Há alguns meses, para satisfazer a curiosidade dos meus filhos, comecei a esgravatar na minha memória, para trazer à tona algo da minha infância, que lhes fizesse compreender o que me forjou. Comuniquei a três amigos o fruto desse mergulho no meu passado e faço agora uma versão “light” para o nosso blog.
Dei os meus primeiros passos, neste caminho da vida, (há 66 anos) numa aldeiazinha Transmontana. Aí passei a minha meninez, numa família de cinco filhos de que eu era o quarto. Ninguém pensava que eu duraria mais de uma semana. Fui baptizado á pressa, ao fim de 48 horas. O pároco da época chamava-se Fernando...como nada tinha sido previsto, decidiu dar-me o seu nome. Podia ser pior...Lá voltei para casa embrulhado no lençol, como se fosse uma mortalha, mas a água benta e o sal fizeram um milagre, abrindo-me o apetite. Abençoado baptismo, mesmo improvisado, pois que a partir daí, mais nenhum mal entrou comigo.
A minha infância até aos 12 anos foi a de um filho de lavradores daquela época e naquelas serras. As terras eram áridas de mais, para cultivar milho ou trigo. O centeio era o pão-nosso de cada dia...O pão branco era para os dias de festa.
Ao chegar ao Franco o que primeiro aparecia na paisagem, eram os grandes penedos, as fragas escuras, de entre as quais sobressaíam as Capelinhas brancas e azuis, consagradas à Santa Barbara (as trovoadas eram terríveis), Santa Comba, Nossa Senhora da saúde etc. Examinando mais de perto deparamos com os olivais, sobreirais e vinhas. Os Trasmontanos tiveram que ser muito duros e casmurras para conseguirem domesticar aquelas serras, tornando-se eles cada vez mais selvagens. Os nossos pais sempre atarefados e cansados deixavam os filhos mais novos ao encargo dos primogénitos. Estes aprenderam a ser responsáveis e adultos, antes do tempo. Crescíamos mais na rua e nos campos que em casa. Toda a aldeia era, por assim dizer, colectivamente responsável de seus filhos. Qualquer adulto tinha o direito e o dever de repreender e levar as crianças pelo bom caminho, antes de mais dando o exemplo. Havia uma responsabilidade colectiva e bem sabemos que a solidariedade, era tão autêntica como indispensável, e contribuía para o equilíbrio, de cada indivíduo.
O Franco, vivia numa autarcia completa, ou quase, pois de vez em quando lá se comprava um quilo de arroz ou massa ou meia dúzia de sardinhas...Tinha 10 anos quando saí da aldeia pela primeira vez. O povo em peso se deslocou a Mirandela, levando ofertas para a construção do Hospital. Com outras crianças fui a pegar num andor, enfeitado com notas de 20 escudos. Cantávamos com emoção e orgulho: “somos francos com franqueza, do Franco terra natal, o Franco trouxe o que pôde, em favor do Hospital”
Na aldeia não havia electricidade, nem telefone. A água ia buscar-se a uma das três fontes. Nas casas onde havia moças nunca faltava água. Elas até se batiam para ir com o caneco ou o cântaro bem equilibrado sobre o pano bem enrodilhado (de roda) em cima da cabeça. Iam à fonte dezenas de vezes por dia, tentando encontrar os namorados...Trabalhava-se de sol a sol e muitas vezes andava-se à “torna geira”. Os Francoenses ainda utilizavam a “troca” para comerciar...
No campanário que domina toda a aldeia, o sino, com linguagem adaptada a cada circunstância, adverte, anuncia e reúne. Ē Um fiel companheiro, é um coração que bate ao ritmo dos acontecimentos mais diversos, é a alma da nossa aldeia. Era ele quem ordenava a toda a canalhada, com o toque das trindades, que ao fim das nove badaladas todos deviam estar de mãos postas, à volta da mesa, onde o caldo já estava a fumegar...Do campanário vinham os convites para chorar com a viúva e o órfão, ou para regozijar-se com toda uma família por ocasião de casamentos ou baptizados. De lá vinham também os toques a repique chamando a precipitar-se com baldes e cântaros de água nos braços ou à cabeça para apagar o incêndio! Quando há alegria é de todos. Quando chega o luto, a doença, o sofrimento, é também para todos. Os 160 lares da minha aldeia, formavam uma autêntica família, com tudo o que isso comporta de positivo, mas também negativo. De todas as formas, éramos todos pelo menos, primos “terceiros”...
