Esta entrevista a Juan Massiá, foi feita pelo jornalista Manuel Vilas-Boas, em Valadares e transmitida pela TSF, em 28 e 29 de Julho de 2007. Edita-se aqui no nosso espaço, por indicação do Joaquim Moreno, à guisa de achega ao texto anteriormente publicado, elaborado pelo Alexandrino.
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Que crime cometeu afinal o teólogo Massiá para que o Vaticano lhe impusesse silêncio e o afastamento das cátedras católicas?
Bem, não foi propriamente o Vaticano que o impôs. Simplesmente o reitor tomou a decisão de me destituir sob pressão do cardeal Rouco Varela e alguns bispos, que nunca manifestaram por escrito qualquer razão. Directamente do Vaticano, não houve qualquer proibição, nem condenação.
Mas foi um reitor da universidade muito bem mandado por Roma, com certeza.
Sim, é o Reitor da universidade que tem que proteger a instituição e a universidade. Compreende o que quero dizer…
Também a Companhia de Jesus não terá sido no seu caso a melhor companhia!
Bem, supõe-se que a Companhia tem uma vocação de fronteira. Paulo VI dizia-nos que estivéssemos na primeira linha e na fronteira. E estar na fronteira supõe estar exposto a que te dêem tiros dos dois lados. Não só de fora, mas também de dentro.
Mas voltemos à sua questão. Afinal o que é que andava a ensinar de que os bispos e o reitor da universidade não gostaram. O que estava a dizer de perigoso?
Há duas coisas: Uma, que se disse na Comunicação Social, referente a anticonceptivos e ao uso do preservativo. Esse é um tema mórbido a nível das notícias. Mas não creio que fosse a verdadeira razão. Sobre esses temas falou muito mais claramente do que eu o cardeal Martini e ninguém se meteu com ele. É que eu falei de pluralismo, coisa que não agrada ao cardeal Rouco Varela nem a muitos bispos espanhóis. Falei da Igreja no Japão e dos bispos japoneses, e sobretudo disse que estranhava muito a situação anómala que se vive no meu país. Actualmente, a Conferência Episcopal espanhola adoptou uma atitude beligerante, em sintonia com a oposição da ultra-direita, contra o governo. E isso impede um debate sereno no campo da bioética. Por exemplo, em questões como a lei de reprodução assistida ou a lei de investigação biomédica, os bispos, por razões de ideologia política ou religiosa, opuseram-se. Critiquei bastante isso. Penso que é isso que mais incomoda. O tema dos anticonceptivos, do preservativo, isso é uma coisa mais anedótica. O que acontece é que a Comunicação Social toca mais esses temas. Mas a autêntica razão de fundo é estar na linha do Vaticano II, com a qual não está a Conferência Episcopal espanhola. Estar a favor do pluralismo, do ecumenismo, do diálogo inter-religioso, criticar a situação de retrocesso ou de regresso aos tempos do nacional catolicismo, isso não lhe agrada e provoca-lhe mal-estar. Mas nunca os seus responsáveis o disseram em público nem em qualquer documento ou carta. Só indirectamente, através dos superiores da Companhia, fizeram pressão para que quem dissesse essas coisas, fosse afastado.
E afastado, o que faz agora?
Voltei. Eu estava aqui emprestado pela minha província do Japão e agora voltei ao Japão onde tenho trabalho na universidade de S. Tomás, a universidade católica da diocese de Osaca. Tenho também aulas de bioética num curso de verão na universidade de Sofia, dos jesuítas. E tenho trabalho tanto em Osaca como em Tóquio, no comité social dos bispos Japoneses e no comité de Justiça e Paz. Isto seria certamente impensável, no meu país, no Estado espanhol, porque o ambiente é muito diferente.
Vai ter que ter cuidado com o cardeal de Tóquio?
Ah, não. Ali o episcopado é muito aberto e dá luz verde aos teólogos. Mas talvez não seja muito prudente dizer isto. A propaganda pode influenciar a nomeação de bispos de outra linha e assim estragar a conferência episcopal…
Pode a teologia católica sobreviver sem liberdade para a investigação?
