quinta-feira, 12 de agosto de 2010

E, DE REPENTE, FEZ-SE AGOSTO...


Nele via um cavaleiro andante, ameaçador algumas poucas vezes, protector outras muito mais, envolto em panos brancos que o agigantavam no que dizia, no que fazia.
O Padre João vai pregar para os Estados Unidos, arranja dinheiro para pagar, aos poucos, a parte nova de Aldeia Nova, arranja madrinhas, sopas instantâneas, latas de margarina, leite em pó e nunca percebi se o óleo de fígado de bacalhau vinha também de lá ou não . Disseram-me que corria a América, que pregava na televisão e por isso eu via notas verdes de dólar na sua secretária. Aprendi com ele a ter cuidado com os bancos que “são uns ladrões com os juros que nos levam” (sempre o pesadelo de Aldeia Nova). Corriam os meus 13 anos e mesmo que banco fosse só mesmo para gente de dinheiro e de negócios ou que vão para a América pregar, eu aprendi que a vida era feita de jogos onde se pode ganhar ou perder. Aprendi também o significado da palavra “shame” (que repetiu vezes sem conta) no dia do assassinato de John Kennedy quando entrou no refeitório e nos explicou a vergonha de alguns actos e também vezes sem conta esta memória ética tem invadido os meus próprios actos. Ecoa no meu presente o início das suas aulas de inglês, repetido centenas de vezes à exaustão : ”Read the lesson, please” enquanto, quase simultâneamente, a sua cabeça balanceava ao ritmo de uns olhos que se fechavam à exaustão e com isso nunca aprendi inglês, mas aprendi o esforço e a coragem do desafio.
Em finais de Junho deixava-se um ano lectivo para trás, deixavam-se colegas, deixavam-se os padres nossos mais atreitos aos afectos e vivências de cada um e eu deixava também o padre João Domingos. E, naqueles dias, os dias eram maiores que os de hoje, os meses acrescentavam-se ainda com mais dias, as férias eram mesmo grandes e a minha aldeia era um mundo ainda que mais pequeno que a América. Era lá que entre leituras forçadas do “Caminho” de M. Escribá e leituras proibidas dos livrinhos da colecção “Seis Balas” ( o tamanho idêntico e diminuto de ambos tinha a vantagem de os poder intercalar, alternando a leitura) se musculava a minha imaginária heroicidade entre o caminho espinhoso para a santidade e o caminho poeirento do ‘Farwest’ em duelos de pôr do sol.
E de repente era Agosto, mês de todos os meses, quase que pressentia a minha passagem do nada à vida, ali, no calor sufocante de ser, nas trovoadas das minhas crises quase adolescentes. Mas também se fazia Agosto com a carta que chegava a marcar a data da visita e depois vinham os padres, entre eles o Padre João Domingos. A casa alentejana ficava ainda mais branca, a capoeira mais depenada, meu pai não trabalhava nesse dia, a carrinha chegava, as 2/3 horas passavam a uma quase metade do dia e eu aí aprendi, na vivência e, depois, na recordação dessas visitas, a dignidade da pobreza, o calor das emoções, o sentimento de quanto eu era importante.
Outubro chegava sempre quando também nós chegávamos e depois, ao longo dos anos, bastantes Outubros ainda me chegaram com a visita da Padre João à minha vida, com a delicadeza e o respeito de bater à porta do profissional, deixando-a entreaberta para o pessoal.
Um dos últimos Outubros foi talvez há 6 meses. Confrontei-me com um homem frágil, vestido de Outono em dia de sol, a voz mais espaçada e, por vezes, ligeiramente trémule, mas olhei melhor, e afinal vi um homem grande, sempre esvoaçando em vestes de branco de voz tronitruante. Baixinho falámos do perigo das crianças em perigo e ele disse que eu sabia e eu saí atordoado.
E agora, de repente, fez-se novamente Agosto e hoje ele visitou-me aqui pela última vez.

Em Lisboa, Benfica, é o dia 11 de Agosto de 2010
Manuel Branco Mendes

3 comentários:

Jaime disse...

Belo testemunho este, do Mendes, em que os elogios se enraízam nas vivências pessoais não deixando, assim, dúvidas à sua autenticidade.
Jaime

Antero disse...

Mendes,
Acolho nas tuas belas palavras os sentimentos que me invadem ao ser surpreendido no meio de férias pela notícia de partida do Mestre de sempre João Domingos.
Um abraço especialmente ao Frei Pedro que melhor conhecia na familia de origem e nesta familia dominicana. Com muito pesar e tristeza, mas também com a gratidão dos princípios que nos formataram indelevelmente para a vida.

Anónimo disse...

Caro Mendes
De férias, numa visita rápida ao Criar Laços, fiquei surpreendido com a notícia da morte do Frei João Domingos. Subscrevo inteiramente o teu testemunho, no qual revejo a figura de um homem que para muitos se tornou numa lenda e para outros num símbolo. E os símbolos não morrem … dão que pensar. Depois de Aldeia Nova, esse microscosmo de memórias e de tantos sonhos, encontrei-o várias vezes e assim o revejo em efémeras convivências. Determinado, disciplinado, incansável empreendedor, pensador aberto e enérgico, orador exímio, este beirão de origens humildes agigantou-se cedo na vida, tinha algo de épico. Era aut..aut, , uma Auctoritas incontestável em várias matérias sagradas e profanas, decidido e arrojado em tudo o que fazia. Perseguiu o sonho americano com êxitos e fracassos. Ma o mundo era pequeno para ele. Angola seria o seu corolário e o seu rosário. Ficamos mais pobres é certo, mas homens assim não morrem, são símbolos e exemplos, tanto quanto se me afigura, dos que se «vão da lei da morte libertando».
Abel Pena