terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Deixar de tentar ser bom


"Um texto que não mexa, não merece ser lido"
Frei Bento Domingues

Quanto mais me torno ciente da precaridade da vida, mais consciente me torno. De nada adianta, partilhar, formas simples de gestão de stress (1), ou oferecer gratuitamente o que ninguém tem para vender (2), se não estivermos cientes de que estamos vivos. Já tinha passado dos quarenta anos quando, perante o diagnóstico de “caso perdido”, me apercebi que a vida me tinha passado ao lado. Foi nesse exato momento que fiquei ciente da fragilidade da vida, e despertei do sonho. O sonho de olhos abertos, com que corria atrás do efémero “SUCESSO” que me davam o MBA em gestão disto ou de aquilo. Fiquei consciente do escravo que eu próprio me tinha tornado com a minha corrida atrás “do nada”. E só acordei do sonho em que estava mergulhado quando as maiores autoridades em doença deste país, me consideraram um “caso perdido”. Foi como caso perdido do mundo ilusório, que acordei para a vida, e partilho convosco as minhas experiências.
Já passaram quase 20 anos, desde a altura que provoquei um grande alvoroço numa sala de hospital psiquiátrico de Lisboa. Eu vou contar o que se passou na realidade. Foi no frio janeiro de 2001 que um psiquiatra (não vou usar nomes para não comprometer os intervenientes na narrativa) do C.R.A.S., solicitou a minha colaboração para ajudar um jovem toxicodependente, que tinha como residência, a mesma paróquia, onde se situa a casa escola António Shiva. Aceitei e agradeci a confiança depositada no nosso trabalho, por esse profissional da doença, que por sinal pouca ligação profissional tínhamos. Depois de medicado trouxe comigo o jovem de 26 anos, para iniciar uma desintoxicação de heroína e um processo de recuperação e transformação pessoal. Como o jovem, era da nossa área de residência, contactei pessoalmente os pais, para lhe dar conhecimento que o filho se encontrava entre nós. Apesar das dificuldades habituais das primeiras 72 horas, o processo de recuperação foi fantástico. Ao final de 21 dias a metamorfose estava consumada e um novo ser tinha surgido. Foi no final da primeira semana de fevereiro de 2001 que o jovem deixou a casa escola rumo a Espanha para viver uma vida totalmente nova. Os meses passaram e o fluxo de novos residentes não parou de fluir, não nos lembrando mais do jovem que tinha partido rumo a Espanha, até que…, no dia 25 de Dezembro no final da missa de natal, encontro os pais do jovem, que me anunciam a vinda do filho no final do ano, com o propósito de nos vir a agradecer pela nova vida que nunca mais largou. Fiquei muito alegre por saber que o jovem se encontrava feliz e realizado. Os dias passaram-se o final do ano chegou e entramos por um novo ano, sem ter-se a esperada visita…, aceitei o facto e não pensei mais nisso. Havia muita gente sedento de uma nova vida.
Foi então que já em meados de janeiro, entro acidentalmente numa sala, á procura de alguém…, é aí que encontro os pais do jovem lavados em lagrimas, acompanhados por uma psicóloga, uma técnica de serviços sociais, e uma psiquiatra…, que se esforçavam por amenizar a culpa daqueles pais. Quando me avistaram recuperaram descontroladamente o pranto, que se transformou em gritos angustiantes, que nem os poderosos sedantes, conseguiam evitar.
Foram momentos aflitivos, mas ao mesmo tempo iluminados. Foi nesse momento que fiquei ciente do que se tinha passado. E que o jovem, tinha sofrido um acidente mortal a porta de casa dos pais, no dia 31 de dezembro. E todo o sofrimento dos progenitores, estava ancorado no facto de terem desejado a morte ao filho, milhares de vezes, pela vergonha que passavam cada vez que sabiam que o filho tinha sido preso por estar envolvido num crime de furto ou outros para sustentar a dependência das drogas. Perante aquele desespero e angústia alívio um pouco a culpa dos pais e aterrorizo as senhoras que estavam a tentar fazer o melhor que sabiam e podiam. E começo eu “neste momento a culpa não deixa enxergar nada”. “a dor da perca de filho, só quem passa por ela, a pode avaliar”. “o vosso filho foi um mestre que passou pela terra, com seu trajeto de vida, e perante tantos perigos, envolvido em fugas e tiroteios com policias e outras lutas pela sobrevivência, sempre escapou” (aqui mostrou como essa vida é dura e perigosa). “Agora que tinha uma conduta de vida invejável, e que todos achavam feliz e autorrealizado, morre”.  “mais uma vez nos vem mostrar a vida, como tantos outros mestres («vive cada momento, como que seja o último…, porque ninguém sabe se está vivo no segundo seguinte…,»)”. E…, concluo desta forma! “apesar de estar solidário com a vossa dor, muito semelhante á dor de Maria mãe de Jesus, e a outros pais de mestres, sinto-me honrado por vos conhecer pessoalmente e ter o privilégio de vos abraçar nesta hora de perca, mas ao mesmo tempo da realização da missão de vosso filho. Regozijo-me também, por a minha casa ter sido o meio da metamorfose.
Perante o olhar escandalizado das pobres técnicas, que crispavam faíscas, raios e coriscos…, aqueles pais até esboçaram um sorriso…, enquanto a culpa amainava em seus corações, iniciando assim o seu processo de luto.
O texto já vai longo, e eu somente me limitei a partilhar dois factos ou duas experiências. 1º O ter acordado para a vida, quando me mostraram a morte, 2º o despertar para vida…, quando um jovem morre de “acidente”. Sempre nos alerta para viver intensamente o momento presente porque pode ser o último.
Estou profundamente agradecido, por permitirem a minha presença na família dominicana
António Fernandes

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