sábado, 17 de novembro de 2018

Fr. Clemente Maria de Oliveira




Rato cego! Fedelho de calça rachada!... Era assim que o bondoso padre Oliveira admoestava os distraídos, os indisciplinados, os faladores e os que se riam dos outros e de si mesmos. E quem é que não foi repreendido desta forma por ele?...
A sessenta e tantos anos de distância, recordo-o com uma saudade enorme, pelos mais diversos motivos. Um homem são e santo, introvertido talvez, mas que também ria com os que riam com ele. Eu deveria andar pelo segundo ou terceiro ano, quando foi anunciada a visita do Mestre Geral da Ordem Dominicana, um frade que dava pelo nome de Brown e que se bem me recordo era de nacionalidade alemã. Creio mesmo que foi bispo e cardeal. Como o homem era alemão, tinha que ser saudado em latim tendo sido o latinista Clemente de Oliveira o redactor da saudação. E agora vá-se lá saber porque é que o padre Oliveira me havia de seleccionar a mim para fazer a leitura de um pequeno texto em latim!?... Quem conheceu este mestre em latim e foi seu aluno como eu, sabe como ele se esforçava para que se falasse o latim com a acentuação devida, e com aquela cantata tão característica da língua de Cícero. E então ele chamava-me ao seu quarto e obrigava-me a ler repetidas vezes o pequeno texto, assim à guisa de ensaio. Na recepção ao Mestre Geral eu lá fui ler a saudação e no fim da cerimónia, com aquele sorriso que o caracterizava foi-me dizendo que estive bem. Tive comigo durante muitos anos esse pequeno papel, por ele escrito à máquina mas, as andanças da profissão fizeram com que ele desaparecesse, para grande desgosto meu.
As paródias, quando tínhamos por prefeito o padre Oliveira, eram muitas e diversificadas. Imagine-se por exemplo quando, em pleno estudo, ele repreendia alguém que conversava ou protagonizava qualquer acto susceptível de distrair os companheiros, lá tínhamos a voz do mestre:
Seu rato cego!...
Mas havia sempre alguém que, vestindo a capa da ingenuidade, perguntava:
-Sr. padre Oliveirinha, o que é um rato cego?
-Olha menino é aquele que não vê um palmo à frente do nariz!
Imagine-se agora uma sala inteira a estender a mão em frente ao nariz para medir um palmo!... Era a gargalhada geral, para irritação do bondoso Clemente Maria de Oliveira.
A Velha Casa ou Casa Amarela, era composta por três pisos habitáveis. No rés do chão, funcionava a cozinha, copa, o gabinete do director e respectivos aposentos, sala do capítulo, refeitório e um salão dedicado ao estudo do primeiro e segundo anos e sala de aulas do primeiro ano. A ligação ao primeiro andar era feita através de uma escadaria que partia de um hall da entrada da portaria e que rematava com as estantes da biblioteca. Este piso tinha a nascente um salão que servia de sala de aulas ao segundo ano e de salão de estudo para o terceiro, quarto e quinto, e dava acesso à capela. Deste salão partia um corredor que do lado direito dava acesso à sala do 3º ano e 4º anos a uma casa de banho destinada a suas reverências, a que se seguia um vão de escadas que dava acesso ao rés do chão e ao dormitório do terceiro piso. Ao fundo e do mesmo lado ficava o laboratório que era também a sala do 5º ano. Do lado esquerdo ficavam os quartos dos frades e dos irmãos que também eram frades professos, mas sem ordens presbiterais. O último piso, sótão adaptado, era destinado exclusivamente a dormitório, havendo a um canto, do lado poente, um quarto destinado ao perfeito e do lado oposto uma espécie de casa de banho que servia em exclusividade para diurese. A nascente e a toda a largura da parede havia diversos lavatórios para a higiene matinal e um espelho enorme para barbas e penteados. As casas de banho gerais, com urinóis, sanitas e chuveiros, funcionavam em anexo, situado no rés do chão junto à escadaria do coro da capela.
Vamos então à sala do 5º ano e laboratório, onde eu e os meus companheiros de então protagonizámos cenas verdadeiramente patéticas com o bom padre Oliveira e que, à distância de quase seis décadas, só têm explicação pela juventude que então respirávamos e pelo sangue irreverente que nos corria nas veias. Em primeiro, queria deixar os nomes da turma daquele quinto ano: Arnaldo Jordão do Vale, Domingos Branco, Fernando José Vaz, Manuel dos Santos Rufino, Nelson Amaral Veiga, Orlindo Gonçalves Igreja e Vitorino Vieira Dias. Destes aspirantes a noviços, só eu e o Orlindo Igreja não chegámos a vestir o hábito de S. Domingos. A sala era pequena e tinha a forma rectangular, com a porta de entrada sensivelmente a meio, com duas mesas compridas e estreitas e bancos do mesmo tamanho. Encostada à mesa da frente estava a secretária do professor e nas costas deste ficava o laboratório, que mais não era que um armário envidraçado, onde pontificavam frascos com diversos produtos químicos, alguns minerais, um microscópio e um metrónomo. E foi nesta pequena sala que eu tive aulas de inglês com o Fr. Legault, de física com o Fr. Vicente, de matemática com o Fr. Domingos, de francês com o Fr. Bernardo, de Religião com o Fr. Armindo Carvalho e de latim com o Fr. Clemente de Oliveira.  