1. Em Portugal, segundo alguns inquéritos, a crença num Deus pessoal é muito alta, a confiança na Igreja católica é muito superior à média europeia, mas a crença na vida depois da morte não vai além dos 40 por cento.
S. Paulo, há dois mil anos, dizia aos cristãos de Corinto: "Se se prega que Cristo ressuscitou, como podem alguns dentre vós dizer que não há ressurreição dos mortos? Se não há ressurreição dos mortos, também Cristo não ressuscitou. E, se Cristo não ressuscitou, vazia é a nossa pregação, vazia é também a vossa fé." (l Cor 15,12-14).
Paulo sabe que está a forçar a nota. Tanto para judeus como para gregos, um blasfemo crucificado, um abandonado da divindade não podia ressuscitar... Mas sabe também que a cruz do ódio e da violência, a religião do Deus dos exércitos e da sua lei foram derrotadas pela paixão de um Deus silencioso, presente na fidelidade de Jesus ao caminho da não violência, da compaixão, do amor aos próprios inimigos.
Na minha infância e adolescência, a Páscoa era a festa que transfigurava a aldeia. A cruz iluminada e florida já não era um instrumento de tortura, mas o sinal de vitória sobre a pior das mortes que visitava todas as casas. Era beijada por todos, desde as crianças aos moribundos. Era a aparição do sentido de tudo!
2.Hoje, para muitos, a Páscoa são as férias da Páscoa, não a ressurreição da vida. É verdade que o primeiro e directo sentido da palavra "ressurreição" não pode ser mais banal: sair do sono, levantar-se, pôr-se de pé. Não nos deixemos perder, no entanto, com etimologias. A significação das palavras depende sobretudo do uso que delas se faz. Ressurreição acabou por ficar reservada, entre judeus e cristãos, para dizer que a última palavra sobre o ser humano não é a morte, mas o acesso misterioso à vida plena e definitiva. Não foi por acaso que a ressurreição se formulou no interior do judaísmo, no começo do século II a.C., para dizer que Deus não podia deixar num eterno xeol (profundidade da terra, lugar dos mortos) os mártires macabeus que tinham dado a vida para defender as tradições de Israel. Para fazer justiça às vítimas da história, o recurso à imortalidade da alma, perante a morte - como na Grécia -. era insuficiente no âmbito da antropologia semita.
Os especialistas destacam a diversidade do vocabulário que o Novo Testamento emprega para falar da ressurreição de Jesus e das suas aparições. Alguns autores distinguem três tipos de linguagem, todas elas com vantagens e inconvenientes, para exprimir aquilo em que se acredita: a da ressurreição, a da vida e a da exaltação. Importa ter presente uma observação do exegeta P. Grelot. Segundo ele, não se pode falar da morte e do além sem recorrer à linguagem simbólica, linguagem de registos diferentes: o analógico, por exemplo, a minha relação com Deus é análoga - semelhante e diferente - à relação da criança com o seu pai; o figurativo, que, na Bíblia, serve para traduzir a relação recíproca entre Antigo e Novo Testamento; o mítico, para falar daquilo que se encontra fora do alcance dos sentidos: Deus está no "céu" e, inversamente, existe um lugar simbólico da morte e do mal, "lá em baixo", "nos infernos", no extremo oposto ao "céu", lugar de Deus. Pela mesma razão, as origens e o fim escapam radicalmente às nossas percepções sensoriais e até intelectuais: brotam do mítico para a linguagem simbólica.
Fora desse caminho, entramos por becos sem saída. Essa linguagem não pretende descrever uma teoria científica ou uma indagação metafísica. O ser humano, para falar das dimensões mais profundas da vida, não pode deixar de recorrer a essa linguagem indirecta, quase sempre paradoxal.
3.Somos limitados, mas humanos. O desejo de quebrar todos os limites é a nossa marca, mas a morte resiste como última lei. No entanto, mesmo perante a morte, nem todos se resignam a ser, apenas, um adubo da natureza e um escravo da espécie. Seria a derrota definitiva do indivíduo, da pessoa ou uma cedência total ao niilismo.
Jacques Derrida, o filósofo da desconstrução, pouco antes de morrer, numa entrevista ao Le Monde, dizia que somos estruturalmente sobreviventes. A desconstrução está sempre do lado do sim, da afirmação incondicional da vida. A sobrevivência é a vida além da vida, a vida mais que a vida. "O discurso que prenuncio não é um discurso mortífero, pelo contrário, é a afirmação de um vivente que prefere o viver e, portanto, o sobreviver, à morte, porque a sobrevivência não é só o que fica: é a vida mais intensa possível."
A diferença cristã tem aliados no desejo, na cultura e nas outras religiões. Funda-se, no entanto, na convicção de que o desejo de Deus é mais forte do que a morte: "Alegrai-vos, porque os vossos nomes estão inscritos nos céus, no coração de Deus" (Lc 10, 20).
Não temos informação absolutamente nenhuma do que será a nossa identidade transfigurada. O Novo Testamento também não sabe. Numa rede de narrativas e imagens paradoxais, quase contraditórias, procura mostrar que o Ressuscitado é Jesus de Nazaré, o crucificado: o mesmo e inteiramente diferente. Tenta dizer o indizível.