Sem liberdade? Bom, sem liberdade não há investigação nem há educação. A liberdade de cátedra é indispensável para a educação e para a investigação. Por isso eu disse, e alguém ficou incomodado com essa ironia, que a nossa universidade pontifícia de Comillas deveria renunciar ao seu nome e chamar-se escolinha de catequese. Porque, se não há liberdade de investigação e de cátedra, não há universidade !
E porque é que a Igreja Católica manifesta uma quase obsessão pelas questões relativas à vida, designadamente, o aborto e a eutanásia?
Carregamos um peso de muitos séculos, um lastro muito forte, tanto nas questões do começo como do fim da vida. Mas sobretudo nas do começo. Alguns incomodam-se que eu diga, com alguma ironia, que é mais fácil falar do final que do começo, porque no final não intervém o sexo. O sexo é como uma piscina onde a Igreja católica não tem pé, onde se afoga inevitavelmente. Compreende o que quero dizer? É uma piscina onde a Igreja não sabe nadar. A Igreja e uma certa teologia romana carregam um peso de muitos séculos nesta questão da sexualidade.
O preservativo é ponto de honra da moral católica. Porquê?
Na verdade nem se devia fazer disso um problema. O tema do preservativo é simplesmente uma questão de responsabilidade e a ser tratada com bom humor não se devia fazer disso um problema.
E porque é que a Igreja Católica impõe o celibato e se opõe ao sacerdócio feminino?
O que acontece é que a Igreja chega tarde a muitas coisas. Talvez não suceda o mesmo com a próxima geração. Mas há já muitos anos que a Igreja deveria ter ordenado sacerdotes, homens e mulheres, leigos casados. Isso irá inevitavelmente acontecer. Hão-de ser testemunhas disso, talvez os nossos netos ou bisnetos.
Bento XVI não fará essa mudança?
Penso que nós já não o veremos, porque a Igreja anda muito devagar em certas mudanças e chega, como disse, demasiado tarde. O que aconteceu no Vaticano II foi, para mim, um milagre. Isso acontece uma vez cada dois mil anos. É por isso que há agora esse esforço tão grande de retrocesso, de regressão, relativamente ao Vaticano II. A mudança deveria ter acontecido três ou quatro séculos antes. O Vaticano II chegou com três ou quatro séculos de atraso, e logo a seguir veio a marcha-atrás. Durante os 26 anos do pontificado de João Paulo II, assistiu-se à repressão de teólogos, à nomeação de bispos de determinada linha, à publicação de documentos que, citando palavras do Vaticano II, afirmam exactamente o contrário… Numa palavra, houve uma grande onda de retrocesso. Mas, no pontificado actual, isso está a ser incrementado também de uma maneira bastante perigosa.
É missionário no Japão há quase três décadas .Como reage, de um modo geral,, o oriente a esta saga moralista da Igreja Católica?
Nós, que vivemos ali, não podemos andar a complicar a vida das pessoas, transmitindo esses exageros morais. Para mim, é mais fácil falar com membros de outras religiões ou com gente não religiosa no Japão. Venho a Espanha e tudo se torna difícil ao falar com católicos tradicionalistas ou neo-conservadores. No Japão não tenho este problema. Não desço a esses detalhes, porque não é preciso descer, compreende?
E os japoneses reagem a esta preocupação da Igreja católica?
Quando isto aparece na Comunicação Social, creio que simplesmente não se percebe. Não sei se a Igreja Católica se dá conta que anda a falar nas nuvens, que o mundo pende para outro lado e que não percebe a linguagem que utiliza nem entende nada do que é dito.
É projecto prioritário da Igreja Católica a evangelização do continente asiático. Que tipo de intervenção poderá fazer, de facto, a Igreja Católica num continente como aquele?
