Rato cego! Fedelho de calça rachada!... Era assim que o
bondoso padre Oliveira admoestava os distraídos, os indisciplinados, os
faladores e os que se riam dos outros e de si mesmos. E quem é que não foi
repreendido desta forma por ele?...
A sessenta e
tantos anos de distância, recordo-o com uma saudade enorme, pelos mais diversos
motivos. Um homem são e santo, introvertido talvez, mas que também ria com os
que riam com ele. Eu deveria andar pelo segundo ou terceiro ano, quando foi
anunciada a visita do Mestre Geral da Ordem Dominicana, um frade que dava pelo
nome de Brown e que se bem me recordo era de nacionalidade alemã. Creio mesmo
que foi bispo e cardeal. Como o homem era alemão, tinha que ser saudado em
latim tendo sido o latinista Clemente de Oliveira o redactor da saudação. E
agora vá-se lá saber porque é que o padre Oliveira me havia de seleccionar a
mim para fazer a leitura de um pequeno texto em latim!?... Quem conheceu este
mestre em latim e foi seu aluno como eu, sabe como ele se esforçava para que se
falasse o latim com a acentuação devida, e com aquela cantata tão
característica da língua de Cícero. E então ele chamava-me ao seu quarto e
obrigava-me a ler repetidas vezes o pequeno texto, assim à guisa de ensaio. Na
recepção ao Mestre Geral eu lá fui ler a saudação e no fim da cerimónia, com
aquele sorriso que o caracterizava foi-me dizendo que estive bem. Tive comigo
durante muitos anos esse pequeno papel, por ele escrito à máquina mas, as
andanças da profissão fizeram com que ele desaparecesse, para grande desgosto
meu.
As paródias, quando
tínhamos por prefeito o padre Oliveira, eram muitas e diversificadas.
Imagine-se por exemplo quando, em pleno estudo, ele repreendia alguém que
conversava ou protagonizava qualquer acto susceptível de distrair os
companheiros, lá tínhamos a voz do mestre:
Seu rato cego!...
Mas havia sempre
alguém que, vestindo a capa da ingenuidade, perguntava:
-Sr. padre Oliveirinha, o que é um rato cego?
-Olha menino é aquele que não vê um palmo à frente
do nariz!
Imagine-se agora
uma sala inteira a estender a mão em frente ao nariz para medir um palmo!...
Era a gargalhada geral, para irritação do bondoso Clemente Maria de Oliveira.
A Velha Casa ou
Casa Amarela, era composta por três pisos habitáveis. No rés do chão,
funcionava a cozinha, copa, o gabinete do director e respectivos aposentos, sala
do capítulo, refeitório e um salão dedicado ao estudo do primeiro e segundo
anos e sala de aulas do primeiro ano. A ligação ao primeiro andar era feita
através de uma escadaria que partia de um hall
da entrada da portaria e que rematava com as estantes da biblioteca. Este
piso tinha a nascente um salão que servia de sala de aulas ao segundo ano e de
salão de estudo para o terceiro, quarto e quinto, e dava acesso à capela. Deste
salão partia um corredor que do lado direito dava acesso à sala do 3º ano e 4º
anos a uma casa de banho destinada a suas reverências, a que se seguia um vão
de escadas que dava acesso ao rés do chão e ao dormitório do terceiro piso. Ao
fundo e do mesmo lado ficava o laboratório que era também a sala do 5º ano. Do
lado esquerdo ficavam os quartos dos frades e dos irmãos que também eram frades
professos, mas sem ordens presbiterais. O último piso, sótão adaptado, era
destinado exclusivamente a dormitório, havendo a um canto, do lado poente, um
quarto destinado ao perfeito e do lado oposto uma espécie de casa de banho que
servia em exclusividade para diurese. A nascente e a toda a largura da
parede havia diversos lavatórios para a higiene matinal e um espelho enorme
para barbas e penteados. As casas de banho gerais, com urinóis, sanitas e
chuveiros, funcionavam em anexo, situado no rés do chão junto à escadaria do coro da
capela.
Vamos então à
sala do 5º ano e laboratório, onde eu e os meus companheiros de então
protagonizámos cenas verdadeiramente patéticas com o bom padre Oliveira e que,
à distância de quase seis décadas, só têm explicação pela juventude que então
respirávamos e pelo sangue irreverente que nos corria nas veias. Em primeiro,
queria deixar os nomes da turma daquele quinto ano: Arnaldo Jordão do Vale,
Domingos Branco, Fernando José Vaz, Manuel dos Santos Rufino, Nelson Amaral
Veiga, Orlindo Gonçalves Igreja e Vitorino Vieira Dias. Destes aspirantes a
noviços, só eu e o Orlindo Igreja não chegámos a vestir o hábito de S.
