quinta-feira, 21 de junho de 2007

O MESTRE GERAL, ANICETO FERNANDEZ, NÃO RESISTIU AO BORDÉUS!


Como já vos disse, nestas páginas, sem a intervenção do Padre Tomás Videira, teria saido de Fátima no fim do noviciado. Sem a sua segunda intervenção teria despido o hábito em 1966. Digo-vos sinceramente que cada vez que decidia ficar, era mesmo para ir até ao fim, convencido que podia realizar-me como dominicano. Projetava-me completamente num apostolado como o que faziam nessa altura, o binómio de choque frei Bento e frei Mateus, enriquecido mais tarde com o frei João Domingos. Essas conferências seguidas de debates, eram adaptadas ao lugar e ao momento. Era num trabalho desse estilo, mais que em qualquer outro, que eu me reconhecia como dominicano. Eram estes dominicanos e alguns outros, como o Pe Tomás, Miguel, Pervis etc. que me davam ganas de ser dominicano. Quando fui para Roma ainda era com a convicção que seria dominicano até ao meu último suspiro. Ao fim do 1° ano, depois de ter trabalhado como nunca, 10 a 15 horas por dia, senti-me completamente abandonado, cansado e depressivo. A minha única aspiração do momento era passar as férias em Portugal, encontrar-me com muitos de entre vós, saindo do isolamento em que me encontrava. Quando o Mestre dos estudantes (um espanhol) me informou que tinha ordens do meu Provincial, frei Raúl Rolo, para não me deixar sair da Itália, passei um quarto de hora horrível. Aceitei passar as férias numa ilhazinha (Procida) ao lado de Capri, onde os dominicanos tinham uma casa de férias. Um verdadeiro paraíso, com praia privada e tudo. Apesar disso sentia-me lá tanto à vontade como Napoleão na ilha de Elba! Ao fim de uma semana perguntei ao padre Mestre se também estava proibido de sair da ilha (a que se dava volta em menos de uma hora) ou só da Itália. O país era-me imposto, mas não estava com residência vigiada!... Depois de uma semana na ilha, convenci um colega italiano, a voltar ao continente e durante dois meses, visitámos toda a Itália em auto stop. Foi formidável...
Outubro 1968, estava em plena forma e recomecei o ano escolar (2° em Roma) com o mesmo ritmo do precedente e sempre completamente isolado dos dominicanos portugueses, como se já não fizesse parte da família. Durante todo este tempo só mantive contactos com o Horácio. Não digo que alguém foi culpado...foi assim. Durante os primeiros dois anos que passei em Roma, o ritmo era deitar à meia noite e levantar às 6 da manhã. Fiz os dois anos de teologia que me faltavam, fiz uma tese sobre “O homem criador, à imagem de Deus Criador”, e deram-me o titulo de ‘lector in sacra theologia’. Muito antes do fim do ano escolar, estando convencido que era ‘persona non grata’ em Portugal, fui ter com o Mestre Geral para lhe pedir todas as dispensas. Respondeu positivamente ao meu pedido, não sem antes me propôr ser ordenado e ficar em Roma ou escolher outra província. Respondi-lhe que como dominicano só conseguia projectar-me em Portugal. Compreendeu. Aproveitei para pedir-lhe autorização para me inscrever durante mais um ano no Angélicum e, por conta própria, me licenciar em Filosofia, ao que ele acedeu. Passei o Verão de 1969 em França com a intenção de trabalhar durante três meses, e financiar o ano escolar que passaria em Roma, fazendo já parte dos EX.
