terça-feira, 16 de dezembro de 2008

MISTÉRIOS DO PINHAL DE LEIRIA



O prometido é devido. Assim era pelo menos até alguns políticos passarem a fazer mau uso das promessas como quem utiliza a cenoura para incentivar as bestas a andarem na direcção pretendida.
Queriam os meus amigos saber como é que eu tinha quase morrido de susto no caminho de Caxarias para Aldeia Nova.
Então vamos lá descascar isto.

Cheguei a Caxarias “por volta da viragem do dia” ou se preferirem na hora de “vésperas”. Aliviei o comboio da minha carga e de mim próprio, enchi os pulmões do ar do pinhal e o cheiro a madeira serrada invadiu-me as glândulas olfatórias. Num ápice dei por mim ali sozinho. Nem carrinha do seminário, nem seminaristas a aguardá-la. Decidi esperar um pouco a ver no que aquilo dava. Deu em nada. Talvez eu tivesse chegado um dia mais cedo, ou me tenha atrasado um dia. O tempo das férias grandes era tão longo que a gente lhe perdia a conta.
Confirmado o receio de que ninguém me viria buscar e a certeza de que os telemóveis só surgiriam cinquenta anos mais tarde, resolvi (decisão forçada) pôr os pés a caminho. Mas que jeito faria o telemóvel naquele momento. Só que na época os sinais de fumo tinham caído em desuso e as próprias comunicações por fio era incipientes. Era o chamado tempo de transição.
O Sol apressava-se a recolher a penates quando iniciei a caminhada. Entre Caxarias e Urqueira o ânimo manteve-se em alta. Cruzei-me ainda com algumas pessoas, senti a protecção das casas e tive o caminho iluminado por alguns candeeiros. Ultrapassada a Urqueira, vi-me envolvido pela floresta com seus ruídos, seus silêncios e suas sombras a moverem-se na noite. Mutatis mutandis, o sentimento de insegurança e impotência era idêntico ao vivido num barco no meio do oceano - (sei do que falo). Sentir que a qualquer instante podia ser engolido.
Alguns quilómetros adiante o pinhal deu lugar a terras cultivadas e vinhas. Os espaços eram mais amplos, respirava-se melhor. Pousei mais uma vez a pesada mala e descansei, de pé, para não sujar o fatinho preto de seminarista. Dei-me então conta, que nem a gravata me atrevera a desapertar, como se qualquer pequeno desleixo na indumentária com que me tinham encadernado, constituísse um sacrilégio.
Repostas as forças, levantei a mala como um halterofilista levanta o peso limite das suas forças e recomecei a caminhada.
Alguns passos decorridos, reparei que num terreno junto à berma da estrada, me seguia um cão corpulento, que a penumbra não me permitia divisar com precisão. Que estranho o comportamento deste cão, pensei. Nem ladra, nem se aproxima, apenas me segue. Estava nestas cogitações acerca do carácter do animal, quando divisei no terreno contíguo à berma contrária, outro cão idêntico no vulto e no comportamento. De tão parecidos, julguei que o primeiro tivesse mudado de berma, mas não. Eram efectivamente dois. Mais se acentuou a minha estranheza pelo comportamento dos bichos. Porque não se aproximaram e cheiraram, como é usual no cumprimento entre cães? ( Aqui para nós, felizmente os humanos inventaram o aperto de mão e o beijo na face para se cumprimentarem). Parecia também que ambos sabiam da presença do companheiro. Adivinhava-se ali uma táctica e uma estratégia longamente ensaiada. Recordei-me de algumas leituras e percebi que só podiam ser lobos. “Canus lupus signatus”, diria o P.e Oliveira.
Estremeci, mas mantive-me calmo para não demonstrar medo, já que nestas situações qualquer sinal de fraqueza é um convite à determinação das feras para atacarem a presa, lera eu algures. Houve momentos em que parecia que se aproximavam, mas provavelmente eram sugestões do meu medo. Sendo um fervoroso adepto da preservação desta espécie, não o sou ao ponto de me imolar, por amor à causa. Quando o pinhal voltou a ladear a estrada, os meus companheiros desapareceram. Eram certamente lobos maus que se aperceberam que eu não era propriamente a capuchinho vermelho nem levava bombons para a avozinha.
Foi a altura de respirar fundo, pousar a mala e descontrair os músculos retesados.
Reiniciei a marcha, sentindo-me um pouco mais leve, apesar do cansaço de quase uma légua palmilhada com carrego e das emoções por ter conhecido lobos, assim ao vivo e em directo.
Mas como uma desgraça nunca vem só, eis que do interior do pinhal soou um silvo em tudo semelhante a um assobio de homem. Ainda eu estava na dúvida, pássaro ou homem, quando passados alguns segundos se ouviu um segundo assobio, agora indubitavelmente de humano. Nesse instante, os cabelos da cabeça (que saudades) eriçaram-se. No corpo inteiro a pele arrepiou. O coração desatou aos saltos desordenados.
Se ouvi ou imaginei ruídos humanos, de seres da minha espécie, porquê este terror de dimensões muito superiores ao sentido na presença das feras? Tive o impulso de gritar por socorro mas a voz não saiu. Há males que vêm por bem, pensei, pois é possível que não tenham dado pela minha presença. Nesse caso seria melhor manter-me o mais silencioso possível. Procurei acelerar o passo mas as pernas não respondiam, pesadas como chumbo. As pernas que o transportam, nunca conseguem ser tão rápidas quanto o pânico. Por isso não lhe devem dar ouvidos.
Pensei implorar a ajuda divina, o que me pareceu despropositado, pois minutos antes já o fizera para que me salvasse de ser devorado pelas feras. Pedir para me livrar de seres da minha espécie, criados à imagem e semelhança do criador não me caía bem. Estas lucubrações são, como é evidente, anteriores ao estudo da Suma e de outras disciplinas teológicas. Cheguei a desejar que as feras me voltassem a ladear. Sentia já saudades dos irmãos lobos, com lhe chamava S. Francisco de Assis.
Eu que aninhava no consciente e no inconsciente tantos fantasmas acerca dos lobos, neste momento, após conhecê-los, tinha mais receio dos homens. Compreendi então o que tinha aprendido com o saudoso P.e Oliveira, “Homo homini lupus”.
Por vezes parecia sentir passos quase a tocarem-me os calcanhares. È desta, pensava, mas como o golpe fatal demorava, voltava a cabeça, mas só o meu terror me perseguia.
No meio da aflição, consegui avançar até divisar as primeiras casas de Aldeia Nova que me acolheu no seu regaço protector. O coração retomou o seu ritmo e a cavidade do peito que lhe está destinada. No entanto, julgo que terá sido nesse preciso momento que ficou virado para o lado direito. É possível que após o turbilhão em que esteve envolvido, se tenha posicionado mal ao retomar o seu lugar. ( Conhecemos um médico nosso amigo que poderá explicar isto melhor.)
Certo, certo, é que ainda hoje - verifiquei agora mesmo - permanece virado à direita. Situs inversus, decretaram os médicos.


