domingo, 7 de dezembro de 2008

DA FUZETA A ALDEIA NOVA - VIAGEM QUASE TURÍSTICA


- Não te esqueças Armando. Nós fazemos um grande sacrifício para te ter a estudar, ainda por cima tão longe. Estuda, filho.
Eram as últimas recomendações antes da carroça encostar à porta da estação da CP, Moncarapacho-Fuseta. Ainda ninguém me explicou porque só neste local a palavra Fuzeta surge com “s”. Após tantos anos, parece-me que às pessoas tanto se lhes dá. Sendo ainda por cima um território adversário, será que é imposição de Moncarapacho? “Aceitamos contrariados a junção do nome Fuzeta, mas fica em grafia incorrecta para demonstrar o nosso desagrado”. Digo eu. Que há coisas que nunca se dizem.
O meu pai prende a mula à argola postada na parede da estação para o efeito, e a família apeia-se arrastadamente, a mãe lacrimejando, o pai com expressão solene e o filho com a vocação determinada no olhar.
Passam cinco minutos das onze da noite quando a máquina a vapor entra imponente na estação a arrastar as rodas de ferro que guincham intensamente uma dor de tortura.
Vou acenando um adeus às silhuetas paternas diluídas pelo fumo da locomotiva e pela penumbra da noite mal iluminada. O intenso cheiro a carvão abafa a brisa marítima que diariamente me entra pelas narinas ao passar junto dos locais que são meus, conquistados numa infância bronzeada de ria e mar. Só nos curtos períodos de férias voltaria aos jogos de futebol nos campos deixados livres pelas marés mortas, à pesca aos robalinhos, à descoberta dos ninhos escondidos nos sapais, a tantas brincadeiras intervaladas com refrescantes mergulhos na ria Formosa.
O “Correio”- assim se chamava o ronceiro comboio - deambularia toda a noite pelo Algarve e Alentejo, acorrendo a todas as estações e apeadeiros na missão de recolha de correspondência e encomendas.
A maioria dos passageiros era constituída por militares. Comportavam-se como se estivessem em território conquistado, livres das regras militares e das normas sociais que na família e na comunidade não podem ser infringidas. Não deixava de os intrigar a presença dum “estorninho” de negro vestido aos dez anos de idade. As perguntas sucediam-se mas não dissipavam a estranheza. Daí não ser de todo surpreendente, que no sono do “objecto estranho” surgissem tropelias como derramar-lhe aguardente pela goelas abaixo, aproveitando o facto de o desvio do ceptro nasal o obrigar a respirar pela boca. De imediato surgiam muitas vozes a reclamar contra a malvadez. Mas o mal estava feito, não obstante o “estorninho” conseguir sair da aflição embora a custo de muitas lágrimas e cuspidelas envoltas em ataques de tosse.
Porquê encadernar assim um gaiato para uma viajem de cerca de 500 quilómetros em transportes públicos? Para ser posto à prova? Para dar testemunho da sua vocação?
Quando os primeiros alvores da madrugada começavam a apontar no horizonte, o casario do Barreiro envolvia a carruagem e prestes o comboio se deteria a suar e a resfolegar, fumegando de cabo a raso como um cavalo cansado. Seriam seis da manhã, mais coisa menos coisa, porque na época os horários eram vagamente indicativos.
Era a altura de arrastar a pesada mala até barco que fazia a travessia do Tejo. Num quadro impressionista começavam divisar-se progressivamente as formas, as cores e os pormenores da cidade à medida que em sintonia a luz da manhã e a aproximação de Lisboa cresciam. O mar estendia o seu braço pelo estuário do Tejo acariciando-me com a brisa fresca num derradeiro adeus.
Chegado à estação Sul-Sueste bem junto à Praça do Comércio, não havia permissão para me demorar a olhar o Cais das Colunas ou verificar qual era a pata direita da frente do cavalo de D. José. Tinha que me pôr de imediato a caminho, carregando a mala do enxoval até S. Apolónia. O enxoval do pobre era ainda assim desproporcionado no peso para as forças duma criança. Aquela milha representava uma maratona, porque chegava tão exausto como um atleta. A distância não me cansaria, não fora o carrego da mala e das preocupações que os adultos me impunham: “não fales com ninguém”, “não aceites boleia de ninguém”, “ não compres nada a ninguém”, “não vás para casa de ninguém”, “não pares no caminho”, “não abandones a mala nem por um segundo”, não assim, não assado.
Que alívio quando me sentava no banco de segunda classe do comboio para o norte. È bem verdade que para norte é que é o caminho. Para lá me guiava não a estrela, mas o facho do cão de S. Domingos. Seriam mais algumas horas, até ouvir o grito “Caxarias”, que tinha a função de despertador e de anúncio publicitário duma terra por descobrir.
E se o comboio chegou atrasado? E se os do norte já tivessem chegado todos e a carrinha “Pão de forma “ tivesse abalado com a carga completa?
Menino só tens uma solução. Pensões, não há em Caxarias. E se as houvera não terias como pagar. Portanto, mais uma vez carrega a mala do enxoval e põe-te a caminho. Recordo-me de uma única vez em que isso me sucedeu. Não sei ainda hoje quantos quilómetros distam de Caxarias a Aldeia Nova, nem quanto tempo demorei. Sei que cheguei ao destino. Mas podia ter ficado pelo caminho, morto de susto. Porquê? perguntais.
Um dia vos contarei.


Armando José

8 comentários:

Anónimo disse...

