sexta-feira, 9 de janeiro de 2009
O ZÉ
A manhã vai rósea
presa em degredos
marcados de ardósia
em verdes negros
que os céus pintaram
de cacimbo baixo,
Já todos se levantaram
mas de ânimo em baixo.
Como Zunis, zumbis
deslizam pelo quartel
como zumbis, zunis
como o vento em papel,
mãos inertes nos bolsos
de cabeças derrubadas
como se não tivessem ossos
suas mentes perturbadas.
Olhos sem direcção
sombrios como a manhã
sem conter a emoção
de corações em lágrimas
sem saberem o amanhã
de vidas em anagramas
sem sentido, vida vã.
Os pássaros silenciosos
quietos nas seringueiras,
muito estranhos, preguiçosos
e pousados nas mangueiras,
sem fome, e mais além
uma preguiça nas asas
que ali só os retém
prisioneiros em gaiolas.
Chega ao quartel um ruído
que acentua o silêncio negro
um ruído de pilão cozido
que os prende ao degredo
daquele ritmo lento.
Presos já não no segredo
da doce brisa ou do vento
mas de doble triste a finados
com que foram enganados.
Ah quanta melancolia
quanta, quanta ilusão
aquela alma vazia,
que sinto inútil e fria
em cada um, seu ser, coração!
Há luto no coração
muito negro, cor de breu
morreu quem lutou em vão,
hoje ele, amanhã eu!..
Há luto muito pesado
numa dor que se quebrou
num corpo armadilhado,
o Zé, o Zé, o Zé finou!..
O Zé Domingos morreu
aos gritos sem voz contida
porquê ele, e não eu?
Gritava com força a vida!..
cadáver da vontade feita,
mito real, sonho a sentir,
vida interrompida, eleita
para o destino de partir.
O cadáver do Zé Domingos,
está ali, está lá,
na capela improvisada,
á sorte abandonado,
em lençol embrulhado
que logo manchou de sangue,
em caixão improvisado,
entregue a si e ao mundo,
por não ter caixão de chumbo.
Ali ficou, pesadelo permanente,
aflição de náusea e vómito,
a todos perturbava a mente
espontâneos e indómitos.
Amavam-no sem reticências,
lembravam seu semblante,
sua alegria ambulante,
suas anedotas frescas,
contadas em barítono perfeito,
com o seu modo e seu jeito,
preenchidas de pormenores,
imaginativas, hilariantes,
que enchiam os instantes.
Era amigo.
Amigo a tem inteiro,
entre muitos o primeiro,
daqueles que a guerra gera,
a sorte, e o fado alimenta,
que se agarram como a era,
que resistia à tormenta,
a nossa vida tempera
com o bem, sem nenhum mal
sabendo temperar sem sal!..
O Zé estava ali, estava lá,
estava ali a sangrar,
dia eternidade, a inchar
negro, negro a entardecer
perdido já em não ser!..
Nervosos sem orações,
apenas lamentações,
à mistura com transmissões,
mensagem codificada
a pássaro que não voava,
cada um por si olhava
o céu, não para rezar,
pedir um anjo, ou pedir bênção,
antes um helicóptero
que traga outro caixão
de chumbo para o Zé, sem ceptro.
Era doloroso tê-lo ali a inchar,
já morto, em decomposição,
seu corpo a minar
pelo calor que era Verão.
Era pequeno o caixão,
tentaram quebrar-lhe as pernas
e dar corpo ao caixão,
para que ali coubesse,
em corpo que se enobrece
mas o Zé, apesar do seu cheiro
só a morte o apodrece,
protestou, exigiu ficar inteiro.
Era um morto tão nobre,
tão grande, tão grande,
tão grande era o pobre,
que não cabia na bitola,
miserável de seu país,
que caixão lhe dava por esmola,
país, que não Pátria,
que o tirara da terra
e o empurrara para a guerra.
Cabia-lhe agora o direito,
de o ter talhado à medida,
talhado bem a seu jeito
se a vida estava perdida!..
A vida estava perdida?
Estou louco ou a sonhar?
Sono de ser, ser remédio,
estou louco a delirar!..
Leve mágoa, breve tédio,
vestígios do que já foi,
não sei se pára se fluí;
se evoco com dor tua Vida,
sei que existe mas dói.
Meu Deus porquê?
Para quê esta força traída!..
E a noite se fez dia,
em tempo noite de breu
que só África, África tem
enfeitada a seu jeito
no sangue que corre do peito.
O helicóptero já não vem.
Fez-se silêncio de morte,
e a noite negra de breu
apesar de bem juntinhos,
remetidos ao avesso,
cada um está sozinho,
sem palavras, adereço,
ruminando a solidão,
a morte, talvez, a caminho,
sem dó, sem compaixão.
Mãe estás-me a ouvir?
Não posso morrer sem ti,
eu quero partir, fugir,
eu quero sair daqui.