Armando José

6 comentários:

Anónimo disse...

E vê lá tu se te puxou a vontade para rezares o terço enquanto caminhavas como dominicano que eras. Não! Deixaste-te levar pelas solicitações dos sentidos e em vez de te voltares para o intimo, já que te aproximavas do seminário,ainda estavas preso ao apelo das férias algarvias. Já puseste a hipótese dos dois cães,
teus companheiros de viagem pudessem ser uma protecção do Alto?
Não percamos a lição de todos os sinais.
António da Purificação

Anónimo disse...

Meu caro António
Já desesperava por não haver um único comentário. Isso deixa-me apreensivo por o Nelson achar que afinal a prenda que lhe dei é de valor nulo. Tu és o único que estás sempre atento, embora no intuito de cumprires a tua missão evangelizadora. Tens uma teoria assim um pouco beatarrona, mas mesmo assim, a tua atenção aos doentes e desvalidos, acabará por dar os seus frutos. Nessas horas de fraqueza há sempre alguém que cai. E tens a vantagem de não exigir o dízimo.
Para já muito obrigado. Prometo que vou pensar no assunto.
Com um abraço
Armando José

Anónimo disse...

Bem ao contrário!... Eu sou das terras onde "os lobos uivam" e vou coleccionando todas as histórias que digam respeito a tais bichos. E os meus netos gostam de todas as que falem de lobos "maus", o que parece não ter sido o caso. A tua odisseia, ainda não lha revelei. Os teus lobos eram bons e portaram-se como cães de guarda. O Da Purificação, que em tudo vê a mão da Divina, por certo que ainda irá conceber uma pagela evocativa, para distribuir no próximo encontro.
O meu abraço
Nelson

Anónimo disse...

Meu caro Alexandrino,
Queria simplesmente dizer-te que não são os comentários que fazem o valor dos teus textos e felizmente!...Com as alegações do António da Purificação não ias longe. Parece que este beato nos quer mandar todos para o céu antes de chegar a nossa hora. Os teus textos têm um valor intrínseco. Esse valor vem de tí, da autencidade que eles transpiram e do estilo tão elegante e captivante, com que os escreves. É sempre para mim um privilégio ( e um mergulho no meu passado) poder ler os teus textos, assim como os do Eduardo Bento, que já há muito não nos dá esse prazer. Um abraço, Fernando.

Anónimo disse...

Realmente Fernando, os textos do Alexandrino levam-nos a um encontro com a memória e, sem nostalgia mas com lucidez, permitem-nos recuperar muito do que fomos e que fez de nós o que somos. Quanto ao Purificação, que o Nelson nos diz que era ali dos lados de Sortelha, parece ter uma fixadela no medo do Inferno e quer ir para o céu o mais depressa possível. Enfim, também foi nosso colega. Em breve sujeitarei ao Nelson um texto sobre o Natal.
Eduardo Bento

Anónimo disse...

Obrigado Alexandrino. Li este belo e interessante texto, que me fez rir e sorrir o tempo todo, quer porque os "males" dos outros por vezes nos dão algum contentamento, quer porque rememorei a aventura, diurna, também em dia de desencontro,de arrastar a minha maldita mala de Casteição ( onde passava a carreira, para os Chãos ( minha terra), cerca de dois Kms. Ora mal comparado isso com a tua aventura nocturna de diferentes e muito mais gravosos calafrios e mais largos kms, de Caxarias a Aldeia Nova, muito me alegraram as tuas "desgraças".