O tema da evangelização e da missão está a passar por uma mudança decisiva. Eu trabalho com budistas e pessoas de outras religiões e temos um conceito de missão que não significa que eu converta os outros à minha religião, mas que as outras religiões e eu com eles, embarquemos numa nova missão que é ajudar o mundo a despertar para a religiosidade e para a espiritualidade. Dei um curso de introdução, não ao cristianismo mas à religiosidade, com budistas e pessoas de outras religiões. E nesse curso nenhum de nós tentou fazer proselitismo da sua própria religião. O que se torna necessário é que as religiões se unam para colaborar no despertar do mundo para a religiosidade e para a construção da paz e da justiça, a começar pela comunidade local. É uma noção de missão completamente diferente da tradicional.
Não terá nada a ver com o modelo assistencial que a Igreja Católica desenvolve no continente africano?
O continente africano é muito diferente, é um mundo completamente diferente. O que acontece com a Ásia é que é um mundo muito vasto. No caso do Japão surgem algumas problemáticas juntas. A problemática da pobreza, que encontramos na América Latina, a problemática das outras culturas que encontramos na África, e a problemática das grandes religiões unida à problemática da secularização num Japão que é mais extremo ocidente que extremo oriente. Nas questões da biotecnologia e da bioética o Japão é um caso especial. Se penso que vou transmitir alguma coisa ao Japão, isso é de grande ingenuidade da minha parte. Nos quase trinta anos que lá estou, se alguma coisa aprendi foi que o Cristo que eu pensava que tinha que ir levar para lá, tinha chegado muito menos do que eu pensava e que o Cristo que eu pensava que não estava lá, já lá estava muito mais do que eu pensava.
Portanto, não converteu ninguém!
Pois, é que o esquema preconcebido de que vamos converter alguém não tem sentido. Eu não estou ali para baptizar e converter os japoneses.
Então que é que está a fazer?
Que eles e eu nos convertamos ao mistério que nos ultrapassa a todos. É isto que o Vaticano não entende. Não vamos convertê-los ao cristianismo mas que eles e nós nos convertamos! Chame-se Deus, chame-se Buda, chame-se… aquilo a que nenhum de nós se converteu ainda. Isto é um enfoque muito mais radical da missão e da conversão. Se presumimos que já temos o campo conquistado isso é falar com o tom de segurança que utiliza a Congregação da Doutrina da Fé, no documento Dominus Iesus a propósito da salvação. Esse é o esquema que a nós, os que estamos no Japão, não nos diz nada.
Acha que Pequim vai permanecer de costas voltadas para o Vaticano?
A questão da China é muito complexa. O Vaticano deveria procurar compreender bem o que durante todos estes anos a Igreja fez na China. As duas Igrejas de que se fala, a oficial e a outra, a patriótica… é preciso compreender, dentro daquela cultura, o esforço que fizeram para sobreviver nessa situação. De futuro creio que é inconcebível ali uma cristandade com um Direito Canónico como o que temos aqui. O Vaticano terá que dar saltos para os quais ainda não está preparado.
E as relações que o Vaticano mantém com Pequim são toleráveis?
Francamente, não estou preparado para falar desse assunto. Não sei se isso se mantém a um nível meramente diplomático. Ainda que mudasse a situação e nos dessem todo o tipo de facilidades, é preciso sairmos de nós mesmos, sair desse esquema do século XIX chamado ciclo das missões. Esse ciclo já terminou. Estamos agora na era das religiões, e não só das religiões, mas do inter-cultural, do inter-religioso que inclui a colaboração com o mundo não religioso. Todos juntos, nesse pluralismo, vamos construir, em ordem ao futuro da humanidade, a justiça, a paz, a fraternidade. Para isso é preciso darmos saltos muito grandes que nem a Europa nem a teologia romana estão a dar ainda.
Já se referiu ao papa João Paulo II… Não perdeu ainda a memória desse papa que governou a Igreja católica por mais de um quarto de século?
