O uso e o abuso da razão
Há cerca de dois meses, ao escrever algumas linhas para rememorar a minha turma de Aldeia Nova, mencionei vários colegas sem método nem cautelas especiais. Emergiram naquele momento os nomes daqueles que recordei enquanto elaborava aquela mensagem.
Reparei, logo no dia seguinte, que deixei de fora, certamente entre outros, o António Valente, proveniente das mesmas terras da Beira, da Guarda ( penso que do Souto), por mero lapso, como se compreenderá.
Na companhia do Valente vivi uma aventura e aprendi uma lição que me marcou positivamente.
Empreendedor e mais arrojado do que eu, o Valente, sabendo que, como ele, tinha família em Lisboa, desafiou-me a rumar a Lisboa numas férias da Páscoa.
- Mas como!? só tenho 20 paus e duas ou três moedas pretas ( as de tostão e dois tostões… porque as de cinco tostões ou cinquenta centavos já eram brancas como se lembrarão) !
- Não tem problema! Umas sandes para a viagem, saco a tiracolo, pé na estrada e vamos à boleia! Para cá alguém nos paga a viagem!
Ia eu a caminho dos 14 anos e penso que ele teria mais um ano. Ruminado o assunto durante umas duas semanas, a vontade e a coragem foram emergindo. Não me lembro se nos autorizaram ou se chegámos sequer a revelar o nosso plano. Mas no dia de início das férias pusemo-nos a caminho.
No primeiro lance, apanhámos uma boleia de alguém que nos deixou perto de Porto de Mós na estrada principal de Porto - Lisboa, pois seguia noutro rumo e achava que era ali que nós poderíamos mais facilmente safar-nos.
Na ocasião os carros eram raros. Lá passava um ou outro de vez em quando.
Polegar virado a Lisboa e, palmilhados quase dois quilómetros desde a primeira boleia, lá parou um carro.
- Então, vão para onde?
- Lisboa!
- Mas que vão vocês fazer a Lisboa?
- Temos lá família e vamos lá de férias de Páscoa - respondemos quase a uma voz.
- Bom… estão com sorte, entrem lá!
Inquirida a nossa proveniência e depois de feita uma revoada de perguntas, para avaliação dos dois pardais, o débito da conversa passou quase totalmente para o nosso interlocutor. Esbanjando ao longo da viagem os conceitos da moral e autoridade, os perigos, de quem apanhava boleia e de quem dava boleia. Embora com ele não fizessem farinha, pois, se algum meliante se lembrasse de se meter com ele, trazia no porta-luvas com que se defender.
Lá soubemos, pouco depois, que a boa alma, homem entre os cinquenta e os sessenta, rumava exactamente para Lisboa e, apesar de vestido à civil, era oficial ( se bem me lembro tenente-coronel) da GNR.
O Valente queria ir mesmo até Lisboa. Eu também tinha família em Lisboa mas queria ficar no Sobralinho, logo a seguir a Alhandra, onde também tinha família e era mais fácil chegar.
Sem problemas, a viagem corria melhor do que a encomenda, dissipando-se gradualmente todas as nossas dúvidas e receios de antes do início da aventura.
Chegados próximo do meu destino, Sobralinho, lá fui dando indicações até que chegámos ao local onde me dava jeito ficar. Mas o nosso benfeitor tinha de parar exactamente na auto–estrada, única existente na altura, entre Lisboa e Vila Franca de Xira, lateralmente vedada por rede metálica, como ainda hoje acontece. Torcendo um pouco o nariz lá encostou e lá me despedi muito reconhecido, deixando o António Valente muito satisfeito com viagem garantida para junto da família.
Punha eu o pé na berma e dirigia-me à vedação perscrutando a rede, para inventar uma saída, quando, de repente, chegou um polícia de mota e, energicamente, evidenciando uma autoridade que os meus verdes anos potenciavam infinitamente, apitou para o condutor, apitou para mim, e enquanto tirava as luvas, fez-me sinal para entrar imediatamente no carro, barafustando que não podia sair ali, que ia ser multado, impedindo o condutor de arrancar, e, sempre em movimento, ia gesticulando e começou logo a verberar o condutor, porque parecia impossível, se não sabia que não podia parar ali, muito menos deixar passageiros, que era um perigo e uma irresponsabilidade grave … Um vendaval de palavras adequadamente intimidatórias, por certo cheias de razão, porque as regras de trânsito eu não as conhecia!
