terça-feira, 19 de junho de 2007

O EXAME


Neste mês em que assistimos, de perto ou à distância, à tremideira que toma conta do sistema nervoso de muitos jovens, de novo sujeitos a exames nacionais, vêm-nos à memória, a saga dos nossos exames da 4ª Classe e da admissão ao Liceu ou à Escola Comercial e Industrial, como era denominado o actual ensino secundário, nos anos 50 e 60 do século passado. Talvez fiquem aliviados quando souberem como era nos primórdios da civilização…

Já ia quente o ano da graça de 1954. O ensino obrigatório estava a terminar para mim. De imediato viria a “aprendizagem” dum ofício “em terra”, ambição máxima, ou a esperada e tradicional iniciação na vida de pescador. Afortunadamente a minha professora chamava-se Vitória (por coincidência, a minha primeira neta tem o mesmo nome). A sua determinação, o seu entusiasmo, a sua dedicação à profissão, que abraçara sem dúvida por vocação, faziam dela uma lutadora sempre com olhos postos no sucesso próprio e dos que a rodeavam. E era linda, muito linda. Acho que foi a minha primeira paixão platónica. Ostentava o apelido Saias, uma das mais distintas famílias da cidade de Olhão, e nos seus verdes anos vinte, mostrava uma maturidade e devoção à causa do ensino, que muito raramente voltei a encontrar. Não contente com suportar quarenta e sete alunos das 2ª e 4ª Classes em simultâneo na mesma sala, desdobrava-se a convencer as famílias dos mesmos a permitirem que fossem à escola e até que fizessem a admissão ao Ensino Secundário, o que para aqueles pais era uma autêntica loucura. Prontificou-se mesmo a preparar os interessados em horas pós-escolares, sem cobrar nada por esse trabalho extra. E assim me vi envolvido nessa aventura.
Representava então, ter de me deslocar a Faro, capital do Distrito, onde nunca tinha estado, e que dispunha do único Liceu da província algarvia. Desde logo a selecção teria de ser exigentíssima, porque as vagas eram escassas para toda a população estudantil do Algarve.
Eu já tinha alguma experiência das torturas de exames fora de portas. Na 3ª Classe desloquei-me à aldeia para ser sujeito ao exame final. Dias antes tinha passado pelo exame da 4ª Classe, numa escola da vila de Olhão, dista de seis quilómetros, também em ambiente estranho. A experiência tinha sido traumatizante. A oral, dias após a escrita, caso esta fosse positiva, desenrolava-se perante um júri de três professores numa sala repleta de familiares dos examinandos, que não se inibiam de expressar as suas emoções, perante as respostas dos alunos. -“Onde começa a digestão?” –“Uhm… Nos pés.” (Gargalhadas sonoras), -“Que espécies de aves conhece?” - “Uhm… Melros, cucos e milharucos”.”(Gargalhadas sonoras, com aplausos). O Armando desmaiou sussurrou-se entre os presentes. Faltava pouco para ser chamado “a depor”. Teria de ser ressuscitado à bofetada, aos gritos ou outros métodos artesanais. A falta à chamada era impensável e o júri era indiferente ao drama dum reles aluno, desconhecido, de um lugar remoto, filho de pescadores. Mais ou menos consciente, ele lá estava perante o júri e a assistência, alguns minutos após. Saiu-se bem, dizem.
Para o grande exame, na Capital de Distrito, a mãe, na ausência do pai envolvido nas lides da pesca em Marrocos, preparara o filho com todos os cuidados para a grande prova. Encadernara-o com roupas a estrear, decoradas com um laço (papillon) rosa velho ao pescoço e apoiadas nuns sapatos a brilhar, guardados desde a crisma. E penteado. Levaria ainda uma caneta de tinta permanente e um relógio Camy, que o pai trouxera de Tanger. Durante quinze dias foi encharcado de chá de flor de laranjeira, que “faz muito bem aos nervos”, diziam as vizinhas, também envolvidas na preparação.
No dia D a noite foi mal dormida. Os nervos aumentam a cada minuto que passa, apesar dos manuais estarem já vistos, revistos e sublinhados. O salto no desconhecido ía ser dado.
Graças à intervenção dos santos que não tiveram descanso nesses dias, o Armando ficou aprovado no exame. Tinha carta branca para ingressar no Liceu. Durante as férias, a professora Vitória, visitou-o. Queria saber o futuro do rapaz, que “não podia ficar pelas pescas “ dizia. – “Não temos posses para o pôr a estudar” – respondiam os pais. “Isso é só para os ricos.” A professora não obteve resultados e foi desgostosa.
Dois meses volvidos, porém, cantou vitória, quando soube que o menino tinha ido para o Seminário, “o Liceu dos pobres”, como alguém lhe chamou.

