O STUDIUM DO CONVENTO DOMINICANO DE FÁTIMA
Chegávamos ao Convento, quase todos vindos de Aldeia Nova, cheios de expectativas, transportando sonhos. E vimos que não nos matavam os sonhos, antes nos incentivavam e ensinavam a sonhar, a sonhar sem limites.
Já em Aldeia Nova a diversidade da proveniência geográfica e cultural dos alunos era muito enriquecedora. Irmanados na mesma nau, criámos laços indestrutíveis para vida e, os professores, substitutos dos nossos pais que havíamos deixado para trás, foram o pai e a mãe que tão sábia e afavelmente nos ajudaram a crescer.
Esta reflexão permite-me o reencontro com esse tempo de alegria e de liberdade em que nos era feito o convite para nos elevarmos ao encontro do enriquecimento espiritual e cognitivo. E nós, tantas vezes, correspondíamos, a esse acolhimento sábio e afável, com a louca irreverência da juventude.
Chegados ao convento de Fátima, surpreendiam-nos rituais como o toque da sineta despertando-nos e ritmando os nossos passos para actos da vida comunitária; as lentas procissões entoando a salmódia em direcção à capela; o fazer da vénia, como pedido de desculpa e em sinal de obediência; o silêncio e a leitura no refeitório e, sobretudo, a serena elevação do cântico gregoriano ao ritmo das horas canónicas.
No espaço iniciático do noviciado éramos confrontados com a riqueza do espírito dominicano. Abordávamos S. Domingos, S. Tomás, Santa Catarina de Sena, os místicos alemães, entre muitos outros, da ordem dos pregadores e não só, que a nossa formação sempre se abriu à universalidade do pensamento.
Lembro-me dos longos passeios mensais quando, a pé, deambulando pelo espaço envolvente, quebrávamos o ritmo conventual; lembro-me dos incríveis jogos de futebol em que incríveis artistas mostravam uma habilidade que ainda hoje é recordada e motivo de conversa nos nossos encontros.
Quem me haveria de dizer, nesse dia 11 de Março de 1962 em que eu, com os mais velhos de Aldeia Nova, tive a alegria de participar no acto de Restauração da Província Dominicana que, passados cinquenta anos, aqui estaria a fazer esta breve abordagem do que foi a nossa passagem pelo Studium de Fátima.
Não cabe neste tempo de exposição, nem eu teria engenho e arte para fazê-lo, dizer suficientemente o que foi essa experiência de vida profunda e tão enriquecedora. Pouco é o tempo para falar de um caminho que aqui se iniciou e se espraiou em tantas dimensões.
O estudantado abriu-se a diversas ordens e congregações residentes em Fátima: Carmelitas, Consolata, Verbo Divino… E pelas nossas conversas sabíamos como as condições de estudo que nos eram proporcionadas seriam únicas e invejáveis. Apesar de vivermos em comunidades com regras e espiritualidades diferentes, partilhávamos as mesmas aulas de Filosofia e de Teologia. Esta diversidade permitiu construir o respeito pelas diferenças e aprender na diversidade de experiências. As aulas eram espaço de diálogo e de debate onde não havia lugar para o magister dixit, mas o convite à investigação e à leitura. Tínhamos à nossa livre disposição uma riquíssima biblioteca.
Coube-nos em sorte um corpo docente constituído por jovens, cheios de entusiasmo que haviam experienciado a vida e o conhecimento em vários recantos do mundo.
Podíamos ter uma aula em português, a seguir uma em castelhano e logo outra em língua francesa. Entre outros, tivemos professores canadianos, belgas, holandeses, espanhóis… até um vietnamita…
Eu, que conheci diversas escolas, é com emoção e com uma gratidão sem medida que olho para trás e posso reconhecer a qualidade de excelência que tinha o curso de filosofia, onde leccionavam mestres para quem ao longo da vida tantas vezes me voltei para tentar imitar o seu método, o seu saber fazer. Mestres que no meu percurso académico avoquei e muitas vezes consultei para melhor iluminar o meu percurso docente. Nunca mais nos meus estudos encontrei fonte semelhante pela profundidade do conhecimento e pela elevação do saber, e frequentei algumas escolas.
Introdução à História da Filosofia, Metafísica, Lógica, Ética, Psicologia… Foram-nos abertas as portas para o deslumbramento da originalidade do pensamento grego. Olhámos como os antigos milésios quiseram encontrar o elemento original constitutivo da matéria; como as aporias entre Heraclito e Parménides fecundaram para sempre o pensamento ocidental; como a busca metafísica deu os primeiros passos numa tentativa de destrinça entre ser e não ser onde, afinal, se conjuga simultaneamente o mesmo e o diferente; como alguns, não encontrando fundamento nas coisas sensíveis, buscaram a sua justificação fora deste mundo, e como o “divino Platão”, convidando-nos a sair da caverna e a buscar nas Formas a realidade, abriu as portas ao pensamento aristotélico, que S.Tomás, haveria de forma tão original tornar tão fecundo.