Com os meus botões e pelo que ouvira, começava a ter saudades da minha nota de 20 paus, que já nem chegava para o estrago, pois o GNR, se bem percebera, já tinha avaliado a minha infracção em mais de 40 escudos e a do condutor em montante quatro vezes superior …!
Lembrava-me então, oportunamente, da reza da minha mãezinha em dias de tormentosas trovoadas na Beira : “Santa Bárbara bendita que no céu está escrita com papel e água benta, livrai-nos desta tormenta!”
Por outro lado, assistia incrédulo a tamanha e inesperada desumanidade, sem perceber por que motivo o condutor nem sequer abria a boca para dizer fosse o que fosse… Grande calamidade! O homem nem se defendia nem defendia o pobre rapazola que ficaria sem a sua única nota, e, pelo que tinha ouvido, tinha ainda de seguir viagem, pois só poderia ser largado depois da saída da auto-estrada, em Lisboa, num mundo que praticamente não conhecia! E como vir parar ao Sobralinho?
Depois de uma torrente tão grande de razão e autoridade, o condutor, ainda sem nada dizer, calmamente, virou-se para mim, que tinha retomado compulsivamente o meu lugar no banco de trás, e disse:
- Chegue-me aí a minha carteira do bolso de dentro do casaco!
Paulatinamente, tirou um cartão que colocou na mão do GNR.
- Faça favor!
Qual milagre dos pães ou das rosas, o polícia bateu tacões e pala várias vezes seguidas: - Meu tenente-coronel, para cá e para lá, mil desculpas, …
Mas aí a torrente de palavras inverteu-se!
- Então o senhor nem sequer tem a urbanidade de me identificar, de verificar a documentação, de esperar uma explicação ou pedi-la, põe-me aqui entre a espada e a parede, age sem um mínimo de bom senso nem consideração por nada nem ninguém, começa a disparatar sem saber o que diz, não cumpre nada do que lhe recomendaram, nem quer saber que estou aqui a cumprir um dever de cidadania para deixar este jovem num local que ele conhece para poder encontrar-se com a família, etc., etc.…
E levou ali uma desanda, sem o deixar concluir sequer o “Meu tenen...”, “ Meu tenente-coro…”
– Quem é o seu comandante!? Que instruções lhe dão para se comportar como um carroceiro?...
O homem, fardado, chegara ali cheio de razão e autoridade. A atitude que tomara e a precipitação do seu comportamento, deixaram-no sem possibilidade de retrocesso, mesmo para cumprir o seu dever.
“Meu tenente-coronel pode seguir viagem, eu mesmo indico o caminho a este senhor (o senhor era eu..!) porque a rede ali à frente está partida e pode muito bem sair, sem problemas! O GNR lá foi indicar-me a saída e o bom do tenente-coronel só arrancou quando o da farda regressava ao local onde deixara a mota.
Não basta ter razão, é preciso saber usá-la sem abusar do direito que podemos ter.
Nunca mais esqueci esta lição. Nem esqueci a serenidade de velha raposa que levou o condutor, que estava a cometer uma falta grave, a deixar espalhar literalmente o agente, até ele perder o ímpeto e o fôlego ou desconfiar de tanta calma, e de seguida usar idêntica voracidade para reduzir a incontestável razão da lei e da farda a coisa nenhuma ou, pior ainda, a um reiterado pedido de desculpas.
Como poderia então esquecer o meu amigo António Valente, cúmplice destas andanças e das viagens de comboio na linha da Beira, até Celorico da Beira?
Em desagravo, aqui fica um abraço para o António Valente, rememorando esta aventura comum.
Um abraço para todos com votos de uma bela quadra familiar e natalícia.
(Lisboa, em 2008-12-11)
Antero Monteiro( asmont@netcabo.pt )
Há cerca de dois meses, ao escrever algumas linhas para rememorar a minha turma de Aldeia Nova, mencionei vários colegas sem método nem cautelas especiais. Emergiram naquele momento os nomes daqueles que recordei enquanto elaborava aquela mensagem.
Reparei, logo no dia seguinte, que deixei de fora, certamente entre outros, o António Valente, proveniente das mesmas terras da Beira, da Guarda ( penso que do Souto), por mero lapso, como se compreenderá.
