segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

AVISO À NAVEGAÇÃO



O facto de ter tomado a iniciativa de transcrever para este espaço um texto do romance do nosso ex-colega João de Melo, acarreta a responsabilidade de adiantar alguns esclarecimentos, considerando que este veículo de comunicação está ao alcance de quem nos conhece e também dos que estão muito distantes da nossa realidade.
Não comungo da mesma visão negativa expressa em “Gente feliz com lágrimas” sobre o seminário de Aldeia Nova. Também não me venho justificar com receio do que quer que seja.
Naquele velho casarão, vivemos em condições precárias, sobretudo quando analisadas sob o prisma dos critérios actuais, mas não tenho a mínima referência a maus tratos. Reporto-me é claro ao que conheço, ou seja, a segunda metade da década de cinquenta do século XX. Tenho orgulho e sinto-me grato pela educação ali recebida.
No entanto, percorrendo este blog, sem censura e sem tabus, deparamos com alguns relatos de injustiça, expostos com toda a frontalidade, mas no cômputo geral vemos um ambiente de reconhecimento a muitos dos mestres que nos acompanharam.
“A invenção é indissociável do trabalho do ficcionista. Até porque, quem conta um conto aumenta um ponto, como diz a sabedoria popular. E o romancista nada mais é do que um contador de histórias onde se misturam, em grau variável, imaginação e realidade.”
“Ao abrir um romance, o leitor sabe que está entrando num mundo de fantasia, no qual o autor não tem obrigação de respeitar as regras da realidade.”
Assim, não lhe causa a menor estranheza um protagonista acordar, uma bela manhã, transformado em insecto ou escrever frases do tipo: “Despedidas de surpresa e no meio do silêncio, as bofetadas abriam clareiras de corpos derrubados que se espalhavam pelo chão das salas de estudo como corolas de animais abatidos.”
Convivi um ano com o tal reitor e nunca me apercebi que o seu desporto fosse fazer rolar corpos de alunos pelo chão ao impacto das suas bofetadas.
Cultivava-se em Aldeia Nova, já na altura, um espírito de grande abertura comparativamente a instituições idênticas. Incentivava-se o espírito crítico e os alunos eram postos ao corrente do que se passava no país e no mundo na medida das possibilidades de então. Recordo por exemplo o entusiasmo que se viveu com a campanha do General Humberto Delgado.
Este tipo de educação leva-nos precisamente a acolher todas as perspectivas sobre o nosso passado comum em plena liberdade e compreensão.
É sintomático que o nosso amigo Isidro da Silva Dias no texto anterior, traga à colação a obra de Virgílio Ferreira, “Manhã Submersa”, que debruçando-se sobre o mesmo tipo de estabelecimento de ensino, descreve uma vivência de autêntico suplício, com uma educação repressiva num espaço de aprisionamento.
“Manhã submersa” decorre num seminário da Beira Interior nos anos 20.
“Gente feliz com lágrimas” relata um seminário dos anos 60.
Transcrevendo palavras do Eduardo Bento:
Como não recordar esse tempo, recuperar esse lugar?! Foi aqui que, irmanados, no mesmo barco nos lançámos na aventura dos dias; foi aqui que nos fizemos, nos humanizámos e recebemos uma inapagável chama que para sempre ficou a acalentar as nossas vidas e é ainda essa chama que nos impulsiona pela encosta de um destino comum. Para sempre”.

A. Alexandrino

12 comentários:

Anónimo disse...

Estou absolutamente de acordo com o teu texto, amigo Alexandrino. Leio sempre com grande prazer tudo o que relata o nosso passado em Aldeia Nova ou Fátima. Neste caso concreto temos que dar um desconto, tratando-se de um romance, mesmo se a realidade não anda muito longe. Conhecí bem o responsável a que o romancista faz mensão, mas nunca foi meu superior nem director. Sempre tive dele uma opinião muito positiva. Para manter o respeito numa casa com uma centena de adolescentes, é evidente que era necessária muita disciplina e alguns bofetões. Tenho a certeza que nenhum director castigou tanto os alunos como eu os meus filhos e só são quatro... Sempre soprou um vento de liberdade nas casas dominicanas, mesmo em Aldeia Nova. Evidentemente que houve alguns bofetões e castigos e privações... Muita coisa negativa, mas o positivo foi mil vezes superior. Tudo isto é vida e foi tudo isto que fez de nós o que hoje somos. Je suis fier...tenho orgulho do meu passado nos dominicanos e estou-lhes reconhecido e penso que o João de Melo também... Não seria o romancista que é se não tivesse passado por Aldeia Nova. Seria melhor ou pior, mas seria diferente... e nós amamo-lo tal como ele é tal como escreve. Um grande abraço, Fernando.