A. Alexandrino

7 comentários:

Anónimo disse...

Ha grande Alexandrino!...
Em boa hora «remaste/rumaste» até Aldeia Nova...
O teu caso não será muito diferente da generalidade dos casos da rapazeada do nosso tempo...
Nem todos terão, porém, tido a sorte de ter uma Vitória como professora,linda,muito linda e que
terá sido a tua primeira paixão platónica!.. o que significa que terás tido outras... e o que só te dignifica!... Aos 9 anos não poderias ir muito mais além da contemplação platónica!...
Olha eu tive um professor primário, da 1ª à 4ª classe, que para além de mal encarado era bruto como as portas...Dava as aulas de cigarro ao canto da boca e com uma «cana da Índia» na mão direita... Em cima da secretária tinha uma «menina de cinco olhos»... Todos os alunos, incluindo o filho do professor, souberam quanto doi uma canada na cabeça e umas reguadas nas mãos com a dita menina dos cinco olhos....
A minha ida para Aldeia Nova foi estimulada por umas freirinhas dominicanas espanholas, todas muito bonitas,principalmente a Patrocínia, que estavam no Hospital da Misericórdia de Idanha-a-Nova, minha terra natal... A simpatia por mim por parte dessas freiras é explicável pelo facto de eu, todas as manhãs,antes de ir para a escola, me prestar a ajudar à missa na capela do Hospital...
Nessa capela, para além do capelão do Hospital, celebrava missa,de quando em quando, o Pe. Estêvão... E foi ele que por recomendação das freiras um dia me levou até Aldeia Nova... Que Deus recompense essas bonitas freiras e o simpático Pe. Estêvão pela sua generosidade de me encaminharem para Aldeia Nova...

Muito, muito mais há para contar...
Guardo para futuros comentários...

Um abraço a todos


Zé Celestino

Anónimo disse...

Corrijo algum do mau juízo que fazia a teu respeito, Celestino, afinal restará sempre, no teu íntimo, essa influência benéfica do teu inicial contacto com a celebração da Eucaristia. Já do Alexandrino pouco ou nada há a esperar. Vem do sul, caíu na podridão da grande cidade. Não haverá em ti memória desa marca do Sagrado que tocou o Celestino?

José Oliveira

Anónimo disse...

Oh Imeldo
Já esgotei os argumentos, contra a tua ladainha. Por isso pedi ajuda ao Zeca, para te caracterizar:
“Pregais o Cristo de Braga
Fazeis a guerra na rua
Sempre virados p´ro céu
Sempre virados p´ra Virgem
A santa cruzada manda
Matar o chibo vermelho
Contra a foice e o martelo
Contra a alfebetização
Abrenúncio, vaderetro
Querem vender a nação
A medicina é ateia
Não cuida da salvação
Que o diga o facultativo
Que o diga o cirurgião”
Ezequiel Vintém

Anónimo disse...