Na companhia do Valente vivi uma aventura e aprendi uma lição que me marcou positivamente.
Empreendedor e mais arrojado do que eu, o Valente, sabendo que, como ele, tinha família em Lisboa, desafiou-me a rumar a Lisboa numas férias da Páscoa.
- Mas como!? só tenho 20 paus e duas ou três moedas pretas ( as de tostão e dois tostões… porque as de cinco tostões ou cinquenta centavos já eram brancas como se lembrarão) !
- Não tem problema! Umas sandes para a viagem, saco a tiracolo, pé na estrada e vamos à boleia! Para cá alguém nos paga a viagem!
Ia eu a caminho dos 14 anos e penso que ele teria mais um ano. Ruminado o assunto durante umas duas semanas, a vontade e a coragem foram emergindo. Não me lembro se nos autorizaram ou se chegámos sequer a revelar o nosso plano. Mas no dia de início das férias pusemo-nos a caminho.
No primeiro lance, apanhámos uma boleia de alguém que nos deixou perto de Porto de Mós na estrada principal de Porto - Lisboa, pois seguia noutro rumo e achava que era ali que nós poderíamos mais facilmente safar-nos.
Na ocasião os carros eram raros. Lá passava um ou outro de vez em quando.
Polegar virado a Lisboa e, palmilhados quase dois quilómetros desde a primeira boleia, lá parou um carro.
- Então, vão para onde?
- Lisboa!
- Mas que vão vocês fazer a Lisboa?
- Temos lá família e vamos lá de férias de Páscoa - respondemos quase a uma voz.
- Bom… estão com sorte, entrem lá!
Inquirida a nossa proveniência e depois de feita uma revoada de perguntas, para avaliação dos dois pardais, o débito da conversa passou quase totalmente para o nosso interlocutor. Esbanjando ao longo da viagem os conceitos da moral e autoridade, os perigos, de quem apanhava boleia e de quem dava boleia. Embora com ele não fizessem farinha, pois, se algum meliante se lembrasse de se meter com ele, trazia no porta-luvas com que se defender.
Lá soubemos, pouco depois, que a boa alma, homem entre os cinquenta e os sessenta, rumava exactamente para Lisboa e, apesar de vestido à civil, era oficial ( se bem me lembro tenente-coronel) da GNR.
O Valente queria ir mesmo até Lisboa. Eu também tinha família em Lisboa mas queria ficar no Sobralinho, logo a seguir a Alhandra, onde também tinha família e era mais fácil chegar.
Sem problemas, a viagem corria melhor do que a encomenda, dissipando-se gradualmente todas as nossas dúvidas e receios de antes do início da aventura.
Chegados próximo do meu destino, Sobralinho, lá fui dando indicações até que chegámos ao local onde me dava jeito ficar. Mas o nosso benfeitor tinha de parar exactamente na auto–estrada, única existente na altura, entre Lisboa e Vila Franca de Xira, lateralmente vedada por rede metálica, como ainda hoje acontece. Torcendo um pouco o nariz lá encostou e lá me despedi muito reconhecido, deixando o António Valente muito satisfeito com viagem garantida para junto da família.
Punha eu o pé na berma e dirigia-me à vedação perscrutando a rede, para inventar uma saída, quando, de repente, chegou um polícia de mota e, energicamente, evidenciando uma autoridade que os meus verdes anos potenciavam infinitamente, apitou para o condutor, apitou para mim, e enquanto tirava as luvas, fez-me sinal para entrar imediatamente no carro, barafustando que não podia sair ali, que ia ser multado, impedindo o condutor de arrancar, e, sempre em movimento, ia gesticulando e começou logo a verberar o condutor, porque parecia impossível, se não sabia que não podia parar ali, muito menos deixar passageiros, que era um perigo e uma irresponsabilidade grave … Um vendaval de palavras adequadamente intimidatórias, por certo cheias de razão, porque as regras de trânsito eu não as conhecia!
Com os meus botões e pelo que ouvira, começava a ter saudades da minha nota de 20 paus, que já nem chegava para o estrago, pois o GNR, se bem percebera, já tinha avaliado a minha infracção em mais de 40 escudos e a do condutor em montante quatro vezes superior …!
Lembrava-me então, oportunamente, da reza da minha mãezinha em dias de tormentosas trovoadas na Beira : “Santa Bárbara bendita que no céu está escrita com papel e água benta, livrai-nos desta tormenta!”
