quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

"VEMOS, OUVIMOS E LEMOS, NÃO PODEMOS IGNORAR..." - uma reflexão oferecida pelo Alexandrino, que a administração do blog entendeu partilhar com todos.

D.N. Quarta, 7 de Janeiro de 2009

ALZARITH TOMBADA NA RUA (Baptista-Bastos Escritor e jornalista) b.bastos@netcabo.pt

Aqui, a morte não consente metáforas. A miúda está estendida na rua, um fio de sangue saiu da nuca e secou no pó da rua, a rua traça um diâmetro com a eternidade. Chamava-se Alzarith, tinha seis anos, e corria - sabe-se lá para onde? Mas corria, penso, atribuindo à modesta ideia a substância improvisada das coisas. Os miúdos são feitos para correr e transportar no riso a felicidade dos adultos. Os miúdos não nascem para sujeitos destas fotografias, marcadas pela recôndita obscenidade da morte. Podemos, talvez, reconstituir, mentalmente, o silêncio de depois do tiro fatal. A rua está deserta. Volátil, o pó atribui à cena uma densidade inesperadamente bela, comovente e humilde. Alzarith, os cabelos longos de Alzarith parecem uma estrela no chão; os braços de Alzarith estão abertos, crucificados num espanto sem palavras, num assombro sem piedade; e uma das pernas ergue-se levemente. Jaz. A fotografia não é o mudo instante de uma tragédia. É o absoluto da infâmia. É a insuportável humilhação aplicada pela morte. Sem tecto, entre ruínas. Lembro Raul Brandão, pelo desamparo exposto no corpo caído numa rua de prédios cavernosos, fieiras de cavos olhos desorbitados. Nem vivalma - e a rua é longa e larga. Pressente-se o silêncio e a desolação. A quem pertence esta Alzarith, cujo nome o repórter fotográfico apôs na legenda, tirando-o do árabe antigo e cujo ambíguo significado poderá ser: a que ninguém conhece. Mal aplicado o nome: alguém deverá, certamente, conhecer a menina caída na rua. Serão vivos, ainda, os pais? Terá irmãos e irmãs? Quem a chora? Quem a procura? Quem por ela desespera? Houve um homem desavisado, e certamente em dia de cólera, que descarregou, em duas frases cruéis e cegas, o secreto desassossego que o perseguia: "Todos somos culpados. Ninguém é inocente." Alzarith é culpada de quê? De ter nascido num mundo concentracionário, de ser cativa de uma época da qual tudo ignoramos ou tudo desejamos ignorar? A fotografia evoca a perda de sentido e, também, a teatralização com que a morte se ornamenta, sem arrependimento nem pesar. O conceito de crime (penso agora, examinando, detidamente, a imagem e o que ela oculta) adquire, aqui, uma envergadura difícil de interpretar. A comparência do horror, ei-la, como urgência universal da memória e da auto-acusação. Multiplicam-se as declarações piedosas. As metáforas do arrependimento, da confissão e das desculpas passam a outra escala. E Alzarith está estendida na rua, tornando-se numa outra banalidade da aversão e do ódio. Na gíria, foi reduzida a um bom "boneco", tema de primeira página de jornal ou de capa de revista. Inventaram-lhe um nome. Porém, será sempre ela, a menina morta numa poeirenta rua de Gaza.

3 comentários:

Armando disse...

Não era minha intenção trazer este assunto para o blog, mas agradeço ao Nelson tê-lo feito. Pretendi tão só partilhar a minha preocupação com os mais próximos. Não pretendo implicar o blog numa tomada de partido . Porém não podemos ficar indiferentes ao massacre de inocentes e indefesos, em nome da cultura humanista que partilhamos. Este texto pode ser explicitado por muitos outros esclarecimentos complementares. Acrescento apenas mais este pequeno texto.
“Ao certo não sei quantos habitantes vegetam internados na tal Faixa de Gaza. O número, de resto, é irrelevante. Bem como a idade e o género: homens, mulheres, velhos ou crianças é tudo igual. É tudo "espécie cinegética autorizada". Sejam quantos forem, o que sei, de propaganda certa, é que se dividem em duas categorias gerais e totalistas: os que têm um terrorista do Hamas oculto dentro deles; e os que têm um terrorista do Hamas escondido atrás deles. É por isso que, piedosa, cirúrgica e justiceiramente, vão ter que ser todos abatidos.” Publicada por dragão em 1/06/2009 08:31:00 PM
Que me desculpem os que têm uma visão diferente. Aceito igualmente os seus pontos de vista.
A. Alexandrino

Anónimo disse...