Desde bem pequenino, mesmo antes de ingressar na escola, aos sete anos, já ia com os meus pais para os campos e servia de guia aos bois por terras escarpadas. Tinha mais medo ao meu pai que aos cornos dos bois, cuja reacção era previsível. Meu pai era muito duro, tanto nas palavras como nos gestos. Nunca manifestou aos filhos um mínimo de afeição. Nunca soube o que era dialogar, conversar e muito menos escutar... Compreendi mais tarde esta sua secura de coração. Não se pode verdadeiramente amar quando não se fez a experiência do amor, em família, especialmente ao colo da mãe. Não se pode dar aquilo que nunca se recebeu. O coração de meu pai não pôde memorizar o carinho e a ternura de uma mãe. Ficou órfão pequenino, o que explica a sua incapacidade para amar os filhos. Sempre respeitou a minha mãe e protegeu toda a família. Por isso, sempre pôde contar com toda a minha estima e consideração, e com o carinho de todos os filhos, dos 18 netos e de mais de 10 bisnetos.
De modo geral, aos pais dessa época, era proibido manifestar sentimentos. Sentimentalista era sinónimo de fraco, efeminado, mulherengo...Foram precisas várias gerações para que os homens pudessem manifestar sua sensibilidade. Nós próprios reproduzimos os esquemas que vimos aplicar em nossa casa ou na aldeia da nossa infância. Um homem, um pai, não chora...Isso é para as mulheres! Então os filhos reproduzem...Penso que sou um dos primeiros homens da minha aldeia a dar aos filhos o carinho que o meu pai me recusou ou não soube dar-me... e que só recebi de minha mãe.
Naquela época, a única prioridade, sobretudo para o chefe de família, era ter a casa cheia: pão em cima da mesa, batatas com fartura, azeite e vinho para todo o ano, nos bons anos. A escola segundo a teoria do meu pai, era completamente inútil, não passava de um capricho ou uma fantasia que devia reservar-se a meia dúzia de famílias ricas. Nós fazíamos parte dos remediados. Minha mãe lia e escrevia correctamente, mas o meu pai só sabia assinar e mal. Os dois filhos mais velhos tiveram que contentar-se com a terceira classe. A inchada estava à espera. Trabalho não faltava, tanto em casa como nos campos... Os três mais novos tivemos mais sorte: um irmão fez o quinto ano nos Capuchinhos em Braga, eu fiz um pouco mais, como sabeis, e minha irmã mais nova, foi para enfermeira. Sempre gostei da escola e dos livros, e nem mesmo as reguadas com a “menina dos cinco olhos”me impediram de respeitar e venerar a Dona Adélia. Foi ela quem me abriu as portas da evasão para outros mundos, onde podia refugiar-me, cada vez que a realidade se tornava insuportável. Isso aconteceu algumas vezes. A nossa infância passou-se numa época em que a vida foi mais madrasta do que mãe... era muito difícil. Aprendemos a contentar-nos com muito pouco, mas quantas vezes nem esse pouco havia. Não falo só do aspecto material... As nossas mães sofreram muito por não poderem dar-nos, tantas vezes, o indispensável.
95% dos filhos da minha aldeia, não iam estudar. Feita a quarta classe quase todos ficavam “atrás do rabo dos burros ou dos bois”. Era o que o meu pai tinha previsto para mim. Felizmente que o Camilo Vaz Martins, meu amigo e vizinho que já andava no segundo ano, em Aldeia Nova, veio ao meu socorro. Para mais, ele já tinha no seminário um primo do mesmo nome que devia andar no quarto ano. Estes dois Camilos eram típicos e genuínos. Quem os conheceu não pode esquecê-los. Eles podiam contar com as boas graças do Padre Luís Cerdeira, então Superior de Aldeia Nova. Eram sobrinhos da Madre superiora de um convento de Pereira, e grande benfeitora do Seminário. Pereira, distante do Franco de uns 5 km era a terra do Alcino Augusto da Costa e do Armando Augusto Sobrinho, que nunca mais voltei a ver. Lá fui com o meu amigo e vizinho Camilo, em segredo, pedir à sua tia que intercedesse por mim. Um mês depois o Padre Luís passava por Pereira, como todos os anos e convocou-me. Se tinha vocação?! Eu tenho tanta vocação que se for preciso vou de joelhos até lá! Ē Verdade que não sabia onde era... Negociei o preço dizendo-lhe que se fosse muito caro o meu pai não me deixava ir. Começou a falar em cem escudos por mês, mas depois baixou para cinquenta.