A vida não se parece com uma estrada, com percurso linear e destinação única e definitiva. Muito pelo contrário, aparecem cruzamentos quando menos o esperamos e somos obrigados a escolher nova direcção. Mudar de cap é sempre doloroso e comporta riscos. Nesse verão tinha dado um passo importante noutra direcção mas encontrava-me no meio de um cruzamento sem saber que direcção tomar... Ao fim de um mês de trabalho, ao descarregar um caminhão de vigas de ferro, caiu-me uma em cima. O acidente podia ter-me sido fatal, mas safei-me com um pé partido. Com o pé no gesso, passava os dias no convento dos dominicanos a preparar a peregrinação do Rosário a Lourdes. Uma das organizadoras, uma tal Geneviève não me deixou indiferente e vice-versa. Aí entrámos numa estrada em que houve curvas, subidas e descidas, usámos travão e acelarador, mas nunca mais entrámos em nenhum cruzamento... Voltei, como tinha decidido, mais um ano para Roma. Já tinha entrado nesta nova estrada quando recebí uma carta do Padre Miguel, que tinha sido eleito Provincial há alguns meses. Convidava-me a regressar a Portugal, visto que tinha terminado os estudos de teologia. Propunha-me mesmo ir para o Porto para aí animar a vida litúrgica. Se esta carta tivesse chegado alguns meses antes, hoje seria dominicano, ter-me-ia realizado intelectualmente e mesmo humanamente, continuando, no entanto, a sofrer da úlcera do estômago, que me tinha atacado desde o noviciado. Manifestava-se duas vezes por ano, no começo da primavera e do Outono. Passava com um tratamento e desapareceu completamente quando entrei nesta estrada sem encruzilhadas. Sempre tive a certeza que o homem não nasce determinado para um percurso, definido desde toda a eternidade. São as circunstâncias da vida iluminadas e dirigidas pela inteligência, com a vontade como cúmplice (simplifico) que fazem de nós o que cada dia somos. Hoje diferentes de ontem e preparando-nos para sermos ainda mais diferentes àmanhã. Felizmente que há a memória (e os espelhos) para fazer a ligação entre todos as nossas acções, e mutações, quando não, como somos seres diferentes, cada manhã, não nos reconheceriamos e andariamos todos perdidos.
Mas que tem isto a ver com o Aniceto e o Bordéus? Já vem...É a tal história da cesta das cerejas: puxas por uma e vêm todas, mas não sabes em que ordem... No inicio de 1971 o Mestre Geral Aniceto Fernandes, veio a Clermont Ferrand fazer uma visita canónica (talvez não seja o nome justo) de dois dias. Fui avisado desta visita pelo Padre Pervis, então prior do convento, e que com o seu sotaque brasileiro, nos tinha pregado um retiro em Fátima em 1964 ou 1965. Fui pois visitar o M. G. , convidando-o para vir jantar a minha casa. Qual não foi a minha surpresa quando ele aceitou e me disse: “Bueno, vuelba buscarme por las siete de la tarde”. Quando cheguei a casa e disse à minha mulher: adivinha quem vem comer esta noite? Ela não adivinhou!... Era segunda feira, a meio da tarde, e apesar dos comércios estarem fechados, às 19h o jantar estava pronto, foi apreciado por um Aniceto Fernandez, acessível, agradável e mesmo jovial. Ao despedir-se o Padre Aniceto disse à Geneviève: “vous êtes responsable du bonheur de Fernando” voltando-se para mim e acenando para a Geneviève: “eres responsable de su felicidad, no olbides...” A minha sogra ( santa mulher, que educou os 4 filhos sozinha, depois de enviuvar aos 45 anos) nunca soube que se o eminente Mestre Geral dos Dominicanos se apoiava no meu ombro ao sair de casa, à uma da manhã, não era devido ao cansaço ou mudança de ares, mas devido ao “bordéus”. Os dominicanos melhor que ninguém sabem que a “veritas” também está no vinho, se for bom!
Fernando.

