1. Têm
razão os teólogos que se empenham em sublinhar que o cristianismo não é,
fundamentalmente, uma religião do Livro, como dizem que são, por exemplo, o
Judaísmo e o Islão. É, na sua essência, a graça do seguimento de Jesus Cristo
como caminho, verdade e vida, fonte de sentido, de beleza e responsabilidade pelos
mais abandonados. Para interpretar esse acontecimento profético, os cristãos recorreram,
desde o princípio, à chamada biblioteca do Antigo Testamento. A partir dela, criaram
outra que narra e interpreta a inesgotável beleza de Jesus Cristo. Chama-se o Novo
Testamento, a grande escrita da inovação da vida.
O chamado Novo Testamento, com dois mil anos em cima,
não estará também ele já muito velho e ultrapassado? Vamos por partes.
Por essa e outras razões, vou manter o título do
texto do Domingo passado – Domingo da Epifania, dos Reis Magos – clausura do
ciclo litúrgico do Natal. O cristianismo é, de raiz, universal. Pode ser
traído.
Seguindo um género literário identificável, S. Mateus
construiu, com velhos materiais, a narrativa da viagem destas enigmáticas
figuras, mostrando que já não era em Jerusalém que se podia encontrar a salvação.
O Messias, sem poder, sem pompa e sem forças armadas, nasceu para todos, na periferia.
Essa significação universal era dada ainda no espaço religioso judaico. Não
referi o grande salto teológico de S. Paulo da Carta aos Efésios, recolhida na
segunda leitura da mesma celebração universalista: ”os gentios recebem a mesma
graça que os judeus, pertencem ao mesmo corpo e participam da mesma promessa,
em Cristo Jesus, por meio do Evangelho”.
Não será essa uma questão já ultrapassada? Talvez sim
e talvez não. Não passo adiante sem voltar mais atrás. As narrativas notáveis
de S. Lucas, em dois volumes, de cristologia e eclesiologia, oferecem referências
históricas e geográficas ao processo de universalização do cristianismo que
importa destacar e talvez nos possam ajudar no presente.
S. Mateus partiu de Abraão para falar da origem de Jesus
Cristo. S. Lucas, ao recuar a genealogia de Jesus até Adão, sublinhava que Ele assumiu
o passado de toda a humanidade. Ampliou essa convicção nos Actos dos Apóstolos.
Jesus, o judeu, não assumiu apenas o passado, mas também o presente e o futuro
da humanização cósmica e divina da História. A coligação de Herodes e Pôncio
Pilatos, com as nações gentias e os povos de Israel contra Jesus, não só não o
derrotou como até provocou uma ideia perigosa, que alguns julgam, erradamente, totalitária:
“não há outro nome dado aos seres humanos pelo qual possam ser salvos”[1].
2. É com
essa arrojada convicção que S.
Lucas, no contexto da terceira geração do movimento cristão, perante um mundo
duplamente hostil, escreve uma engenhosa apologia da Igreja que julgava capaz
de integrar a unidade e a diversidade, Pedro e Paulo, a comunidade cristã de
Jerusalém, as comunidades helenistas e as de origem gentia. Mais ainda, num
mundo social e politicamente adverso, a sua apologia procura mostrar que o
movimento cristão não era uma superstição,
como alguns diziam, mas uma
religião respeitável, capaz de
integrar e superar tudo o que havia de bom no judaísmo e no paganismo.
Para o exegeta Senén Vidal[2],
Lucas arredonda a história. Existem indicações de que o movimento cristão não
começou apenas em Jerusalém, mas em diversos lugares da Palestina e noutras
regiões vizinhas, alcançando rapidamente as grandes cidades da bacia do
Mediterrâneo. Seja como fôr, uma das razões da dispersão dos cristãos da
corrente mais aberta ao mundo gentio foi, sem dúvida, a hostilidade encontrada
entre os judeus da Palestina.
Importa, no entanto, não simplificar um fenómeno
complexo dos começos do cristianismo. Não se devem confundir as atitudes dos
cristãos jerusalemitanos, a que Paulo chama falsos
irmãos, com as dos dirigentes da comunidade e nem a de Pedro era igual à de
Tiago e seus seguidores[3].
Não se pode esquecer que existiam tensões e conflitos, inclusivamente nas
próprias comunidades paulinas. Além disso, os cristãos das tradições utilizadas
pelo IV Evangelho (S. João) não encaixam em nenhuma das correntes já referidas.
3. A
memória desse passado – naquele tempo
– é insubstituível. Mas poderemos viver apenas na interpretação dessa
memória?
Precisamos de elaborar novas narrativas para as
experiências novas da fé cristã! Não bastam os habituais boletins das paróquias
e os chamados Encontros de Formação, nem os discursos teóricos sobre a Teologia
Narrativa. Que processos concretos importa desencadear, nas paróquias e nos
movimentos, desde a infância e em todas as idades, seja em que mundo for, para
criar um clima cultural que ajude a fomentar, em todas as formas de linguagem
simbólica, estilos novos para a expressão da fé?
Não se pode exigir a todos os catequistas, a todos os
pregadores, padres e bispos, que tenham as atitudes, as palavras, os gestos, o
humor e a misericórdia do Papa Francisco. Mas não é obrigatório servir-se da
liturgia para ser aborrecido.
PS: Mário
Soares declarava-se republicano, laico, socialista e agnóstico. Confessava que
não tinha recebido a graça da fé. Não se cansava de dizer que o seu pai foi
sempre um fervoroso católico. Cultivou amizade por alguns cardeais, bispos,
padres e frades. A sua grande admiração pelo Papa Francisco levava-o a lamentar
não ver, em Portugal, mais seguidores.
15. 01. 2017
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