Com todo o respeito, creio que João Paulo II fez muito mal à Igreja: 25 anos de nomeações de bispos de uma determinada linha, 25 anos a andar para trás em relação ao Vaticano II, apesar de se dizer o contrário… e também o modo de se tratar na Igreja estas questões muito concretas da sexualidade, da justiça, da paz, da ética social. A Igreja mantém contradições que ainda não superou. Usa uma linguagem em questões sociais muito diferente das questões da sexualidade, ou da vida. Dentro deste tema da vida, fala de modos diferentes sobre o fim e o princípio. Ainda não fez essa mudança radical no campo da teologia moral. Outros temas, já antes do Vaticano II, vinham sendo preparados, havia uma reforma litúrgica, estavam em andamento os estudos bíblicos e históricos. Na moral foi ao contrário. Vinha-se pedindo mudança há mais de um século e nada foi mudado. Por fim, com o Vaticano II, dá-se luz verde para que se inicie a revisão da moral. E não passou uma década para que se começasse a andar para traz. Temos aí matéria pendente para os próximos pontificados…
Como é que reagiu à subida ao papado do cardeal Ratzinger?
Na verdade, receio que haja um interesse muito forte em dar continuidade ao movimento de retrocesso de João Paulo II. Há muitos grupos e movimentos na Igreja interessados nisso. Com todo o respeito, creio que ainda que o inquisidor se viste de seda não deixa de ser inquisidor, como diz um refrão castelhano. Ainda que ponha uma tiara, continua inquisidor. Não o dirá ele directamente, poderá dizê-lo a Congregação para a Doutrina da Fé. Será dito certamente noutros documentos. Os que saíram nos últimos meses fazem-nos lembrar os tempos perigosos de Pio X contra o modernismo ou os últimos tempos de Pio XII. Infelizmente há um grupo muito forte na Igreja, neo-conservador, e jovem, que apoia essa linha. Não é um mero grupo constituído por alguns bispos ou cardeais. Há um sector integrista e conservador que pede isso mesmo.
E que tem nome?
Você que é jornalista sabe melhor que eu. Poderia indicar pelo menos cinco nomes. Creio que é mais elegante que eu não os mencione.
Não falamos com certeza do Opus Dei, porque é mais velho e é do seu país. Falamos talvez de um movimento que nasceu na Itália e que se chama Comunhão e Libertação.
Esse parece-me muito mais subtilmente perigoso que o Opus Dei.
A sua condenação como teólogo ocorre já sob as directivas papais de Bento XVI.
Temos que falar com rigor. A nível da Comunicação Social fala-se de condenação, ou de heresia. Mas a mim ninguém me condenou. Nem eu nem Jon Sobrino fomos condenados. Condenação é um termo técnico muito forte. Também ninguém disse que sou herege, um termo técnico também muito forte. O que disseram foi que um livro meu criava problemas e, por isso, não poderia ser reeditado numa editorial católica. Foi isso que aconteceu. E um reitor de uma universidade considerou ser prudente adiantar, em três meses, a minha jubilação na cadeira de bioética, para tranquilizar o cardeal Rouco de Madrid. Mas não tenho nenhum documento em que se diga que sou herege, não tenho qualquer condenação. Há só rumores. Não querem comprometer-se a pôr as coisas por escrito. Se me tivessem escrito uma carta mencionando os pontos do meu livro considerados perigosos, eu teria respondido. Porque tudo o que eu disse nesse livro, já tinha sido dito, de maneira ainda mais forte, em livros anteriores, todos com aprovação eclesiástica. O que acontece é que neste livro, escrevo de um modo muito simples, a um nível de divulgação. E como dizia aquele humorista argentino chamado Zorro: cala-te menino, que se compreende tudo o que dizes!
Então vamos dizer que melhor era o tempo da Inquisição em que havia um julgamento!