Domingos. A sala era pequena e tinha a forma rectangular, com a porta de
entrada sensivelmente a meio, com duas mesas compridas e estreitas e bancos do
mesmo tamanho. Encostada à mesa da frente estava a secretária do professor e
nas costas deste ficava o laboratório, que mais não era que um armário
envidraçado, onde pontificavam frascos com diversos produtos químicos, alguns
minerais, um microscópio e um metrónomo. E foi nesta pequena sala que eu tive
aulas de inglês com o Fr. Legault, de física com o Fr. Vicente, de matemática
com o Fr. Domingos, de francês com o Fr. Bernardo, de Religião com o Fr.
Armindo Carvalho e de latim com o Fr. Clemente de Oliveira. Já não recordo quem leccionava ciências!... E
foi também aqui nesta sala que eu tive aulas de português com um homem de baixa
estatura, cara larga e avermelhada e que penteava para trás o seu cabelo,
levemente ondulado. Os dedos da sua mão direita estavam amarelecidos pelo fumo do
tabaco, de que era consumidor confesso. Não largava a sua batina preta e lustrosa
e com ela vestida se enfiava no seu calhambeque preto, muito antigo, que o levava
até aos Milagres, em cada fim de semana. Foi por intermédio deste padre e
mestre que eu, e suponho que muitos de nós, ganhei a paixão pela leitura e pela
escrita. Foi pelos ensinamentos dele que ganhei gosto e respeito pelo
jornalismo, mal adivinhando eu que, décadas mais tarde, haveria de ser titular
de uma carteira profissional de jornalista. Como ele nos falava do seu
“Mensageiro”, o semanário interventivo dos Milagres, que era dirigido pelo seu
amigo Pe. Lacerda!... Foi ele que nos embrenhou na história da literatura
portuguesa e nos deu a conhecer os prosadores e poetas que tanto engradeceram a
língua portuguesa ao longo dos tempos. Foi a ele que ouvi falar pela primeira
vez em escritores contemporâneos cujos nomes, a esse tempo, eram para nós
proibitivos, como Vitorino Nemésio, Aquilino Ribeiro, Francisco Costa, Alves
Redol ou Fernando Namora. Obrigado padre António Francisco, padre Xico ou padre
“Tomate”.
Mas eu queria
falar das aulas do padre Oliveira que, vistas a esta distância, soam a saudade,
a irrequietude a exageros e a remorso. Quando ele entrava na aula, começava de
imediato o distúrbio. Era o metrónomo do laboratório que iniciava o seu
cadenciado tic tac, eram os de trás que empurravam a mesa, eram
os da frente que, em perfeita orquestração e sintonia se altercavam com os de
trás… isto só para que o bom mestre se irritasse. Para iniciar a aula, se é que
a aula se iniciava, ele rezava a primeira parte da Ave Maria, sempre em latim, Ave
Maria gratia plena dominus tecum… e nós concluíamos a segunda parte cada um
em seu tom, em português uns, em francês ou espanhol outros e até em línguas
criadas no momento. Uma bola de pingue pongue escondida de baixo da mão e
deixada cair ao de leve sobre a mesa, produzia um som irritante
–trrrrr…trrrrrr….. O mestre via assim interrompida a sua dissertação sobre a Eneida ou sobre as Catilinárias e questionava a razão daquele ruído. De pronto o Fernando,
olhando pela única janela que dava para o terraço da copa, onde já pousavam os
ramos de uma figueira caduca, dizia ser barulho dos Xarréus, nome que dava mais
para peixe que para pássaro. Cada observação era sempre sublinhada com
inoportuna risada, com a qual o mestre nem sempre condescendia.
O Igreja tinha
ao tempo um corpo franzino e prestava-se a alguma irrequietude, mas era
saudável que nem um pêro. Um dia, para o que lhe havia de dar, em plena aula de
latim!... –Protagonizar um fingido e bem encenado desmaio. O resto da turma
entrou na encenação e vá de ir buscar água para chapar na cara do Igreja, a ver
se tão oportuno desmaio passava. Carregávamos o companheiro em braços, com
grande alarido, até ao dormitório e lá se ia mais uma aula de latim. A cena
haveria de repetir-se mais algumas vezes, tendo tal desmando chegado à reunião
capitular, que valeu ao nosso companheiro um convite para abandonar a “Velha
Casa”. E assim se perdeu um frade.
Um dos gestos
primeiros do padre Oliveira quando chegava à aula, era pôr um relógio de bolso,
já comido pelo tempo e pelo uso, em cima da secretária. Um belo dia, quando os
de trás empurravam os da frente, a força conjunta foi de tal ordem que o
relógio caiu ao chão e partiu-se. O rosto do bom frade iluminou-se de surpresa
e espanto enquanto deixava transparecer alguma mágoa. Era um relógio que fora
pertença de seu pai e que guardava como relíquia, disse-nos. Todos ficámos
emudecidos e agarrámos a culpa que nos pertencia. Nunca mais vi o padre
Clemente de Oliveira mas, há talvez uns vinte anos, li com mágoa na revista
Visão a notícia do seu falecimento, onde lhe eram tecidos merecidos encómios,
enaltecendo o facto de haver traduzido para latim “Os Lusíadas”.
Até sempre, Sr.
Pe. Oliveira!...
Nelson Veiga