Por outro lado, assistia incrédulo a tamanha e inesperada desumanidade, sem perceber por que motivo o condutor nem sequer abria a boca para dizer fosse o que fosse… Grande calamidade! O homem nem se defendia nem defendia o pobre rapazola que ficaria sem a sua única nota, e, pelo que tinha ouvido, tinha ainda de seguir viagem, pois só poderia ser largado depois da saída da auto-estrada, em Lisboa, num mundo que praticamente não conhecia! E como vir parar ao Sobralinho?
Depois de uma torrente tão grande de razão e autoridade, o condutor, ainda sem nada dizer, calmamente, virou-se para mim, que tinha retomado compulsivamente o meu lugar no banco de trás, e disse:
- Chegue-me aí a minha carteira do bolso de dentro do casaco!
Paulatinamente, tirou um cartão que colocou na mão do GNR.
- Faça favor!
Qual milagre dos pães ou das rosas, o polícia bateu tacões e pala várias vezes seguidas: - Meu tenente-coronel, para cá e para lá, mil desculpas, …
Mas aí a torrente de palavras inverteu-se!
- Então o senhor nem sequer tem a urbanidade de me identificar, de verificar a documentação, de esperar uma explicação ou pedi-la, põe-me aqui entre a espada e a parede, age sem um mínimo de bom senso nem consideração por nada nem ninguém, começa a disparatar sem saber o que diz, não cumpre nada do que lhe recomendaram, nem quer saber que estou aqui a cumprir um dever de cidadania para deixar este jovem num local que ele conhece para poder encontrar-se com a família, etc., etc.…
E levou ali uma desanda, sem o deixar concluir sequer o “Meu tenen...”, “ Meu tenente-coro…”
– Quem é o seu comandante!? Que instruções lhe dão para se comportar como um carroceiro?...
O homem, fardado, chegara ali cheio de razão e autoridade. A atitude que tomara e a precipitação do seu comportamento, deixaram-no sem possibilidade de retrocesso, mesmo para cumprir o seu dever.
“Meu tenente-coronel pode seguir viagem, eu mesmo indico o caminho a este senhor (o senhor era eu..!) porque a rede ali à frente está partida e pode muito bem sair, sem problemas! O GNR lá foi indicar-me a saída e o bom do tenente-coronel só arrancou quando o da farda regressava ao local onde deixara a mota.
Não basta ter razão, é preciso saber usá-la sem abusar do direito que podemos ter.
Nunca mais esqueci esta lição. Nem esqueci a serenidade de velha raposa que levou o condutor, que estava a cometer uma falta grave, a deixar espalhar literalmente o agente, até ele perder o ímpeto e o fôlego ou desconfiar de tanta calma, e de seguida usar idêntica voracidade para reduzir a incontestável razão da lei e da farda a coisa nenhuma ou, pior ainda, a um reiterado pedido de desculpas.
Como poderia então esquecer o meu amigo António Valente, cúmplice destas andanças e das viagens de comboio na linha da Beira, até Celorico da Beira?
Em desagravo, aqui fica um abraço para o António Valente, rememorando esta aventura comum.
Um abraço para todos com votos de uma bela quadra familiar e natalícia.
(Lisboa, em 2008-12-11)
Antero Monteiro( asmont@netcabo.pt )
1 comentário:
Citação
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Como poderia então esquecer o meu amigo António Valente, cúmplice destas andanças e das viagens de comboio na linha da Beira, até Celorico da Beira?
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Eis uma boa resposta:
(a) O Valente era da turma anterior, i.e., de 1964/68 e
(b) ficou na memória como se fosse de 1965/69, porque, entre outras razões, esteve nesta turma, nas disciplinas de Ciências durante o 5.º ano, em que reprovara no ano anterior.
Vale a pena lembrar que, quando alguém reprovava, era dispensado, ou "expulso", como então se dizia.
Por que é que isso não aconteceu ao Valente? - porque, no ano anterior, lhe tinha morrido alguém muito próximo e esse acontecimento foi considerado prova de ausência de culpa na reprovação parcial (só tinha passado na secção de Letras).
O princípio da referida "justiça" em Aldeia-Nova tinha uma formulação clara: aplicar bem o "pão dos pobres" (frei João Domingos, O.P. dixit) com que éramos financiados.
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