“Esta é a altura, este é o momento.” - Sócrates, José, dixit.
Ocupado que está com as funções de adido cultural na Embaixada de Portugal em Madrid e na provável elaboração de mais uma obra literária, o João de Melo não responde ao repto de nos fazer companhia neste blogue. Quiçá responderá, já tendes matéria publicada sobre as minhas recordações de Aldeia Nova. O publicado é do domínio público, por isso não achamos abusiva a publicação de excertos da sua obra. É claro que qualquer semelhança com o velho casarão de Aldeia Nova é pura coincidência, já que não está registado que por lá tenha passado um menino de nome Nuno Miguel.
“Estaremos em 1960, quando o próprio autor — nascido em 1949 em Achadinha, na ilha de São Miguel — deixa os Açores para prosseguir estudos no Seminário dos Dominicanos? É possível, há mais indícios autobiográficos (senão mesmo pegadas)”
Esta dúvida para nós será académica, pois sabemos a que casarão se refere, a que dormitório se acolheu, a que reitor faz referência.
A. Alexandrino
“Nuno Miguel sentiu-se levado ao contrário: o seu espírito saiu das horas diurnas de Lisboa para a noite pesada da província. Atravessou o país na diagonal, em companhia de dois homens sorridentes que durante três horas se esforçaram em vão por entender o seu discurso açoriano. No decorrer dessa noite infinita, ou de todas as que se lhe seguiram, fizeram-lhe dezenas de perguntas inúteis, e ele esforçou-se sempre por a elas responder dum modo claro, martelando bem as sílabas e escolhendo, por simples intuição, o seu melhor vocabulário. Ao mesmo tempo, preocupou-se em evitar o emprego dos sons ossudos, decidindo-se por imitar a pronúncia redonda e as frases proferidas pelos seus interlocutores.
Quando chegaram à aldeia e ele avistou ao longe um casarão iluminado na noite sem estrelas desse tempo, percorreu-o um indefinido terror. A casa era afinal um túmulo em ponto grande. A noite que a rodeava dificilmente deixava de parecer-se com a seda de que são feitos os véus dos defuntos. Apeou-se da furgoneta e teve de ser amparado pelos ombros, porque cambaleava nas trevas. Sono, fadiga e desânimo vinham juntar-se à sua timidez e apô-lo ao ridículo e ao riso dos outros. Daí a pouco, vieram recebê-lo dois padres acinzentados no sorriso que trajavam túnicas cor de pérola. As cabecinhas de pássaro, rapadas à navalha na altura da nuca, tornaram-se irrequietas, lá ao cimo do escapulário e do capuz descaído sobre os ombros. O mundo estava todo do avesso, porque Nuno sempre vira os padres vestidos de negro. Pensava que só essa cor aplicava a importância e a mortalha mundana de todos os padres, o seu tristonho olhar de corvos e até a pequena santidade dos seus ritos.
Também eles se inclinaram para ele e apuraram o ouvido, pedindo-lhe que repetisse e falasse mais alto, a fim de o perceberem. Compreendeu que começavam a acusá-lo de ter chegado com dois meses de atraso. A acusá-lo da sua linguagem, do malote de ripas que o pai fizera e cuja pega de alumínio se partira, e a acusá-lo da primeira e única solidão que os meninos herdaram de mamã. Já com a bagagem arrumada debaixo da cama que lhe havia sido reservada ao canto do dormitório, disseram-lhe para descer. O reitor esperava-o cá em baixo, ao fundo de dois lanços de escadas. Viu-o de pé, entre os bustos dos santos perfilados nas suas peanhas, e receou estar sendo levado à presença dum colosso. Disseram-lhe que devia beijar-lhe a mão, flectir simbolicamente os joelhos, baixar a cabeça e dizer-lhe boa noite. Além da lisura dos tecidos e das polpas de carne que a almofadavam por dentro, impressionou-o logo o tamanho excessivo daquela mão. Ao olhar lá muito para cima, na esperança de lhe ver o rosto, avistou apenas as narinas dum homem ainda jovem, mas da altura do tecto. Os braços findavam nuns ombros grossos e tão salientes como asas de anjo. Mais tarde, quando se tomou vítima daquela força, Nuno havia de pensar que existia uma harmonia perfeita entre a estatura do homem e o poder quase divino da voz, dos passos pesados e da justiça canónica do reitor. Os mesmos braços que fortemente o estreitavam contra si e quase o tomaram em peso seriam afinal os que vezes sem conta, ao longo de anos, o educariam ao bofetão. Despedidas de surpresa e no meio do silêncio, as bofetadas abriam clareiras de corpos derrubados que se espalhavam pelo chão das salas de estudo como corolas de animais abatidos. Força, violência e exaustão, além do castigo de ir rezar durante as horas do recreio, educaram-no para o respeito e para o ódio. Contudo, sempre que dera por si a voar e a cair das cadeiras sob o impulso daquelas mãos, limitara-se a invocar o santo nome de Deus, sabendo que o fazia repetidamente em vão.
