sinto a falta) e à televisão. Nas alturas de muito calor visitava o mar, um amigo que morava à distância de umas centenas de metros. Nos dias frios também lá ia recolher algum alimento para a família, que ali nunca faltava. Ele eram ostras, conquilhas, berbigões, langueirões, amêijoas, burriés, etc. De caminho encontrava nos charcos, caranguejos, chocos, charrocos e outros pouco expeditos que se refugiam na ria. Desses tempos já não restam senão reminiscências, pois a pressão humana destruiu tudo isso.
Fui feliz, brinquei muito ao pião, ao berlinde, com o arco e com o papagaio, tudo isso construído por nós. A sociedade do consumo apenas nos atingia na compra de algum rebuçado com bonecos dos jogadores de futebol ou algum pirolito. A paixão pelo jogo da bola não arrefecia mesmo que para jogar tivesse que tirar os sapatos, por uma questão de igualdade de oportunidades com os que não os tinham, e eram a maioria. No fim do jogo havia bolhas de sangue na sola dos pés, o que era esquecido na próxima oportunidade.
Certo dia disseram à minha mãe que o Senhor Bispo viria à aldeia para crismar os meninos. Era um dia de grande festa, pois tratava-se duma situação única, em que a terra recebia a visita dum senhor muito importante. Não se podia de forma alguma faltar àquela festa, nem deixar de participar nela em toda a dimensão. No entanto o senhor prior tinha avisado que só seria crismado quem frequentava a catequese, onde nunca me tinham posto a vista em cima. Em alternativa, só se os meninos lhe provassem através dum teste que sabiam as orações e a doutrina. Foi a minha primeira crise de stress. Passar os tempos livres e serões a aprender o padre-nosso, o credo, a confissão, os mandamentos e toda a doutrina possível de sair no exame, e em poucos dias. Graças a Deus passei. Tive então o prémio de vestir o meu primeiro fatinho, com gravata e tudo e de beijar o anel do Senhor Bispo.
A partir daquele momento, a ideia de vir a ser bispo nunca mais me abandonou. Fiquei deveras fascinado com aquela profissão. As pessoas todas embevecidas a olhar de baixo para cima para o Senhor Bispo, a ajoelhar e a beijar-lhe o anel. Era mesmo aquele o meu sonho.
Quando mais tarde estava prestes a terminar a 4ª classe, comecei a preocupar-me com a realização do meu sonho. Procurei informar-me de todas as formas, como chegar ao almejado objectivo. O Bispo de Faro, por estar mais ao alcance, era o meu modelo, até porque fora ele o meu farol naquele dia de crisma, e o único que tinha visto na minha vida. A investigação tinha que ser cautelosa ou discreta porque se as pessoas se apercebessem que eu era um concorrente, cercear-me-iam a informação.
Fiquei a saber que o Senhor Bispo era oriundo duns padres dominicanos que tinham como símbolo um rafeiro e um facho. Eureca! O rafeiro significava que eram galgos do Senhor, sempre prontos a correr mundo, e como eu gostava de passear. O facho dava jeito naquela época para quem não queria conflitos com o poder.
E foi dessa forma, que num belo dia de Outubro de 1955, desaguei em Aldeia Nova para estudar para Bispo. Um algarvio, único, ali desterrado, não era grande recomendação, como agora verifico nas palavras recentes de um amigo então mais velho. “ Um encontro de Transmontanos com Algarvios ou Alentejanos era contra natureza, sobretudo naquela época e com as nossas idades”. Mas logo a seguir descançou-me: “Começamos tão cedo (que riqueza) a não ter medo do outro por muito deferente que fosse.” Confesso que nunca tive esse sentimento de medo, porque nunca senti nenhuma ameaça, nem me apercebi dessa diferença.
(continua um dia)

2 comentários:

Anónimo disse...

Obrigado Alexandrino -de Moncarapacho- se bem me lembro!...
A "exposição vai continuar... e bem.

Anónimo disse...

Ainda bem que o "puto-algarvio" deu asas ao seu bem escrever e reflectir, com todo este texto que lhe sai das entranhas. Graças e este texto, só agora fiquei a saber que o Jovem de Moncarapacho tinha em mente ser Bispo. D. Francisco Rendeiro e o Padre Isidoro devem ter ficado espantados com tal revelação... A Bispo ainda não chegou mas a Jovem Avô já o é.
Espero que um dia que sejas Bispo me possas dar o perdão episcopal pelas noites que a ti e à Cesaltina fiz sair da cama e o ter-vos acordado e ao vosso Bebé Luís em noite do 25 de Abril de 1974 a dizer para ligarem a telefonia e vocês zangados por eu estar com brincadeiras a acordar o Luís. Espero que o Bebé de então, hoje já PAI, me perdoe e não tenha ficado traumatizado.
Seguindo o teu dito...continua um dia.
Joaquim Moreno