Anónimo disse...

Caros amigos,

Sabeis vós tão bem ou melhor que eu o que é um romance e um escritor!
Porque associais tão linearmente a opinião do tempo vivido pelo João de Melo em Aldeia Nova com um romance e um ou dois dos seus personagens? Não é necessário defender um personagem de um romance! Muito menos encarar um romance como a verdade em que o seu autor acredita. Por que razão quereis chamar autobiografia a um romance?
Oh amigo Alexandrino - desculpa a fraternidade da linguagem,uma vez que não nos conhecemos mas já nos estimamos - conviveste um ano com o tal reitor!? Com aquele não, diria eu! Senão tinhas sido aviado como "insecto" e pelos vistos com o reitor que conviveste não foste! Nem eu que tive o mesmo que tu três ou quatro anos e lhe estou muito grato e não tenho ideia de ter levado pancada dele!
Claro que o escritor se vale sempre das suas experiências de vida para escrever, mas se não se afasta delas fará um único livro autobiográfico ou, com sorte e uma vida agitada, dois ou três.
Inclino-me seriamente pelas conclusões do Alexandrino, do Fernando e pelas palavras do Eduardo Bento.
Mas atenção que os traços leves ou negros e as realidades de um romance passam muito longe da vivência do autor e, no caso em apreciação, seguramente se afastaram da realidade pela simples certeza de que o romance não passa ao lado, tende a passar pelas nuvens e quantas vezes pelo impossível, pelo inverosímil e mete uma dúzia de camelos pelo buraco de uma agulha, quando Cristo apenas imaginou que passaria um - que não passava.
Não corremos o risco de encontrar no romance em apreciação o reitor que alguns olhos vislumbram. Afinal todos dizem que era muito diferente, por que razão se toma por realidade uma fantasia?
Assim, concluo com toda a certeza que o Nuno Miguel não foi teu colega nem do João de Melo, muito menos meu, senão teríamos sido bem aviados.
Quero fazer a justiça ao João de Melo que ele não é seguramente igual ou plasmado nos seus personagens. De resto, conheço a sua obra, e os seus variados personagens e não o identifico neles, embora, conhecendo-o de muito perto, quando leio os livros, possa ter a tentação de o ver a fazer as figuras mirabolantes das suas invenções (pelo menos as figuras masculinas...)que me causam os mais diversos sentimentos rindo ou chorando com eles. Lembram-se do "cão de pai" que passa pelo mesmo livro...? O pintor tem sempre a mania de nos sensibilizar ao seu jeito com aquilo que nos agrada, desagrada, agride, faz rir ou chorar. Fiquemos por aí. Salvo qualquer interpretação autêntica.

Acabo por vos dizer, meus amigos, que é gratificante abordarmos este e todos os outros temas, com amizade, nestas nossas idades, com a clareza de espírito e a sabedoria de quem já viveu mais de metade da sua vida. E, em vez de sofrermos com isso, parece-me que sentimos contentamento nesta nostalgia de nos recolocarmos em Aldeia Nova, umas décadas antes, olhando para trás e conseguindo tirar partido das próprias pegadas e dos dias que ali gravámos para sempre na nossa memória de vida.

Um abraço para todos.

Anónimo disse...