No refeitório, uma onda de entusiasmo recebeu-o de mesa em mesa, ao ser apresentado a todos como «o açoriano». Assim que o reitor bateu as palmas, e o prefeito, secundando-o com ar servil, exigiu silêncio, sua reverência deu as boas-vindas ao candidato, deplorou os seus dois meses de atraso nos estudos e pediu a todos a caridade de o ajudarem na Matemática e no Latim. Estava finalmente entre os muitos que Deus chamara e os poucos por Ele escolhidos – com um prato de carne assada e esparguete na frente, os ossos moídos pela fadiga e um sino de pranto na alma. Sem olhar os rostos que o rodeavam e começavam a inclinar-se para si, viu os rostos. Recebeu nos seus o peso de todos aqueles olhos. Aos primeiros interrogatórios respondeu que se chamava Nuno Botelho, ia fazer onze anos e tinha seis irmãos nos Açores. Educadamente, pediram-lhe que fizesse o favor de repetir. E como ficassem a olhar uns para os outros e a franzir os lábios e a encolher os ombros, sempre educadamente, teve a lucidez triste de pensar que talvez fossem cidadãos dum país em tudo diferente do seu. O mesmo no nome e na religião, sem dúvida. Porém, quanto ao nome, ao verbo e à origem dos seus santos, um país sem mar nem barcos e já muito distante da sua infância.
Após o recreio nocturno, seguiu a multidão dos seminaristas até à capela. Embrulhado no tropel dos passos que martelavam os sobrados e depois fizeram ranger as bancadas do templo, não pudera ainda aperceber-se de que ali as horas haviam sido subtraídas aos relógios. O tempo era a sineta de bronze, as filas intermináveis, o culto do silêncio, a proibição religiosa da alegria. Serviu-se dum manual de orações para seguir as rezas que a maioria aprendera já a reproduzir de cor. Compreendeu apenas que o Sono dos Justos, ao qual o salmo aludia, estava já clamando no deserto, dentro de si. A fadiga do corpo turvava-lhe o espírito, esvaziando-o de todas as emoções. Depois, já com as luzes do dormitório apagadas, desejou poder dissolver-se nas trevas e extinguir-se na noite enigmática do futuro. O som de esporas dos colchões, o sussurro dos vizinhos de cama e o chiar de murganho dos sapatos do prefeito perturbavam definitivamente o silêncio interior e esse desejo de sono e dissolução. Sabia que ia precisar de dormir muitas horas seguidas para conseguir superar o tumulto do mar e dos barcos, o qual perdurava dentro de si como uma surdez que lhe envolvia não um mas todos os sentidos. Não lhe fora dito ainda que, no outro dia e em quantos deviam seguir-se-lhe, viria sempre um prefeito às seis da manhã acordá-lo. Ele bateria as palmas ao longo daquele corredor de camas, os seminaristas pôr-se-iam religiosamente de pé, benzendo-se estremunhadamente, e a sua voz fria e madrugadora diria dum modo imperativo, difícil de reproduzir:
– Benedicamus domino!
– Deo gratias!
Quando estava quase a dissolver-se nesse sono sem princípio nem fim, do qual vieram a turvar-se todos os anos, recomeçaram a girar-lhe dentro da cabeça as turbinas dos barcos, o zumbido do motor da furgoneta atravessando a noite provinciana e também as vozes daqueles que, perto de si, continuavam a chamá-lo baixinho. Atormentava-os uma curiosidade minuciosa, feita de segredo e clausura, por mais esse naufrágio. Só que aquele náufrago, assim inquirido e misterioso, viera mesmo do mar e só ele trazia consigo a notícia dum passado açoriano.
Aterrorizou-o um pouco a ideia de ficar ali, abandonado à presença de tantos estranhos. De dormir entre gente vinda de todas as terras do seu país, falando a mesma língua, mas gente que não entendera ainda uma única das suas frases e jamais entenderia uma ideia, uma palavra que fosse de cada uma das suas frases...
Para não ter de continuar a responder-lhes e a não ser compreendido, decidiu agarrar na almofada e comprimi-la à volta dos ouvidos. A sua vida ia assim mergulhar num subterrâneo sem fundo nem altura. Nunca mais ele voltaria a ser igual a si mesmo. Então, abriu muito os olhos. Queria conhecer e ao mesmo tempo despedir-se, decifrar e compreender as formas que se modelavam no escuro do dormitório. Amá-las com ódio e odiá-las com amor, talvez. Vendo-as, não estranhou o arrepio e por isso voltou a cerrar os olhos com força. Surpreendeu-o então o facto de o rosto da mãe se ter iluminado, como numa aparição. Havia uma auréola de santa, ou tão-só uma estrela que parecia palpitar no coração da noite. Levado por tal ilusão, tentou sorrir-lhe. Contudo o sorriso dela era também feito de sombra. Não pôde resistir às sombras. Um sorriso assim doía mais do que a dor de estar vivo. Valia talvez um pranto ou um riso convulso. Ao sentir a boca torcer-se e fazer apelo a esse pranto, Nuno procurou suster toda a emoção dentro de si. Prometeu que não ia nunca chorar sobre as lágrimas e sobre a terra da infância. E que ia ser feliz.”
© João de Melo, Gente Feliz com Lágrimas, Lisboa, Círculo de Leitores, 1989.
.
Sem comentários:
Enviar um comentário