Creio que estamos a voltar a um tempo de streep-tease do Vaticano. Estamos a voltar a um tempo de máscaras. Quando sai um documento que diz “Deus caritas est”, dizemos: que bom! Um papa muito enigmático diz que Deus é amor. Mas depois tira-se a máscara e o que aparece é um documento da Congregação para a Doutrina da Fé sobre a liturgia. Cai o pano e vê-se tudo! Isso faz-me lembrar aqueles tempos em que João XXIII tinha vinte e poucos anos e era professor de história… Nessa altura não entrava em campo o Opus Dei, mas um jesuíta, porque havia jesuítas muito tradicionalistas que faziam trabalho de espionagem para o Vaticano. Esse jesuíta averiguou então em que livrarias de Itália e que padres tinham comprado a História da Igreja de Duquesne, em francês. Roncali, futuro João XXIII, tinha-a comprado porque era professor de história da Igreja. E até tinha escrito uma recensão muito crítica, mas só o facto de a ter comprado fez com que tivesse uma ficha no Vaticano. Quando foi a Roma, um monsenhor chamou-o para lhe dizer: Temos informação de que o senhor é modernista! Tenha cuidado sobre o modo como ensina a Bíblia. Roncali saiu de lá a chorar, meteu-se numa igreja e disse: nem sequer sabem que o que eu ensino não é Bíblia mas História da Igreja. Esta caça às bruxas, a Inquisição, está a repetir-se nos dias de hoje. O que naqueles tempos fazia um jesuíta tradicionalista, ao serviço do Vaticano, hoje será outro. Mas também poderá ainda haver jesuítas que o façam. O porta-voz da Conferência Episcopal, mão direita do cardeal Rouco, é um jesuíta… Jesuíta é também Jon Sobrino, que está na América latina e que não foi fuzilado, há alguns anos na Universidade de Salvador por estar ausente e agora é, de certo modo, fuzilado pelo Vaticano…
Foi essa a expressão que eu utilizei no meu blogue quando lhe enviaram a notificação. Aos seus companheiros mataram-nos. A ele não o mataram nessa altura, mas foi a sua própria Igreja que agora disparou contra ele. Matam-te os de dentro.
E que razões para esta morte de Jon Sobrino?
Simplesmente, nenhuma. Mas os que escreveram essa notificação querem segurança, querem certezas, não querem a Teologia da Libertação. Cumpre-se o que disse Jesus: o discípulo não é mais que o mestre.
Teólogo Masiá, o que é que se passa, afinal, no Vaticano?
Que, embora o Espírito Santo sopre como um tufão, fecham as janelas e não o deixam entrar. Mas é preciso ter muita esperança e optimismo, porque ao Espírito Santo ninguém pode travar. Vai continuar a soprar. As mudanças do Vaticano II são irreversíveis, apesar desta época de retrocesso.
O Espírito Santo saberá também latim…Mas como é possível um documento que acaba de sair e a que já se referiu, continue a afirmar que a Igreja é o exclusivo lugar de salvação…
Muito simplesmente, nem esse documento nem a Dominus Iesus são admissíveis. Creio que, em consciência e em fidelidade ao Evangelho, é preciso rejeitá-los e dizer – já chega! – com toda a clareza. Há bispos que pensam assim, mas não se atrevem a dizê-lo. Mas é preciso dizê-lo sem medo ainda que incomode. Porque isto é como o que estava a acontecer no final do pontificado de Pio XII ou no pontificado de Pio IX. Começam a produzir-se documentos nesta linha e o povo crente olha para eles como se tudo fosse dogma de fé porque vem de Roma. É preciso ensinar o povo a ser adulto, e que não comungue, como se diz em castelhano, com rodas de moinho. Monopolizar o Espírito Santo é muito sério. Diria que nenhuma espiritualidade tem o monopólio do sagrado. Nenhuma religião tem o monopólio do divino. E nenhuma Igreja cristã tem o monopólio do Espírito de Vida. O Espírito Santo diz-nos a todos: já chega de monopolizar-me! Então convida-nos a sair do exclusivismo, do fundamentalismo, a admitir o pluralismo e a perder o medo do relativismo. O Espírito Santo é o único que não muda na Igreja. O Espírito é quem nos faz mudar continuamente.
Perante estas situações está ou não em causa a eclesiologia do Vaticano II?
Essa famosa disputa faz lembrar as disputas medievais de quantos anjos caberiam na ponta de um alfinete. A famosa palavra subsistet, explicou-a muito bem Schillebeeks nos seus livros. E também o padre Sullivan. Que o Espírito de vida permanece na Igreja católica, claro que sim, apesar de a Igreja católica, que somos todos nós, atraiçoar muitas vezes o Espírito. E permanece também em todas as Igrejas irmãs, e em todas as religiões irmãs. E, tanto nós como as outras Igrejas e Religiões somos essa mistura de autenticidade do sopro do Espírito e de inautenticidade da nossa fragilidade, da nossa debilidade humana.
