Raramente leio um livro duas vezes. Exceto um ou outro clássico, ou por
razões de força maior, um texto literário, leio-o uma só vez e dele resta
depois a boa memória. No entanto, “Gente Feliz…” li-o duas vezes: a primeira
exatamente há 25 anos e, agora, uma segunda vez, comemorativa. Recebi com isso
uma grata surpresa. Daqui por mais 25 anos ou eu ou o romance seremos de novo
surpreendidos se houver tempo para tal.
Em 1988, também me pareceu que esta densa e dura narrativa era
fundamentalmente autobiográfica – coisa que o autor não nega mas também não
admite assim sem mais. De facto a proximidade e convivência com o autor, a
companhia de algum passado comum e sobretudo a memória de anos de conversa e
muitas estórias enquanto decorriam as nossas vidinhas, tornavam-me cúmplice de
alguns nomes, lugares, ambientes e alusões mais concretas, agora vertidas em
ficção.
Passados estes anos, no segundo encontro com Gente Feliz, numa leitura
mais distante e eventualmente mais atenta e objetiva, foram-me revelados
detalhes essenciais para a aceitação da obra como um evocação mais universal daquilo
que quero apelidar como a experiência de vida de um autor que constrói modelos
capazes de serem vivenciados por muitas pessoas de diferentes gerações e
latitudes. O romance e a ficção vêm à superfície.
De facto, não me tinha apercebido, por exemplo, do profuso e evidente
humor, que, numa obra de ambiente narrativo tão duro, atravessa a descrição do
real e a desconstrução dos comportamentos de algumas personagens e de factos
culturais; não tinha reparado na possibilidade de a freguesia do Rosário poder
estar ubicada na minha área geográfica ou até da evidência quase certa daqueles
fregueses serem descendentes de minhotos ou vice-versa; obviamente que a
diáspora dos açorianos era e é a diáspora de toda a nossa gente onde o
desencanto e a desertificação subiram ao mais alto e ermo dos nossos
interiores.
Sem fazer concessões de maior, qualquer seminarista que nós conhecemos de
ordens e congregações esquisitas e variadas, desde Braga a Fátima ou Lisboa,
aceitaria aquele como o seu seminário e aqueles como os seus colegas e
superiores: a matriz está lá e é idêntica para todos, in illo tempore, com mais ou menos colorido. O próprio monólogo ou
o canto dolente de Marta, já na parte final do romance, num doce instante de
amargo realismo, invade a privacidade de muitos lares, instala-se num qualquer
quarto de casal e dali não sai sem tocar na ferida e apontar o veneno que, na
calmaria ou na voragem do tempo corrói aquilo que fora uma sólida relação.
Como disse, fiquei com a grata sensação de que as marcas autobiográficas,
que eu aceito como a experiência de vida do autor, mais não são do que o
suporte ficcional da narrativa de “Gente Feliz…” que a tornam intemporal e
abrangente. Se eu, um distraído e ocasional leitor, cometi estranhos deslizes
de interpretação, que roçam o egoísmo voluntarista de inventar filmes
paralelos, imagino a contenção, o esforço emocional e de isenção que é pedido
ao narrador para não trair e atrapalhar a vida normal do seu criador.
3 comentários:
Este texto foi-me enviado no dia 17 de Fevereiro, pelo seu autor, o nosso Velho Companheiro Ferraz Faria. Acontece que foi enviado para uma caixa de correio electrónico que há muito não utilizo. Só dei conta hoje e apressei-me a publicar. A todos os amigos, em especial ao João de Melo e ao Ferraz, as minhas sinceras desculpas. Estou a ficar... ... é isso mesmo: Velho!
Abraços
Nelson
Bom texto com o "luxo" de um testemunho em direto...grato pelas tuas palavras Manuel e obviamente reiterando num abraço a obra do João de Melo...e vamos ler mts outro que ele tem publicado e acredito, publicará.
Abraça a Todos.
Francisco Torres
Belo texto do Ferraz, quer na escrita límpida que dele é apanágio, quer na apreciação que faz do "Gente Feliz Com Lágrimas".
Li o livro há 25 anos, sem saber quem era o João de Melo, pois o nome não me dizia nada de Aldeia Nova, e para mim era mais um dos novos escritores que enriqueciam o panorama da nossa boa literatura. Era natural, em Aldeia Nova, que os mais velhos não convivessem muito com os mais novos, pois procuravam privar com os da sua idade que eram do mesmo ano. Por isso o João de Melo não me ficou na memória. Da leitura do livro, há 25 anos, não me ficou muita coisa, a não ser o ar poético com que foi escrito e a prosa devidamente construída num português que podia lembrar o Padre António. Com a comemoração dos 25 anos e sabendo agora quem é o João de Melo, reli o livro com mais cuidado levando-me a concordar com a apreciação analítica do Ferraz.
Da toda a obra do João tenho alguns exemplares, alguns já lidos, outros ainda não, mas do que li ficou-me a ideia de se tratar de um escritor que trata o romance com envolturas poéticas muito belas, fazendo juz aos prémios já recebidos.
No Gente Feliz... podemo-nos todos rever, uns mais que outros, da mesma ou de diferentes maneiras, quanto mais não seja pelos ambientes vividos em Aldeia Nova e/ou Fátima.
A sua leitura recomenda-se a todos os que viveram em tais circunstâncias.
Um abraço a todos, e um Bem Haja ao João de Melo pela obra que nos proporcionou ler e reviver.
Neves de Carvalho
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