E para sempre seria S.Tomás. Homem do seu tempo, dá-nos a síntese admirável de um pensamento original que vem dos gregos, passa pelos árabes e judeus, bebe ainda nos primeiros medievais. E é ele, quando o mundo feudal se começa a desagregar, que abre as portas à modernidade, mais não seja, pela valorização da razão e do mundo sensível. O Doutor Angélico soube criar um dos mais notáveis sistemas filosóficos de que nós no Studium de Fátima nos inebriámos para toda a vida.
Seria fastidioso, nem cabe nas simples linhas desta abordagem, dizer da riqueza, da profundidade, da universalidade deste pensamento que aqui bebemos e nos marcou de forma inapagável para todo o sempre. Daí nasceu a convicção de que qualquer passo filosófico que esqueça ou contorne S.Tomás caminhará truncado ou na ignorância.
E foi assim que nós nos movemos pelos meandros universais do pensamento humano. Do mito até aos contemporâneos. Trilhando um caminho em que relativo se conjuga com absoluto e em cujo horizonte nos foi apontada como fim da nossa aventura filosófica a Veritas. Verdade que não teme o erro, sabe alimentar-se da dúvida e, como nos diz o Frei Bento O.P. ( Público 7/10/12 ), «a verdade é fruto de uma busca humilde». Os estudos filosóficos, tão desvalorizados e em desuso, hoje, nas nossas escolas, abriram-nos o espírito não para as certezas indiscutíveis e dogmáticas mas para a inquietação das perguntas.
Não se pense que os nossos estudos humanísticos se limitavam à Filosofia e à Psicologia. Fazia parte do nosso plano de estudos a abordagem de Questões Científicas em que de uma forma aberta se debatiam os mais diversos problemas.
Também de uma forma inovadora tínhamos aulas de Literatura universal onde os gregos eram outra vez ponto de partida e o bardo da Íliada nos dizia: “ Canta, ó musa, a cólera de Aquiles” apontando-nos o apelo humanístico reforçado pela voz trágica de Sófocles: “ Todas as coisas são maravilhosas, mas nada é mais maravilhoso do que o homem”. Frequentámos todos os grandes clássicos portugueses e fomos dos mestres russos, aos ingleses passando por americanos e franceses, enriquecendo-nos com uma inapagável formação estético-literária.
Actividades como o teatro não estiveram ausentes da nossa formação. Lembro-me que representámos para um público alargado peças como, O Assassínio na Catedral de T.S. Eliot e Felizmente há Luar de Luís de Sttau Monteiro. E quem não se lembra dos famosos “cursos de Verão” que a tantos de nós abriram as portas para a formação cinematográfica?
Se Tomás de Aquino é o nosso primeiro mestre do caminhar filosófico, o seu pensamento é essencialmente teológico e a Teologia era o coroar da nossa formação no Studium de Fátima. E lembro-me daqueles tempos prenhes de inovação e de criatividade, das infindas discussões e fecundos debates. Eram os luminosos tempos do Concílio Vaticano II. Os nossos professores dispostos aos novos ventos, que sopravam do lado do Espírito, estavam atentos a todos os sinais. Aos sinais do tempo. E todo o tempo era profético, o que nos enchia de esperança e de uma infindável alegria. Isso tudo foi bastante e demorou o suficiente para deixar inquebráveis raízes mesmo que a pouco e pouco se fossem silenciando algumas vozes da profecia. Aí começou uma Primavera que nunca mais teve fim. Aprendemos que, apesar de tudo, o Espírito continuará sempre a soprar onde quer.
Então, a Liturgia conheceu novos tempos, um espírito de inovação e de surpreendente abertura; a exegese bíblica ofereceu-nos um campo de leitura, novos horizontes, impulsionada pela análise científica da Escola de Jerusalém. A Teologia, na peugada de São Tomás, disse-nos que, apesar do dogma não estar ao alcance da razão, a revelação não torna inútil essa razão mas ela pode ajudar a esclarecer a fé. Confrontámo-nos sem tabus com temas como a Criação, a Santíssima Trindade, a Eucaristia, Justiça-Pecado-Graça. E enveredávamos pelos escusos caminhos da História da Igreja, tão escusos, frágeis e contraditórios porque humanos mas sempre nas encruzilhadas do divino…
Enfim, tanto que poderia ser dito. Não posso deixar de referir os luminosos mestres contemporâneos, obreiros de uma teologia aberta ao mundo e de um evangelho para os tempos que aí vinham, com que fomos confrontados num fecundo diálogo: Congar, Chenu, Henri de Lubac, Schillebeeckx, Hans Küng…
Em conclusão, direi que fomos beneficiários de uma escola extraordinária que nos preparou para a vida e nos deu asas para viajar por múltiplos campos culturais e nos abriu infindos horizontes. Somos de uma formação humanística que fez de nós pessoas e nos ensinou a pensar e a criar livremente. Coube-nos a felicidade de ter os professores que tivemos: pedagogos, conhecedores, sábios. Os alicerces foram sólidos. A Veritas que circula nas veias dominicanas ficou para sempre em nós como a chama que, neste tempo do banal e do relativismo, nos leva e nos eleva para o Absoluto.