8 comentários:

Anónimo disse...

Comentando o teu texto, Fernando, o que mais me gratifica nele é o novo ROSTO que me revelas do P.e Aniceto. Pois dele guardava a imagem de um homem conservador e alinhado com as posições destrutivas do P.e Raúl,quando me recebeu em Fátima. Ainda bem que posso olhar de maneira diferente para esse homem de que tu agora nos apresentas uma faceta afável, capaz de se alegrar fraternalmente com as pessoas e de
saborear um bom vinho. Humano, demasiado humano. Levaste-me a
olhar de forma mais positiva para
um recanto da minha história, da
história comum.
Nem sempre quando olhamos para trás nos tranformamos em estátuas de sal mas a memória pode-nos reconfortar com a revisão do que foi. Lembro-me de um notável texto que escreveste para o Blog. O texto para mim mais comovente contando a tua partida de uma aldeia transmontana. Era a fonte, o largo da festa, a árvore tutelar,
o calor da lareira, o fumo da chaminé a cheirar a resina que tu deixavas para trás. E à saída da aldeia tu ( e todos nós estávamos contigo mesmo sem nos conhecermos)
olhaste para trás em despedida. E foi então que, procurando o rosto da mãe, só ouviste o choro. E essa voz lamentosa ecoou em ti (em nós) para sempre. E foi esse choro que se misturou com o teu nas noites iniciais de Aldeia Nova.
Sei que olhaste para trás e Eurídice era sombra, sombra de sombra de tudo o que perdemos. Como compreendo o que nos dizes, eu, que saí para o Tramagal como que para a incerteza absoluta: Depois de uma vida de estudo, com vinte e poucos anos, praticamente não tinha habilitações reconhecidas.
Olha,escrevo-te na noite funda de Torres Novas. Será possível iluminar a noite com um bom Bordéus como tu fraternalmente iluminaste a noite do nosso Geral Aniceto? Tu, eu, todos nós, felizmente nunca passámos por uma manhã submersa de Virgílio Ferreira. E agora as nossas noites são povoadas de estrelas. Vou ali
ao terraço e olha como elas tiritam tão próximas e iluminam a
tua noite e a minha. Está longe a tua aldeia de infância, está longe o choro das noites de Aldeia Nova. Mas continuas a ouvir o lamento, o choro fundo da tua mãe quando ela te viu partir para novos caminhos. E esse choro enche a tua vida de plenitude. Porque a memória é como um bom vinho que nos faz renascer entre amigos todos os dias.
Eduardo Bento.

Anónimo disse...

Junto-me ao texto do Fernando e ao comentário do Eduardo, só para vos assegurar que, ao cabo de quase meio século, eu fiquei muito mais rico só por vos ter reencontrado.
E é só
Nelson

Armando disse...

A meu ver este desabafo do Fernando revela a nostalgia de um projecto de vida magnânime, que ficou por realizar. Como sempre as grandes causas são muito difíceis de atingir, e os obstáculos intrínsecos ou extrínsecos são uma permanente ameaça. No âmbito das nossas vivências comuns, este é um testemunho invulgar dum período de diáspora, que poucos experimentaram. Incorpora as experiências que alguns de nós vivemos, com conflitos interiores, dúvidas e perplexidades, mas vividas em maior isolamento, porque longe do cantinho natal. Ao partilhar connosco, desta forma tão aberta, vivências tão pessoais, o Fernando Vaz põe na mesa toda a confiança e amizade que sente pelos amigos de muitos tempos e de muitas histórias.
A. Alexandrino

Anónimo disse...

Ao ler o texto do Fernando e os comentários do Eduardo, do Nelson e do Alexandrino, as lágrimas assomaram-se-me aos olhos e endureceu-se me a garganta. Porquê?...
Neves de carvalho

Anónimo disse...

Eu já sabia. O Vaz dá-se bem com a folia e os beberrões. Vejam lá se ele rezou o terço com o P.e Aniceto! Jantou, e bebeu Bordéus.
José Oliveira

Anónimo disse...