Concordo que toda a guerra “é o absoluto da infâmia mas não concordo que, em guerra alguma, “a morte não consinta metáforas”. Certo é que quem a viveu tem perante as imagens que, diariamente, lhe entram em casa, as reproduções, as representações dos horrores da guerra viveu.
Sem pretensiosismo de qualquer espécie queria partilhar convosco o que em determinado momento vivi e num outro rabisquei, sem valor de escrita, mas com grande sentido para mim!...

O ZÉ

A manhã vai rósea
presa em degredos
marcados de ardósia
em verdes negros
que os céus pintaram
de cacimbo baixo,
Já todos se levantaram
mas de ânimo em baixo.
Como Zunis, zumbis
deslizam pelo quartel
como zumbis, zunis
como o vento em papel,
mãos inertes nos bolsos
de cabeças derrubadas
como se não tivessem ossos
suas mentes perturbadas.
Olhos sem direcção
sombrios como a manhã
sem conter a emoção
de corações em lágrimas
sem saberem o amanhã
de vidas em anagramas
sem sentido, vida vã.
Os pássaros silenciosos
quietos nas seringueiras,
muito estranhos, preguiçosos
e pousados nas mangueiras,
sem fome, e mais além
uma preguiça nas asas
que ali só os retém
prisioneiros em gaiolas.
Chega ao quartel um ruído
que acentua o silêncio negro
um ruído de pilão cozido
que os prende ao degredo
daquele ritmo lento.
Presos já não no segredo
da doce brisa ou do vento
mas de doble triste a finados
com que foram enganados.
Ah quanta melancolia
quanta, quanta ilusão
aquela alma vazia,
que sinto inútil e fria
em cada um, seu ser, coração!
Há luto no coração
muito negro, cor de breu
morreu quem lutou em vão,
hoje ele, amanhã eu!..
Há luto muito pesado
numa dor que se quebrou
num corpo armadilhado,
o Zé, o Zé, o Zé finou!..
O Zé Domingos morreu
aos gritos sem voz contida
porquê ele, e não eu?
Gritava com força a vida!..
cadáver da vontade feita,
mito real, sonho a sentir,
vida interrompida, eleita
para o destino de partir.
O cadáver do Zé Domingos,
está ali, está lá,
na capela improvisada,
á sorte abandonado,
em lençol embrulhado
que logo manchou de sangue,
em caixão improvisado,
entregue a si e ao mundo,
por não ter caixão de chumbo.
Ali ficou, pesadelo permanente,
aflição de náusea e vómito,
a todos perturbava a mente
espontâneos e indómitos.
Amavam-no sem reticências,
lembravam seu semblante,
sua alegria ambulante,
suas anedotas frescas,
contadas em barítono perfeito,
com o seu modo e seu jeito,
preenchidas de pormenores,
imaginativas, hilariantes,
que enchiam os instantes.
Era amigo.
Amigo a tem inteiro,
entre muitos o primeiro,
daqueles que a guerra gera,
a sorte, e o fado alimenta,
que se agarram como a era,
que resistia à tormenta,
a nossa vida tempera
com o bem, sem nenhum mal
sabendo temperar sem sal!..
O Zé estava ali, estava lá,
estava ali a sangrar,
dia eternidade, a inchar
negro, negro a entardecer
perdido já em não ser!..
Nervosos sem orações,
apenas lamentações,
à mistura com transmissões,
mensagem codificada
a pássaro que não voava,
cada um por si olhava
o céu, não para rezar,
pedir um anjo, ou pedir bênção,
antes um helicóptero
que traga outro caixão
de chumbo para o Zé, sem ceptro.
Era doloroso tê-lo ali a inchar,
já morto, em decomposição,
seu corpo a minar
pelo calor que era Verão.
Era pequeno o caixão,
tentaram quebrar-lhe as pernas
e dar corpo ao caixão,
para que ali coubesse,
em corpo que se enobrece
mas o Zé, apesar do seu cheiro
só a morte o apodrece,
protestou, exigiu ficar inteiro.
Era um morto tão nobre,
tão grande, tão grande,
tão grande era o pobre,
que não cabia na bitola,
miserável de seu país,
que caixão lhe dava por esmola,
país, que não Pátria,
que o tirara da terra
e o empurrara para a guerra.
Cabia-lhe agora o direito,
de o ter talhado à medida,
talhado bem a seu jeito