Quando aos 12 anos soube que ia deixar a minha aldeia para ingressar no seminário, mesmo sabendo que só voltaria 9 meses depois, foi para mim um dia de festa e um alívio. Foi difícil convencer o meu pai. Precisava de braços, nunca ninguém tinha morrido de fome lá na aldeia. Nessa altura não pude dizer-lhe que “nem só de pão vive o homem”, e que nem só o estômago precisava de alimento, ou que o homem não é só braços. Conhecia os seus argumentos bem sólidos e pesados e optei pelo silêncio. Minha mãe foi para mim uma aliada formidável...
O dia da partida e do adeus chegou por fim! Devo sair bem cedo para apanhar o comboio a 18 km de distância. Meu pai acompanhou-me. Despeço-me de meus irmãos que deixavam escorregar uma lágrima. Despedi-me depois de minha mãe, que como eu (um duro) tinha os olhos secos. Depois de ter andado uns cinquenta metros, voltei-me e acenei-lhe, ela, impassível (em aparência) fez igual. Separou-nos por nove meses a esquina do adro. Estávamos mais ou menos a um quilómetro de minha casa quando ouço uns gritos desesperados que me gelaram o sangue nas veias e me impediam de avançar. Reconheci imediatamente as lamentações de minha mãe. Ainda hoje, 54 anos depois, me recordo do lugar exacto onde fiquei paralisado, qual estátua de sal. Nunca mais na vida, tive uma dor tão profunda, tão lancinante, nem mesmo quando ela faleceu 40 anos mais tarde. Aqueles gritos desesperados ficaram para sempre na minha memória e ainda hoje os ouço com a mesma nitidez. As nossas separações nunca tinham ultrapassado algumas horas!... Quis voltar para trás e correr ao seu encontro. Meu pai agarrou-me e disse-me simplesmente: “ não é nada... vamos lá, senão perdes o comboio”. Não trocámos uma só palavra, durante as três horas de marcha que se seguiram. O burro à frente com a mala e o saco da merenda (que não provei) e meu pai e eu caminhando atrás. Em Mirandela encontrei-me com o Francolino e o Manuel Alberto que vinham de Macedo de Cavaleiros, Corujas e iam com o mesmo destino. Tanto eles como eu não conseguimos partir o gelo nesse dia. O corpo estava presente, mas os pensamentos ficavam cada vez mais longe à medida que o comboio avançava. Já nem sei se a viagem demorou horas ou dias. O comboio entrou-me pela cabeça dentro e recordo-me que no seminário, durante o dia ouvia o seu barulho, os seus apitos estridentes... passava o dia com o comboio na cabeça, esperando pela noite para chorar todas as lágrimas do meu corpo. Isto durou uma semana. A partir daí o comboio descarrilou e as minhas lágrimas secaram...por vários anos. Uma nova vida começou, mas... continuo a ser franco, com franqueza, do Franco terra Natal!...Do Franco vieram mais alguns alunos para Aldeia nova. Álvaro Esteves, Inácio Lopes, mas sobretudo meu primo Frei Augusto José Matias o.p. (...)
1 comentário:
Sei que não fui bom aluno, nem seria melhor padre, mas também eu estive em Aldeia Nova, tendo até o Fernando "algum culpa"nisso.
Fernando vieram-me lágrimas aos olhos ao ler o seu post. Tal como o Fernando, também eu conheci bem as dificuldades com que os nossos conterrâneos se depararam naquela altura.
Folgo em saber que está tudo bem consigo. Eu também estou reformado e tenho todo o tempo do mundo para este entretenimento.
Um abraço amigo . Quero dizer-lhe que você para mim foi um dos ídolos da minha juventude.Felicidades para si e familia. Dinis
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