Isso significa que o diálogo ecuménico foi mesmo traído com este documento romano?
Sim, sim! Completamente. Mas não é preciso ter medo, porque o Espírito não se deixa atraiçoar. Poderá atraiçoá-lo um documento de Roma, mas continuamos em frente.
Outras sensibilidades cristãs, protestantes e evangélicos, terão naturalmente uma palavra de contestação a estes documentos!
Com certeza. Esse documento envergonha-me. E se o Vaticano não lhes pede perdão, peço eu aos meus irmãos protestantes. Porque eu tenho muito boas relações com eles e com outras igrejas e outras religiões, no Japão. Vivemos juntos, vamos juntos ao mundo das margens, promovendo juntos a paz. Um documento desses não passa de um pequeno empecilho. Neste caso, o melhor que podemos fazer, (e é o que fazemos no Japão quando sai um documento destes), é não o traduzir para que não faça mal a ninguém.
Está de volta o missal em latim de Pio V. Parece estar em curso a sua reabilitação nos sectores mais conservadores. Afinal o que significa a missa em latim no ano 2007.
Muito simplesmente acho que não significa nada. E penso que o que devemos fazer, é ignorar. Devemos estar onde realmente estão os problemas. Isso é andar nas nuvens. O que acontece é que há um sector da Igreja, e isso passa-se no meu país com os bispos, que não se dão conta que já não têm o poder social que tinham antes, mas não se resignam a considerá-lo perdido. E estamos a lutar por coisas em relação às quais as pessoas ficam indiferentes. E podem perguntar-se: de que estão, afinal, a falar?
Mas a reforma litúrgica também não foi mais longe do que a tradução dos textos tradicionais do latim para as línguas vernáculas. Faltará criatividade na liturgia católica?
Dizem alguns que se foi demasiado longe. Eu creio que aconteceu o contrário. A reforma foi pequena. Quando traduzimos do latim para o japonês, por mais fiel que deva ser uma tradução é preciso ir para lá do texto traduzido. É preciso criar, e o Espírito é criatividade. Dizem o mesmo do catecismo que já tem o essencial, agora é só traduzi-lo para o japonês. Não, é que o catecismo já está feito numa determinada cultura, latina, eclesiástica, medieval. O essencial, o fundamental, o universal não foi transmitido desde o princípio. Mas se pensamos numa tradução em que o fundamental já está dito, isso não é mais que um sentido único. E esse sentido único é dado por Roma, sendo só necessário traduzi-lo. Significa que não foi entendido o que é a inculturação e que há uma filosofia da identidade de uma cultura que está por fazer.
E quem deve fazer essa inculturação?
Não se deve confundir inculturação com adaptação. Os documentos de João Paulo II falam muito de inculturação, mas confundindo-a com adaptação. Um exemplo concreto: no tempo da era cristã no Japão havia uma disputa sobre a palavra graça. Uns eram partidários de se dizer gratia, graça em latim, e explicar o termo, porque dizê-lo em japonês não se entendia. Outros eram partidários de o dizer em japonês e diziam ontcho (que é uma palavra japonesa muito complicada). Ontcho significa um favor que um soberano faz à mulher favorita, àquela com a qual irá dormir nessa noite. E diziam: não, isto não é uma imagem própria para falar da graça. É melhor dizê-lo em latim. E que acontece? Que nem um nem outro termo servem. Da comunidade que assimilou a fé, brotou uma terceira expressão que era fruto de uma autêntica inculturação. Disseram os cristãos: então Deus preocupa-se amorosamente mesmo de alguém como eu! Isto em japonês diz-se taitsétsni: cuidar muito. Não é o termo latino, nem o japonês de tradução directa. Isto poderia parecer inculturação, mas transmitiria uma imagem errada. A inculturação não é o facto de um missionário se adaptar a uma cultura, mas a expressão de uma comunidade enraízada na fé e que dá os frutos próprios dessa cultura. Essa é a autentica inculturação que está ainda por fazer.
