O prometido é devido. Assim era pelo menos até alguns políticos passarem a fazer mau uso das promessas como quem utiliza a cenoura para incentivar as bestas a andarem na direcção pretendida.
Queriam os meus amigos saber como é que eu tinha quase morrido de susto no caminho de Caxarias para Aldeia Nova.
Então vamos lá descascar isto.
Cheguei a Caxarias “por volta da viragem do dia” ou se preferirem na hora de “vésperas”. Aliviei o comboio da minha carga e de mim próprio, enchi os pulmões do ar do pinhal e o cheiro a madeira serrada invadiu-me as glândulas olfatórias. Num ápice dei por mim ali sozinho. Nem carrinha do seminário, nem seminaristas a aguardá-la. Decidi esperar um pouco a ver no que aquilo dava. Deu em nada. Talvez eu tivesse chegado um dia mais cedo, ou me tenha atrasado um dia. O tempo das férias grandes era tão longo que a gente lhe perdia a conta.
Confirmado o receio de que ninguém me viria buscar e a certeza de que os telemóveis só surgiriam cinquenta anos mais tarde, resolvi (decisão forçada) pôr os pés a caminho. Mas que jeito faria o telemóvel naquele momento. Só que na época os sinais de fumo tinham caído em desuso e as próprias comunicações por fio era incipientes. Era o chamado tempo de transição.
O Sol apressava-se a recolher a penates quando iniciei a caminhada. Entre Caxarias e Urqueira o ânimo manteve-se em alta. Cruzei-me ainda com algumas pessoas, senti a protecção das casas e tive o caminho iluminado por alguns candeeiros. Ultrapassada a Urqueira, vi-me envolvido pela floresta com seus ruídos, seus silêncios e suas sombras a moverem-se na noite. Mutatis mutandis, o sentimento de insegurança e impotência era idêntico ao vivido num barco no meio do oceano - (sei do que falo). Sentir que a qualquer instante podia ser engolido.
Alguns quilómetros adiante o pinhal deu lugar a terras cultivadas e vinhas. Os espaços eram mais amplos, respirava-se melhor. Pousei mais uma vez a pesada mala e descansei, de pé, para não sujar o fatinho preto de seminarista. Dei-me então conta, que nem a gravata me atrevera a desapertar, como se qualquer pequeno desleixo na indumentária com que me tinham encadernado, constituísse um sacrilégio.
Repostas as forças, levantei a mala como um halterofilista levanta o peso limite das suas forças e recomecei a caminhada.
Alguns passos decorridos, reparei que num terreno junto à berma da estrada, me seguia um cão corpulento, que a penumbra não me permitia divisar com precisão. Que estranho o comportamento deste cão, pensei. Nem ladra, nem se aproxima, apenas me segue. Estava nestas cogitações acerca do carácter do animal, quando divisei no terreno contíguo à berma contrária, outro cão idêntico no vulto e no comportamento. De tão parecidos, julguei que o primeiro tivesse mudado de berma, mas não. Eram efectivamente dois. Mais se acentuou a minha estranheza pelo comportamento dos bichos. Porque não se aproximaram e cheiraram, como é usual no cumprimento entre cães? ( Aqui para nós, felizmente os humanos inventaram o aperto de mão e o beijo na face para se cumprimentarem). Parecia também que ambos sabiam da presença do companheiro. Adivinhava-se ali uma táctica e uma estratégia longamente ensaiada. Recordei-me de algumas leituras e percebi que só podiam ser lobos. “Canus lupus signatus”, diria o P.e Oliveira.
Estremeci, mas mantive-me calmo para não demonstrar medo, já que nestas situações qualquer sinal de fraqueza é um convite à determinação das feras para atacarem a presa, lera eu algures. Houve momentos em que parecia que se aproximavam, mas provavelmente eram sugestões do meu medo. Sendo um fervoroso adepto da preservação desta espécie, não o sou ao ponto de me imolar, por amor à causa. Quando o pinhal voltou a ladear a estrada, os meus companheiros desapareceram. Eram certamente lobos maus que se aperceberam que eu não era propriamente a capuchinho vermelho nem levava bombons para a avozinha.
Foi a altura de respirar fundo, pousar a mala e descontrair os músculos retesados.
Reiniciei a marcha, sentindo-me um pouco mais leve, apesar do cansaço de quase uma légua palmilhada com carrego e das emoções por ter conhecido lobos, assim ao vivo e em directo.
Mas como uma desgraça nunca vem só, eis que do interior do pinhal soou um silvo em tudo semelhante a um assobio de homem. Ainda eu estava na dúvida, pássaro ou homem, quando passados alguns segundos se ouviu um segundo assobio, agora indubitavelmente de humano. Nesse instante, os cabelos da cabeça (que saudades) eriçaram-se. No corpo inteiro a pele arrepiou. O coração desatou aos saltos desordenados.
Se ouvi ou imaginei ruídos humanos, de seres da minha espécie, porquê este terror de dimensões muito superiores ao sentido na presença das feras? Tive o impulso de gritar por socorro mas a voz não saiu. Há males que vêm por bem, pensei, pois é possível que não tenham dado pela minha presença. Nesse caso seria melhor manter-me o mais silencioso possível. Procurei acelerar o passo mas as pernas não respondiam, pesadas como chumbo. As pernas que o transportam, nunca conseguem ser tão rápidas quanto o pânico. Por isso não lhe devem dar ouvidos.
Pensei implorar a ajuda divina, o que me pareceu despropositado, pois minutos antes já o fizera para que me salvasse de ser devorado pelas feras. Pedir para me livrar de seres da minha espécie, criados à imagem e semelhança do criador não me caía bem. Estas lucubrações são, como é evidente, anteriores ao estudo da Suma e de outras disciplinas teológicas. Cheguei a desejar que as feras me voltassem a ladear. Sentia já saudades dos irmãos lobos, com lhe chamava S. Francisco de Assis.
Eu que aninhava no consciente e no inconsciente tantos fantasmas acerca dos lobos, neste momento, após conhecê-los, tinha mais receio dos homens. Compreendi então o que tinha aprendido com o saudoso P.e Oliveira, “Homo homini lupus”.
Por vezes parecia sentir passos quase a tocarem-me os calcanhares. È desta, pensava, mas como o golpe fatal demorava, voltava a cabeça, mas só o meu terror me perseguia.
No meio da aflição, consegui avançar até divisar as primeiras casas de Aldeia Nova que me acolheu no seu regaço protector. O coração retomou o seu ritmo e a cavidade do peito que lhe está destinada. No entanto, julgo que terá sido nesse preciso momento que ficou virado para o lado direito. É possível que após o turbilhão em que esteve envolvido, se tenha posicionado mal ao retomar o seu lugar. ( Conhecemos um médico nosso amigo que poderá explicar isto melhor.)
Certo, certo, é que ainda hoje - verifiquei agora mesmo - permanece virado à direita. Situs inversus, decretaram os médicos.
Armando José