Já não recordo quem leccionava ciências!... E foi também aqui nesta sala que eu tive aulas de português com um homem de baixa estatura, cara larga e avermelhada e que penteava para trás o seu cabelo, levemente ondulado. Os dedos da sua mão direita estavam amarelecidos pelo fumo do tabaco, de que era consumidor confesso. Não largava a sua batina preta e lustrosa e com ela vestida se enfiava no seu calhambeque preto, muito antigo, que o levava até aos Milagres, em cada fim de semana. Foi por intermédio deste padre e mestre que eu, e suponho que muitos de  nós, ganhei a paixão pela leitura e pela escrita. Foi pelos ensinamentos dele que ganhei gosto e respeito pelo jornalismo, mal adivinhando eu que, décadas mais tarde, haveria de ser titular de uma carteira profissional de jornalista. Como ele nos falava do seu “Mensageiro”, o semanário interventivo dos Milagres, que era dirigido pelo seu amigo Pe. Lacerda!... Foi ele que nos embrenhou na história da literatura portuguesa e nos deu a conhecer os prosadores e poetas que tanto engradeceram a língua portuguesa ao longo dos tempos. Foi a ele que ouvi falar pela primeira vez em escritores contemporâneos cujos nomes, a esse tempo, eram para nós proibitivos, como Vitorino Nemésio, Aquilino Ribeiro, Francisco Costa, Alves Redol ou Fernando Namora. Obrigado padre António Francisco, padre Xico ou padre “Tomate”.
Mas eu queria falar das aulas do padre Oliveira que, vistas a esta distância, soam a saudade, a irrequietude a exageros e a remorso. Quando ele entrava na aula, começava de imediato o distúrbio. Era o metrónomo do laboratório que iniciava o seu cadenciado tic tac, eram os de trás que empurravam a mesa, eram os da frente que, em perfeita orquestração e sintonia se altercavam com os de trás… isto só para que o bom mestre se irritasse. Para iniciar a aula, se é que a aula se iniciava, ele rezava a primeira parte da Ave Maria, sempre em latim, Ave Maria gratia plena dominus tecum… e nós concluíamos a segunda parte cada um em seu tom, em português uns, em francês ou espanhol outros e até em línguas criadas no momento. Uma bola de pingue pongue escondida de baixo da mão e deixada cair ao de leve sobre a mesa, produzia um som irritante –trrrrr…trrrrrr….. O mestre via assim interrompida a sua dissertação sobre a Eneida ou sobre as Catilinárias e questionava a razão daquele ruído. De pronto o Fernando, olhando pela única janela que dava para o terraço da copa, onde já pousavam os ramos de uma figueira caduca, dizia ser barulho dos Xarréus,  nome que dava mais para peixe que para pássaro. Cada observação era sempre sublinhada com inoportuna risada, com a qual o mestre nem sempre condescendia.
O Igreja tinha ao tempo um corpo franzino e prestava-se a alguma irrequietude, mas era saudável que nem um pêro. Um dia, para o que lhe havia de dar, em plena aula de latim!... –Protagonizar um fingido e bem encenado desmaio. O resto da turma entrou na encenação e vá de ir buscar água para chapar na cara do Igreja, a ver se tão oportuno desmaio passava. Carregávamos o companheiro em braços, com grande alarido, até ao dormitório e lá se ia mais uma aula de latim. A cena haveria de repetir-se mais algumas vezes, tendo tal desmando chegado à reunião capitular, que valeu ao nosso companheiro um convite para abandonar a “Velha Casa”. E assim se perdeu um frade.
Um dos gestos primeiros do padre Oliveira quando chegava à aula, era pôr um relógio de bolso, já comido pelo tempo e pelo uso, em cima da secretária. Um belo dia, quando os de trás empurravam os da frente, a força conjunta foi de tal ordem que o relógio caiu ao chão e partiu-se. O rosto do bom frade iluminou-se de surpresa e espanto enquanto deixava transparecer alguma mágoa. Era um relógio que fora pertença de seu pai e que guardava como relíquia, disse-nos. Todos ficámos emudecidos e agarrámos a culpa que nos pertencia. Nunca mais vi o padre Clemente de Oliveira mas, há talvez uns vinte anos, li com mágoa na revista Visão a notícia do seu falecimento, onde lhe eram tecidos merecidos encómios, enaltecendo o facto de haver traduzido para latim “Os Lusíadas”.