Acabei de ler os textos e comentários subsequentes do Alexandrino, do Fernando e do Antero com os quais, entre outros, continuo a reaprender as minhas artes de escrever, pensar e retórica.
Mas, se até os mortos gozam de um período de protecção à sua memória, durante 50 anos, não devemos, pelo menos outro tanto aos vivos? - Eu não apanhei, mas vi, ou ouvi o som e a justificação baseada no "pão dos pobres". Para mim, atendendo à época, é excessivo tudo o que, nesta data, se diga além de "líder natural e simples chefe quando tudo o resto falhava" ou "ninguém sabe a verdade toda; só Deus sabe", porque não estamos a precisar de ajuda judiciária, nem da verdade judicial.
A quem pense que "Liceo de Aldeia-Nova" é uma expressão pejorativa, lembro que "Liceo" foi, durante muitos anos, a palavra que precedeu "Liceu" e que o ensino ministrado em Aldeia-Nova era o ensino liceal, puro e duro, bem diferenciado, para melhor e pior, q.b., das escolas industriais e comerciais, com base no qual éramos avaliados no Liceo/Liceu estatal, em que sempre fizemos boa figura. Nem sequer as missas tinham mais quantidade que em outros colégios internos mais laicos de tempos mais recentes. Por alguma razão. Não é assim, frei João Domingos? frei João Leite? frei Alberto? Toninho? frei Miguel? e outros. Quem não teve do mesmo, se não ficar "roído de inveja", é "parvo". Certo?
Estudámos numa escola dirigida por pessoas que, com toda a clareza, assumiam que a verdade ensinada e/ou pregada, deve ser, previamente, uma verdade investigada, inclusive no que se refere ao direito divino. Não é, frei Mateus? frei Bento? frei João Domingos? frei João Leite? frei Alberto? frei Miguel? Provincial das Províncias portuguesa e angolana? Prof. Guimarães? Prof. Campante? Prof. Pinho? Treinador António Silva? estudante Pacheco? estudante Mendes? estudante Guerra? estudante Farinha? estudante Antero? estudante Guedes? estudante Carvalhais? estudante Sabença? E tantos outros (Exemplo: dos 40 entrados em 1964, restavam 20 em 1967, 5 em 1970, 1 em 1972, zero em 1973 - não fui eu o último, nem este não precisa de falem por ele).
Quanto à "Manhã Submersa", livro do início dos anos 50 e filme do início dos anos 80, o pior que se pode dizer é o diálogo entre 2 cabras. Uma comia fitas do filme e a outra perguntava pelo sabor. A resposta foi que o sabor do livro era melhor. Eu não sei qual delas tinha razão, a que comia, ou a que perguntava. Li o livro como livro. Vi o filme como filme e em relação com as décadas de 20 e de 80, respectivamente, tendo em conta um estabelecimento de 1926/32, no Fundão, e a existência de escritores experimentados e muito maduros.

Parece que já estamos a precisar da ajuda urgente do Ezequiel Vintém.

Ezequiel, empresta-nos o “Ninguém”.

Cumprimentos

Isidro da Silva Dias
isidrosdias@gmail.com

Anónimo disse...

Errata:

Mais acima, onde se lê:

"...não fui eu o último, nem este não precisa de falem por ele"

deve ler-se

"...não fui eu o último, nem este precisa que falem por ele"

Cumprimentos

Isidro da Silva Dias
isidrosdias@gmail.com

Anónimo disse...

P.S.

Ainda faltam aqui 4 pontos mais emocionais, mas muito objectivso, muito pequeninos ou enormes segundo o juizo de cada um.

1) Nesse ano lectivo de 1964/65 o "Pacheco" já tinha o facies feliz do "João de Melo" que capeia o livro, correspondendo bem à sua última frase do ponto 1 do capítulo I, na primeira noite do "internato gratuito" referido na capa do livro "Gente Feliz com Lágrimas": "E que ia ser feliz".

2) Há muitos, muitos anos, numa visita que fiz ao Convento de Fátima soube que o "João" já lá voltara "muitas vezes", sempre fazendo "muitas perguntas".

3) Quanto ao "Reitor", estejam muito bem descansados. Ele que, comprovadamente, era e continua a ser um líder natural, mesmo quando teve em mãos a gestão corrente, não era um chefe qualquer - era o "xerife". Em data recente, alguém diferenciado e nada beato descreveu a sua presença, com a convicção e o sentimento de ter estado com "um santo".

4) O meu Muito Obrigado - Questões?, aos Dominicanos Portugueses, pelo momento de acerto do relógio de recordações, energia, sonhos, empatias e desassossego. Quando, mais tarde, em 1970/71, participei intensamente no primeiro impulso do Centro de Estudos de Fátima percebi muitas coisas, bem melhor, ao lado de uma pequena equipa que era superiormente coordenada pelo antes referido "Reitor" - quem, como nós, durante a adolescência, fez teatro, dirigiu academias, participou em concursos, escreveu para ganhar um livro, pertenceu a equipas disciplinadas ou jogos colectivos e teve espaço para realizar pequenas loucuras, sabe o que faltou e falta a tantos outros.