Já há bastante tempo que o Alexandrino nos habitua a textos magníficos, e este não foge à regra. É uma testemunha qualificada para discorrer sobre o seu e nosso tempo e tornar presente uma época, que pouco a pouco ficaria esquecida. É evidentemente autobiográfico, o que ele escreve, mas reconhecemo-nos fàcilmente em muitas de suas imagens, mesmo se, como diz o Celestino, nem todos tivemos a sorte de ter uma menina Vitória como professora. A mim calhou-me uma Dona Adélia que traumatizou metade da população masculina do Franco. Era uma solteirona que foi azedando à medida que os anos passavam.
As réguadas com a menina dos cinco olhos, eram cada vez mais insoportáveis. Um dia já no fim do ano em que devia passar o exame da quarta, lá me esquecí de uma das aldeias por onde passava o combóio que ia de Macedo de Cavaleiros até ao Tua... Dá cá a mão, diz-me ela sentada na sua cadeira... Estendí-a ela levantou a palmatória tão alto, mas esqueceu-se de me agarrar na mão. Quando a menina dos cinco olhos ia a chegar, a toda a velocidade, tirei a mão e ela deu uma grande porrada no joelho e começou a gritar de dor e de ira...ó pernas p’ara que vos quero... Minha mãe acompanhou-me no dia seguinte para que pedisse desculpa à Senhora Professora... Pedi desculpa, mas a condenação era sem apelo: não vais ao exame da querta classe neste ano, apesar de estar preparado e minha mãe lhe pedir quase de mãos postas pois já me tinha comprado o fatinho e os sapatinhos para essa ocasião. Teve que comprar-me outros no ano seguinte!...
Sigamos o exemplo do Alexandrino, e falemos do nosso passado remoto ou mais próximo. Aquilo que acontece a cada um de nós interessa-nos a todos, não por curiosidade mal sã, mas por interesse cognitivo, afectivo ou simplesmente por amizade. “Os exames” tenho a certeza que é um tema que não pode deixar-nos indiferentes. Fomos por eles marcados, positiva ou negativamente. Somos cada vez mais numerosos a ler o que poucos escrevem. Pegai na caneta e que cada um no seu estilo nos faça parte de um exame fora de norma!...

Anónimo disse...

Um magnífico texto do Alexandrino. Que aqui nos deixa a sua experiência de vida. Agora podes contar como é que foste descoberto aí no fundo de Portugal. Ao que me consta o Pe Luís não ia fazer turismo para o Algarve.Olhandopara a tua história penso em quantos jovens não ficaram perdidos por esse Portugal fora devido ao país que tinhamos (temos).
Saudações.
Eduardo Bento

Armando disse...

Na verdade o texto pode deixar a ideia que o seminário foi um recurso. Mas não foi assim. Eu tinha manifestado várias vezes vontade de "ser padre". Nessa fase, o meu pai falou com um senhor galego dono de um restaurante em Lisboa, que se interessou ao ponto de falar com uma senhora que conhecia o P. Tomás ou o P. Alberto.
Quanto a "jovens perdidos" na época, um conterrâneo, servente de pedreiro aos 16 anos(salvo erro), pintou duas notas de mil escudos de tal forma perfeitas, que só foi detectado após ter adquirido produtos com as mesmas. Foi parar à prisão escola de Leiria, para bem dele. Foi o tranpolim para obter uma bolsa da Gulbenkian, que lhe permitiu ser pintor e escultor com alguma relevância.
Eram assim, aqueles tempos, como todos bem sabemos.
A. Alexandrino

Anónimo disse...

Ó José Oliveira! não estarás a destoar deste côro que formamos, os que viveram em Aldeia Nova? Tu não viveste lá nos tenros anos dos dez aos quinze... dezasseis, como eu que era um putito de dez anos, e por isso não sentes as coisas como nós sentimos... o choro das primeiras oito noites... e dias...e os outros...Nasceste em Lisboa, a terra do pecado como dizes, e por isso, Aldeia Nova não tem para ti o significado que tem para nós. Sabes que "recordar é viver", e ainda bem que as nossas vivências são aqui expostas por tantos dos nossos amigos... coisas de que nos lembramos...coisas que vivemos e já estavam esquecidas debaixo do montão de acontecimentos e emoções que preencheram a nossa vida passada de há cinquenta anos(meio século!),e agora vieram à tona da memória.
Bem hajas Alexandrino por lembrares e escreveres muita da nossa vida que tanto teve em comum!
Um abraço
Neves de Carvalho