Depois da visita do papa Bento XVI à Turquia e das promessas de intensificar o diálogo com os ortodoxos ,o teólogo Masiá, julga prováveis avanços visíveis entre as Igrejas de carácter imperial e de teologia conservadora como são as Igrejas Ortodoxas?
Acho que é muito difícil. Do ponto de vista do Japão, é muito mais fácil para nós o diálogo com os budistas. Tanto com os ortodoxos, como na questão do Islão, também com os protestantes, arrastamos toda uma história difícil... Com muita riqueza e com muito lastro. E esse lastro, esse fardo da história pesa-nos muito. O Vaticano, claro, vai fazer o que sempre fez , estabelecer relações diplomáticas. Dizer sim, não, mas… tentando contentar uns e outros… A Europa tem que se libertar de muitos fardos da história. Curiosamente torna-se mais fácil a relação com os budistas, sendo mais distantes.
E porquê o medo do Vaticano em relação às religiões orientais, sobretudo o budismo?
Há um tema muito sério que está por tratar. Reconheço que a Dominus Iesus toca um tema que é muito delicado mas que está ainda por tratar. É o grande tema da teologia. Quando falamos da unicidade, da historicidade, do papel de Cristo, é preciso sermos muito sinceros e reconhecer que nunca essas questões tinham sido colocadas como agora são quando nos questionamos a fundo juntamente com as outras religiões, como é o caso concreto do Budismo. Se o cristianismo se tivesse expandido de modo diferente como se expandiu, se se tivesse expandido pelo oriente, em vez de Niceia e Calcedónia, talvez hoje estivéssemos a falar da Trindade numa linguagem mais parecida aos três corpos de Buda que às especulações trinitárias da teologia medieval . Parece-me, então, que há um medo muito grande na teologia romana de tocar esse tema. Medo que algumas questões muito sérias vacilem. Como o tema da Cristologia. É preferível reconhecer, com toda a honestidade, que poderemos apresentar essas questões de formas diferentes do que até agora se fez. Mas para isso é preciso perder o medo. O Evangelho diz: perder-se para encontrar. O que se perde encontra-se, é preciso sair de si. E este tema vai colocar-se nos próximos cem anos de um modo diferente. É o medo disso que leva o Vaticano à Dominus Iesus, ao documento que agora saiu, para apresentar certezas. Dizia-me um bispo: o que tu dizes, Juan, eu compreendo, mas o povo, os cristãos são crianças… E eu: não, primeiro não são crianças, mas ainda que o fossem, se lhes falamos dessa maneira nunca deixarão de o ser. Por isso, é preciso perder o medo de tratar os cristãos como adultos. Paul Ricoeur diz que na nossa cultura europeia temos uma dupla tradição, de convicção e de crítica. Não se pode ter medo à crítica. Santa Teresa dizia que tinha mais medo a um confessor que fosse muito santo, mas que estudasse pouco, do que … o oposto.
Regressando ainda à Turquia, acha que os muçulmanos estão definitivamente pacificados depois do Vaticano ter prometido que dava a mão à Turquia para entrar na Comunidade Europeia? E que aquele incidente da Alemanha foi ultrapassado?
Levantou-se uma grande polémica com aquelas afirmações. Eu também as critiquei, mas o que me preocupou naquele documento não foi a citação que levantou a polémica. Isso não é o mais importante. Aquele documento tem coisas muito piores que não foram criticadas. Os temas do logocentrismo, do eurocentrismo e do androcentrismo, são três temas que estão no documento, mas só se falou da outra questão.
