quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Desconfiar do trato


            Quanto mais a idade vai avançando, mais nos afloram à memória recordações dos tempos idos, vivências da nossa vida, pequenos casos e factos que recordamos e que, afinal, fazem a história de cada um de nós. A vaga de frio com que este Inverno nos tem presenteado, trouxe-me a memória um caso tão simples quão pitoresco, que passo a partilhar:
            A profissão que abracei, nos primeiros tempos, fazia de mim um nómada e daí que eu tivesse conhecido terras, pensões e muitos amigos. Numa das localidades em que trabalhei, tive o ensejo de partilhar, por dias a fio, a mesa do almoço com um delegado do procurador da república, nómada como eu, que um dia partilhou comigo uma situação laboral que o impressionara. Foi-lhe presente para interrogatório, um indivíduo que fora detido para prestar contas à justiça, pelo cometimento de um crime que agora não vem ao caso. O homem apresentava-se magro, trémulo e bastante amedrontado talvez por ser presente a uma autoridade judicial. Às primeiras perguntas do magistrado, questões simples que pretendiam retirar o réu da sua situação de medo, este não respondia. Impressionado, ordena ao oficial de diligências que fosse ao café próximo do tribunal e providenciasse um galão quente e alguns bolos, pois lhe parecia que o detido tinha fome. Trazida a refeição, ordenou ao recluso que comesse, pois era para ele aquele repasto. Este porém, manteve-se mudo, imóvel e cabisbaixo. Magistrado e funcionário retiraram-se para que o homem pudesse ficar a sós. Momentos depois regressaram e constataram que o homem tinha comido tudo. Tendo-lhe sido perguntada a razão do medo e da relutância em comer, o pobre homem respondeu: “Estava a desconfiar do trato”.

            Há dias fomos todos alertados, e bem, para uma vaga de frio que atravessou o país e que nos trouxe uma acentuada baixa de temperaturas, cuja mínima se situou abaixo de zero em quase todo o território. Protecção Civil, Autarquias e outras organizações não-governamentais, foram céleres em disponibilizar meios que pudessem minimizar aos muitos sem-abrigo os efeitos da anunciada vaga de frio. Algumas portas se escancararam e até estações do metropolitano ficaram abertas para, por umas noites, servirem de lar a quem não o tem. Pasmei, quando no segundo dia da tal vaga de frio se noticiava que uma das estações de Metro disponibilizada, tinha apenas albergado um ‘hóspede’. E aqui veio-me à memória a conclusão do episódio que atrás relatei: Estavam a desconfiar do trato. E é isso que ouvimos da boca de muitos voluntários que tentam ajudar os sem-abrigo – a desconfiança que neles reina em permanência. E será que tem justificação esse espírito de desconfiança? Parece que sim, se não vejamos. É preciso ocorrer o anúncio de uma intempérie, para que os poderes se lembrem que há nas ruas das cidades, gente sem lar e sem pão. Então tudo acorda para a realidade e para a solidariedade. Abrem-se edifícios fechados, distribuem-se roupas e agasalhos, sevem-se refeições, estende-se a mão e espalham-se sorrisos. Finda a tempestade, o que resta? De novo a rua, o ostracismo e a miséria moral e humana. Os sem-abrigo são filhos da pátria durante o ano inteiro e não somente nos dias de intempérie. A marginalidade não é uma praga mas sim uma realidade que deve preocupar os governantes e não apenas as instituições particulares que prestam apoio social. E é por isso que quando o poder esporadicamente os recorda, eles desconfiam. Desconfiam do trato.

Nelson Veiga

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