João com o aerograma,
sobre a tampa do caixote,
delirava, sonhava, sonhava,
que escrevia o seu drama,
dando de todos o mote,
em forma de telegrama.
A vontade toda de fugir,
desfeita a última ilusão,
de gritar, de não mentir,
o valor da pátria razão
de quem o roubou da terra
e sem dó, nem compaixão,
o enviou para a guerra.
O cadáver do amigo Zé,
ali ao lado, ali ao pé,
era suprema acusação
dum povo, duma nação:
que soldado morto não é “herói”
para os políticos é empecilho,
que se tenta enfardar
no primeiro caixão vazio,
no caixão que se achar,
como qualquer andarilho.
Mãe, não quero morrer aqui,
esventrado por granada,
naquela emboscada ali,
num assalto à mão armada,
numa mina –anti- carro,
numa arma armadilhada,
em bailarina abraçado,
na cama do abrigo,
mãe, quero morrer contigo.
Mas não. O João mentia:
mãe, por estas “bandas”
há saúde, paz e alegria,
as águas são cristalinas,
há pássaros e poesia.
Não há guerra, não há minas,
situação normalizada,
terra de paz e amada.
Quem morre é por desastre,
por desastre ou por tolice,
se os conselhos não ouvisse.
Somos todos bem tratados,
e melhor alimentados.
Mandou visitas, saudades,
pensamentos bem pensados,
os cumprimentos da praxe,
a todos disse amar,
em escrita epistolar!..
Como o Zé, sentia-se a morrer
na mentira verdadeira,
sentia-se a apodrecer,
na alma prisioneira,
na alma a inundação,
em prece de aflição,
que Deus nos cubra de bênção,
nas horas de aflição,
nas horas que sobram
de guerra, dor, solidão.
O tempo não desconta, chora,
o tempo não sussurra, grita,
o tempo não tarda demora,
nada dele resta e fica.
Hoje, décadas do tempo não fala,
fez-se pêndulos silenciosos,
que rói, rói, mas não cala
a corpos vazios incensos.
Se décadas depois, nada esquecido,
nada compreendes, nada persegues
ao trazeres por ilusão teu ser contigo,
nada és, nada podes, nada consegues!..
Jazes morto.
Morto, ponto final.
Teu nome morreu contigo.
E nós, há décadas emboscados
em sequelas entrincheirados,
pela dor do stress minados
nossas vidas são recados.
Recados a quem de direito
de quem se dispôs a morrer
deste ou daquele jeito
e que morre hoje a sofrer!..
Abílio Rocha
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4 comentários:
Este grito de alma, gritado por tantos de nós que fizemos a guerra do Ultramar, só pode caber na 1ª página, como muito bem sugeriu o Alexandrino.
Olá Alexandrino. Não sou o Prof. Rocha de Aveiro. Sou natural do Concelho de Vila Verde, distrito de Braga e sou conhecido pelo Abílio de Barcelos, por aqui residir há muitos anos. Fiz todo o percurso em Aldeia Nova, fui para Valência fazer o noviciado, fiz toda a filosofia em Cardedeu (Barcelona. Fui colega do Ferraz, do Abel do Nascimento Pena, do Paulo Alexandre Carvalho Brando, do Lopes, etc. Sou aquele "menino", hoje avô, que aparece naquela foto, publicada pelo Jaime, no dia 1 de Dezembro de 2008. Da esquerda para a direita sou o terceiro dos jovens sentados.
Sou o segundo da lista "Criar Laços".
Quanto ao que escrevi não posso dizer que seja um poema, será antes a descrição de tantas emoções e algumas angustias vividas, que não esqueço.Não lhe reconheço valor literário.
Um grande abraço para todos
Abílio.
Olá, Abílio. Bons olhos te vejam!
Já lá vão tantos anos e Barcelos aqui tão perto!...
Gostei muito desta entrada que me fez avivar a memória e reconhecer a "riqueza" daqueles tempos e lugares. Os que de lá viemos aqui estamos sempre prontos para o que der e vier e não calar; tal como, anos antes, chegámos de todos os lugares para a reunião cuja agenda permite ainda hoje a continuidade do nosso encontro.
Um grande abraço, mas olha que isto não pode ficar por aqui: 18 Kms de distância não é nada.
Caro Abílio a minha memória consegue lá chegar através de flash-backs assistidos. Às vezes leva tempo, mas o "Criar laços" tem dado uma valente ajuda. Quanto ao valor literário do teu poema (que não queres catalogá-lo desse modo), penso que ninguém aqui está preocupado com esse aspecto, ou então ando cá por engano. Os valores que perseguimos são o de cimentar velhas amizades através da partilha de momentos passados em conjunto, assim como dos nossos percursos e do que somos hoje.
Ficamos felizes por te juntares a nós de forma activa.
A. Alexandrino
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