Explicando…
A maneira de falar da teologia, do logos é muito logocêntrica. No Japão isso também não seria entendido. A maneira de falar da Sabedoria, como no Antigo Testamento, ignora o que diz toda uma teologia feminista da actualidade. É muito androcêntrica. E falar da Europa com as suas raízes cristãs e como centro da cristandade é muito eurocêntrico. Esses três pontos parecem-me mais perigosos que o episódio tão acidental das alusões aos muçulmanos, que pode ser explicado como um mal entendido. Essa citação é o método típico de um professor de teologia que cita um livro recente dizendo que não é a sua opinião. Isolada do conjunto fica só a citação. O que é verdadeiramente perigoso naquele documento ( acredito que Ratzinger seja sincero e humilde,) é o teor da sua teologia mais agostiniana que outra coisa. Ratzinger foi inquisidor durante muito tempo e agora não dirá essas coisas directamente por ser papa, mas através do cardeal Amato. Isso é mais perigoso ainda que o comportamento de João Paulo II.
Pensa exequível uma visita do papa a Moscovo?
Não sei se virá a realizar-se ou não. Todas essas coisas… acontecem como com as beatificações dos santos. É todo um mundo de política… creio que a Igreja deveria agir de outro modo…
A canonização dos santos é política?
Pois é. Veja, deu muito mais vida a toda a Igreja o irmão Roger, (que em paz descanse), que todas as viagens de João Paulo II . A Igreja devía abandonar todo este mundo da política, o Vaticano como um Estado, o sistema dos núncios e cardeais, e voltar a modos muito mais evangélicos. Com isso a Igreja ganharia não só a juventude, mas outros sectores já perdidos.
Mas não acha que a diplomacia do Vaticano seria uma chave útil para abrir alguns caminhos da paz internacional?
Estão empenhadas nesse processo algumas religiões , o Conselho Mundial das Igrejas, a Associação das Religiões pela Paz. Os católicos têm que abandonar a ideia de quererem ser sempre os protagonistas, e juntarem-se ao que já existe.
O terrorismo internacional mergulha em motivações religiosas fundamentalistas?
A violência sob a capa de guerra contra o terrorismo, a violência de Bush. a violência, raiz de ambas, desde a pobreza à droga, passando pelo problema das armas , as causas do terrorismo são um assunto é muito sério. Tanto o Islão como outras religiões, e o cristianismo também, têm que passar pela sua autocrítica e pela sua hermenêutica. Tanto um cristão fundamentalista, que siga a Bíblia à letra, como um crente do Islão que lê o Alcorão à letra, não passaram pela hermenêutica. Não há teologia sem hermenêutica. Como não há filosofia sem analogia. É necessário passar pela autocrítica. Na reunião de Quioto do ano passado sobre as religiões, depressa se chegou a consenso sobre o essencial. Primeiro, que todas as religiões têm tradição de paz; segundo, que todas atraiçoaram essa tradição. Todos temos essa tradição e todos lhes fomos infiéis. Assim, começar por essa autocrítica inibe o terrorismo, o fundamentalismo, os dogmatismos, o totalitarismo, os exclusivismos.
Para si o que é mais perigoso, um católico fundamentalista, um judeu fundamentalista ou um muçulmano fundamentalista?
Se são fundamentalistas, tão perigosos são uns como outros. Para mim é mais fácil falar com um protestante aberto que com um católico fechado. É mais fácil falar com um budista aberto que com um protestante fechado. É mais fácil falar com um islâmico aberto que com um islâmico fechado. O problema é aquilo que dizia Bergson das duas fontes da religião e da moral: se é da aberta ou da fechada. Se o diálogo está fechado, é indiferente quem seja. Seria necessário recorrer aos psicólogos. O problema provém do medo, porque o medo gera insegurança, e da defesa nasce a agressividade.
Padre Massiá, para onde caminha, afinal, a Igreja de Bento XVI?
Bom, não há uma Igreja do papa Bento XVI. A Igreja é de Jesus. . Dizer Igreja de Bento XVI seria cair na papolatria. Não há Igreja de Bento XVI nem de João Paulo II. Há uma Igreja que nasceu do movimento de Jesus, o movimento a que Jesus deu início e do qual não fazemos caso. É a comunidade reunida por Jesus e em seu nome que prolonga o corpo de Jesus, que dá testemunho dele vivo. E animados por esse espírito de Jesus é que discordamos dessa “Igreja de Bento XVI ou do cardeal Rouco”. Discordar dessa igreja, não da Igreja. Precisamente para que continue a ser a Igreja de Jesus.