Na Beira como no Algarve, o combóio era o mesmo, o medo era o mesmo e a mesma aventura. Tu na "Fuseta" eu em Vila Franca das Naves (Trancoso). O dia também foi o mesmo. Suponho que 16 de Outubro de 1955.
Um abraço
Nelson

Anónimo disse...

Armando José? não me cai bem ! Permites que continue a chamar-te Alexandrino? Depois de um domingo bem repleto, (os filhos que foram correr a semi-maratona a Lisboa, com mais 20 colegas, abandonaram aquí em casa, tres netos)já bem tarde, ligo o compotador e deparo com este texto magnífico. São sempre assim os textos do Alexandrino. Lí-o uma primeira vez, com sofreguidão (que linda palavra – encontrei-a agora mesmo, num canto da mnha memória remota) relí-o com calma pensando na minha primeira viagem. As recomendações foram identicas. A anciedade, o medo do que não conheciamos, mas desejavamos eram também os mesmos. Vindos do sul ou do norte convergíamos para um mesmo ponto, Aldeia Nova! Aldeia desconhecida para o comum dos mortais, mas que constituío para nós, uma parte importante de nossas vidas. Esse lugar e esse tempo são o cimento que nos mentém unidos e solidários. Obrigado Alexandrino por este momento “de pur bonheur” que passei a ler-te e a recordar. Um abraço. Fernando.

Anónimo disse...

Armando José? não me cai bem ! Permites que continue a chamar-te Alexandrino? Depois de um domingo bem repleto, (os filhos que foram correr a semi-maratona a Lisboa, com mais 20 colegas, abandonaram aqui em casa, três netos)já bem tarde, ligo o computador e deparo com este texto magnífico. São sempre assim os textos do Alexandrino. Li-o uma primeira vez, com sofreguidão (que linda palavra – encontrei-a agora mesmo, num canto da minha memória remota) reli-o com calma pensando na minha primeira viagem. As recomendações foram idênticas. A ansiedade, o medo do que não conhecíamos, mas desejávamos eram também os mesmos. Vindos do sul ou do norte convergíamos para um mesmo ponto, Aldeia Nova! Aldeia desconhecida para o comum dos mortais, mas que constituíu para nós, uma parte importante de nossas vidas. Esse lugar e esse tempo são o cimento que nos mantém unidos e solidários. Obrigado Alexandrino por este momento “de pur bonheur” que passei a ler-te e a recordar. Um abraço. Fernando.

Anónimo disse...

É triste verificar que não há sequer uns laivos, umas résteas de
manifestação religiosa na tua viagem que é somente turistica. Onde está a oração. Talvez por isso foste um dos chamados e não escolhidos.
António da Purificação

Anónimo disse...

Só para ler textos como o do Alexandrino vale a pena manter este meio de comunicação entre os que um dia desembarcaram em Caxarias, rumo a Aldeia Nova, por entre aqueles pinhais, plantados um dia pelo rei agricultor. Custou a primeira vez, mas depois aconteceu comigo que ao cabo do primeiro mês de férias já tinha saudades.
Tudo como nos meus tempos. Só mudou o meio de transporte das malas, que o nosso transporte fez-se sempre à pata. As malas iam empilhadas numa carroça puxada por uma mula muito bravia, conduzida pelo fr. Reginaldo.
Continua a deliciar-nos com os teus textos, Alexandrino.
Um abraço. Toninho

Armando disse...

Ora viva colega da Purificação.
Lembrasse-me eu que tu lerias estas linhas e teria desde logo dado uma explicação prévia para o facto de não ter rezado o rosário na viajem, já que tempo me sobrava. Tu sabes que o objectivo última dessa viajem era "estudar para padre", o que tem implícito aprender a rezar. Ora seria arrogância da minha parte pretender praticar um determinado exercício ainda antes de receber os princípios teóricos e exercitado a prática através dum estágio adequado. Aceitaria o reparo se surgisse a verberar essa falha num estadio avançado da carreira. Não na fase de simples candidato a.
Armando

Anónimo disse...

Como diz o Nelson, “o comboio era o mesmo e o medo era o mesmo”, por todo o lado, de Norte a Sul. As condições de vida da gente e o desmame das suas crianças atingiam limites de crueldade. Descrições destas, a serem verdadeiras nos tempos de hoje, chamariam a atenção dos serviços sociais ou da justiça. Enfim, já lá vão, à vontadinha, 50 anos ou mais…
Histórias assim bem contadas, são sempre arrepiantes e o nosso blogue transmite-nos algumas principalmente dos seus começos. Delas ressalta sempre a bonomia do resultado final após muitas canseiras e aventuras. Valeu a pena? Muitos dirão que sim e o espírito de gratidão leva-me, por exemplo, a aceitar e realçar a intervenção do Manuel Guerra, no último encontro.
Das nossas viagens, às dezenas, para além do episódio caricato do vinho de missa que o Alexandrino provou, lembro-me também de pormenores que ainda hoje me fazem rir à gargalhada. Nem tudo era mau e, por mais que me purifique nas águas onde nado, nunca mais me abandona este sabor a ferro, fumo e hulha queimada de outrora.
Com idades tão jovens, cada distância à nossa casa era uma provação e a minha também se media por muitas horas de caminho, mas nada que se comparasse com a de alguns que vieram da Madeira e dos Açores. Onde andam esses?
Um abraço.
Ferraz

Anónimo disse...

Um texto a não perder. Porque não escreve um livro?