se a vida estava perdida!..
A vida estava perdida?
Estou louco ou a sonhar?
Sono de ser, ser remédio,
estou louco a delirar!..
Leve mágoa, breve tédio,
vestígios do que já foi,
não sei se pára se fluí;
se evoco com dor tua Vida,
sei que existe mas dói.
Meu Deus porquê?
Para quê esta força traída!..
E a noite se fez dia,
em tempo noite de breu
que só África, África tem
enfeitada a seu jeito
no sangue que corre do peito.
O helicóptero já não vem.
Fez-se silêncio de morte,
e a noite negra de breu
apesar de bem juntinhos,
remetidos ao avesso,
cada um está sozinho,
sem palavras, adereço,
ruminando a solidão,
a morte, talvez, a caminho,
sem dó, sem compaixão.
Mãe estás-me a ouvir?
Não posso morrer sem ti,
eu quero partir, fugir,
eu quero sair daqui.
João com o aerograma,
sobre a tampa do caixote,
delirava, sonhava, sonhava,
que escrevia o seu drama,
dando de todos o mote,
em forma de telegrama.
A vontade toda de fugir,
desfeita a última ilusão,
de gritar, de não mentir,
o valor da pátria razão
de quem o roubou da terra
e sem dó, nem compaixão,
o enviou para a guerra.
O cadáver do amigo Zé,
ali ao lado, ali ao pé,
era suprema acusação
dum povo, duma nação:
que soldado morto não é “herói”
para os políticos é empecilho,
que se tenta enfardar
no primeiro caixão vazio,
no caixão que se achar,
como qualquer andarilho.
Mãe, não quero morrer aqui,
esventrado por granada,
naquela emboscada ali,
num assalto à mão armada,
numa mina –anti- carro,
numa arma armadilhada,
em bailarina abraçado,
na cama do abrigo,
mãe, quero morrer contigo.
Mas não. O João mentia:
mãe, por estas “bandas”
há saúde, paz e alegria,
as águas são cristalinas,
há pássaros e poesia.
Não há guerra, não há minas,
situação normalizada,
terra de paz e amada.
Quem morre é por desastre,
por desastre ou por tolice,
se os conselhos não ouvisse.
Somos todos bem tratados,
e melhor alimentados.
Mandou visitas, saudades,
pensamentos bem pensados,
os cumprimentos da praxe,
a todos disse amar,
em escrita epistolar!..
Como o Zé, sentia-se a morrer
na mentira verdadeira,
sentia-se a apodrecer,
na alma prisioneira,
na alma a inundação,
em prece de aflição,
que Deus nos cubra de bênção,
nas horas de aflição,
nas horas que sobram
de guerra, dor, solidão.
O tempo não desconta, chora,
o tempo não sussurra, grita,
o tempo não tarda demora,
nada dele resta e fica.
Hoje, décadas do tempo não fala,
fez-se pêndulos silenciosos,
que rói, rói, mas não cala
a corpos vazios incensos.
Se décadas depois, nada esquecido,
nada compreendes, nada persegues
ao trazeres por ilusão teu ser contigo,
nada és, nada podes, nada consegues!..
Jazes morto. Morto, ponto final.
Teu nome morreu contigo.
E nós, há décadas emboscados
em sequelas entrincheirados,
pela dor do stress minados
nossas vidas são recados.
Recados a quem de direito
de quem se dispôs a morrer
deste ou daquele jeito
e que morre hoje a sofrer!..

Abílio Rocha

Armando disse...

Felicito-te amigo Rocha pelo teu poema. Estarei perante o Rocha professor de Aveiro?
O teu poema merece saltar para a primeira página. Muitos de nós, passamos pela guerra das colónias de África e podemos ter algo a dizer. Também lá estive, e vivi igualmente esses sentimentos que tão bem descreves. Vivi também a morte de amigos, vítimas da guerra. A minha sensibilidade ao drama das pessoas massacradas em Gaza, não me provém de nunca ter passado por momentos de ver gente a morrer, nem de não ter vivido em palcos de guerra. Aqui o que me angustia é o massacre de inocentes humilhados, esfomeados e acantonados para melhor serem massacrados. Assim como me revoltou o massacre de Wiriamu em Moçambique, onde estive. Na altura só mais tarde se vinha a saber.
A. Alexandrino