Embora com pouco do meu tempo de 1964/71 tem um estilo que ainda conheço, gosto de encontrar vivo e com bons intérpretes.
Não interessa se sou agnóstico, ateu, qualquer coisa no meio ou nada disto, porque estou a escrever algumas linhas para amigos de sempre.
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O amigo da Geneviéve disse:
"...Aí entrámos numa estrada em que houve curvas, subidas e descidas, usámos travão e acelerador, mas nunca mais entrámos em nenhum cruzamento... "

R: É de poeta. Na cultura em que foi formado era mais fácil falar da morte que do nascimento, porque naquela não há "cruzamento", depois das "curvas, subidas e descidas" percorridas com "travão e acelerador". Antes do nascimento, porém havia sexo, o que continua a fazer grande confusão por aí.
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"...o binómio de choque frei Bento e frei Mateus, enriquecido mais tarde com o frei João Domingos..."

R1: Leio ocasionalmente o frei Bento, no "Público" e num site universitário, mesmo quando ele explica o que toda a gente sabe ou julga saber. Quem sabe o que são o creacionismo de certa biologia, o evolucionismo e a física quântica fica convidado a compará-los. Garanto-lhes que não desaprenderão, o que é, pelo menos, um bom ponto de partida.
R2: Em 1970, o frei Mateus, talvez o mesmo aqui referido, explicou-me a diferença entre o pedido de informação numa Rua de Paris e numa rua de Londres. Foi resposta a uma pergunta que lhe fiz e que se revelou verdadeira. Pela combatividade que revelava, até parecia o presente autor do artigo sobre o "bordeaux".
R3: O frei Domingos é, com certeza o que conheci entre 1964 e 1969, como dinâmico director de escola que mandava fazer eleições, deixava votar e, após o primeiro resultado, mandava repetir o escrutínio para reajustar o perfil que se tinha esquecido de indicar. Dava liberdade e fazia ver a responsabilidade. Unanimidade não era com ele; não tinha medo de errar se tinha de o fazer para acertar. Pensava depressa mas era pouco exacto em relação a outro frei (cujo nome não quero indicar): considerava-o muito bom, apesar de ser "menos inteligente". Passados estes anos, com certeza que ele, João, já aprendeu melhor o que é a inteligência dos outros (sempre conheceu bem a sua própria e e a de alguns). Obrigado, João.
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Dei também uma vista de olhos ao site principal dos Dominicanos. Foi com enorme surpresa e gosto que lá encontrei textos avançados sobre a moderna "governance". Parabéns.
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P.S.
O amigo da Geneviéve esforça-se para dar uma imagem positiva do Provincial. É só esforço. Nesse tempo, o topo da hierarquia ainda não sabia gestão e já sabia pouco do catolicismo.

Um abraço para todos.
11/Jan/2008

Anónimo disse...

Escrevi "creacionismo". Deveria ter escrito "criacionismo".

Anónimo disse...

Decorridos 2 meses sobre os comentários anteriores ainda só consegui ver, neste blogue, raros sinais da turma de 1964/69 e também um de um curso mais avançado, ao qual pertenceu o Ferraz, que parece digno herdeiro do seu modo de estar tranquilo desse tempo.

Vi,entretanto, várias referências ao frei João Domingos, na imprensa em Angola, das quais resulta que ele continua a ser um líder natural.

Aproveitei para ver melhor como se desenvolve o raciocinio do frei Bento, como brilhante intelectual que é, e não só, tendo até aprendido algumas coisas que julgava saber em profundidade.

Apenas encontrei uma referência vaga escrita sobre o frei Mateus, aparentemente de uma viagem Lisboa/Fátima para o último encontro anual. Quase não o conheci, mas lembro-me muito bem da grande estima e admiração que suscitava junto de algumas pessoas que conheci.

Aqui ficam as referidas notas, para o caso de alguém delas precisar para se sentir mais tranquilo.

Ficam sem nome, porque, quem souber lê-las, não precisa do mesmo.