Até sempre, Sr. Pe. Oliveira!...

Nelson Veiga

2 comentários:

Anónimo disse...

Meu caro Nelson,
o que descreves não se passou há 60 anos mas ontem!...
Tenho bem gravada na memória a imagem do Pe Oliveira que se baixou para apanhar o seu relógio de bolso, com a delicadeza de quem pega numa relíquia e depois com uma voz doce e os olhos embaciados disse “é uma racordação do meu pai”. Na minha já longa vida viví poucas situações tão dramáticas como aquela.
Era irrealista! Um homem daquela idade, apresentou-se perante nós tão sensível, tão frágil, tão vulnerável!
Sentí uma mistura de remorços, tristeza e uma grande compaixão.
Houve um silêncio de morte que deve ter-se prolongado por 5 minutos. Depois desse silêncio, o Pe Oliveira interrompeu o seu latim
e disse-nos:
-que se passa, vós estais doentes? Voltàmos ao que pensàvamos ser a normalidade e era isso que o Santo Pe Oliveira apreciava e esperava de nós.
Michael Browne era de nacionalidade Irlandesa. Foi Mestre Geral de de 1955 a 1962, data em que foi criado Cardeal pelo Papa João XXIII. Tive ocasião de encontra-lo em Roma nos anos 69 e 70.
Sucedeu-lhe o frei Aniceto Fernandez de que já falei nestas páginas.
Um abraço, Fernando

Nelson disse...

Obrigado Fernando pela tua correcção relativamente à nacionalidade do Fr. Browne. Tal como tu, é sempre com profunda emoção que recordo sempre a nossa irrequietude, daí eu ter passado ao papel, para memória futura, actos tão banais quanto irreflectidos e tão caracteristicos de uma juventude com sangue na guelra. E se os recordo, é pela profunda admiração que nutro por aquela veneranda figura do saudoso Fr. Clemente de Oliveira.
Grande Abraço
Nelson