28/01/2009
Cumprimentos
Isidro da Silva Dias
isidrosdias@gmail.com

Anónimo disse...

Se alguém se meter com os dominicanos, LEVA...
Ezequiel Vintém

Anónimo disse...

Há por aí alguém com conhecimento e coragem (=boa vontade) para, com um texto, no blog para ter mais amplitude, nos dar uma ideia da situação dos Dominicanos em Portugal nesta altura?
Fiquei com curiosidade em sequência ao Jantar do amigo Celestino no Porto que conseguiu reunir os "Freis Pedro, João Leite, Miguel, Jerónimo Carneiro e Bernardo Domingues".
Têm instalações, além de Fátima, em Lisboa e Porto?

Antero Monteiro

Anónimo disse...

O Antero Monteiro deseja ter mais informações sobre os Dominicanos?
Através do Google, marca “Ordem dos Dominicanos em Portugal” ou algo semelhante e imediatamente encontra varios portões. Entre por ex. Pelo Portão “Ordem Dominicana, enciclopédia Wikipédia” Há matéria para satisfazer muita curiosidade e matar toda a sede de conhecimento sobre esse assunto e tantos outros.em também o email;
www.isdomingos.com através do qual se acède tanto à actualidade dominicana como à actividade cultural, cultual filosofica e teologica... so não temos os perfumes. Fernando

Anónimo disse...

Obrigado amigo Fernando. Já fui dar uma espreitadela, mas a matéria é vasta e interessante de facto. Vou fazer o trabalho de casa.
Já agora, por todas as razões e porque isto é um domínio de amigos tratemo-nos, como amigos, por tu. Combinado? É assim que tenho feito mesmo com os que já têm seguramente mais idade, mais cabelos brancos, maior careca e logo mais sabedoria do que eu!
De outro modo eu já teria faltado ao respeito a muitos dos bloguistas.
Um abraço.
Antero Monteiro

Anónimo disse...

De acordo caro Antero!
Correspondo quase completamente aos critérios que são os teus para tratares por tu (TUTOYER)em françes.Evidentemente muito mais idade (1940) e os cabelos que me restam são brancos. Quanto à sabedoria nunca foi apanagio dos mais velhos. Diz Pierre Corneille, poeta françes:"aux âmes bien nées, la valeur n'attend point le nombre des années" Um grande abraço para ti e todos os que me lerem,Fernando.

Anónimo disse...

Caro Fernando,
noto com agrado pelos textos lidos que a sabedoria é muita e a conseguiste absorver também a cultura francesa, fazendo belas citações.
Lendo diversos textos para me inteirar da estrutura do blog e dos pensamentos que por aqui passam ( só entrei nesta onda em Out-2008...) se bem percebi, moras para os lados de Clermont Ferrand, cidade agradável com as memórias da Idade Média bem patentes e com as marcas do desenvolvimento da actualidade.
Quanto à idade ( eu sou de 1953) ainda não cheguei a avô, mas o meu trabalho está feito e espero brevemente lá chegar. Não deixa de ser mais um objectivo a atingir.
Um abraço.
Antero Monteiro

Anónimo disse...

Caros amigos, caro Antero
Tu nasceste no ano em que eu entrei para Aldeia Nova !...
Vivo nesta bela e acolhedora cidade de Clermont Ferrand desde 1970, depois de ter cá passado um ano (sabático) em 1965. A lingua e a cultura francesas ocupavam verdadeiramente o primeiro lugar na nossa formação tanto em Aldeia Nova como em Fátima.
A França (tendo em conta o contexto nacional da época) era realmente o país da liberdade, dos direitos humanos. Liamos com sofreguidão todos os jornais e revistas franceses que podiamos desentocar. Quando vim a França pela primeira vez já falava correctemente a lingua de Molière. Un grand merci aux Dominicains. Continuei a cultivar-me com a minha mulher e sobretudo a minha sogra, mulher de grande cultura e sensibilidade literária. Mais um bocadinho com os quatro filhos que tentei acompanhar nos estudos... No que se refere ao inglês que pouco a pouco suplantou o frances sempre fui zero e também tenho conciência que o meu portugues está a precisar de ser revisto e corrigido... É assim a vida... Um abraço, Fernando.