Quanto
mais a idade vai avançando, mais nos afloram à memória recordações dos tempos
idos, vivências da nossa vida, pequenos casos e factos que recordamos e que,
afinal, fazem a história de cada um de nós. A vaga de frio com que este Inverno
nos tem presenteado, trouxe-me a memória um caso tão simples quão pitoresco,
que passo a partilhar:
A
profissão que abracei, nos primeiros tempos, fazia de mim um nómada e daí que
eu tivesse conhecido terras, pensões e muitos amigos. Numa das localidades em
que trabalhei, tive o ensejo de partilhar, por dias a fio, a mesa do almoço com
um delegado do procurador da república, nómada como eu, que um dia partilhou
comigo uma situação laboral que o impressionara. Foi-lhe presente para
interrogatório, um indivíduo que fora detido para prestar contas à justiça,
pelo cometimento de um crime que agora não vem ao caso. O homem apresentava-se
magro, trémulo e bastante amedrontado talvez por ser presente a uma autoridade
judicial. Às primeiras perguntas do magistrado, questões simples que pretendiam
retirar o réu da sua situação de medo, este não respondia. Impressionado,
ordena ao oficial de diligências que fosse ao café próximo do tribunal e
providenciasse um galão quente e alguns bolos, pois lhe parecia que o detido
tinha fome. Trazida a refeição, ordenou ao recluso que comesse, pois era para
ele aquele repasto. Este porém, manteve-se mudo, imóvel e cabisbaixo.
Magistrado e funcionário retiraram-se para que o homem pudesse ficar a sós.
Momentos depois regressaram e constataram que o homem tinha comido tudo.
Tendo-lhe sido perguntada a razão do medo e da relutância em comer, o pobre
homem respondeu: “Estava a desconfiar do
trato”.
Há
dias fomos todos alertados, e bem, para uma vaga de frio que atravessou o país
e que nos trouxe uma acentuada baixa de temperaturas, cuja mínima se situou
abaixo de zero em quase todo o território. Protecção Civil, Autarquias e outras
organizações não-governamentais, foram céleres em disponibilizar meios que
pudessem minimizar aos muitos sem-abrigo os efeitos da anunciada vaga de frio.
Algumas portas se escancararam e até estações do metropolitano ficaram abertas
para, por umas noites, servirem de lar a quem não o tem. Pasmei, quando no
segundo dia da tal vaga de frio se noticiava que uma das estações de Metro
disponibilizada, tinha apenas albergado um ‘hóspede’. E aqui veio-me à memória
a conclusão do episódio que atrás relatei: Estavam a desconfiar do trato. E é isso que ouvimos da boca de muitos
voluntários que tentam ajudar os sem-abrigo – a desconfiança que neles reina em
permanência. E será que tem justificação esse espírito de desconfiança? Parece
que sim, se não vejamos. É preciso ocorrer o anúncio de uma intempérie, para
que os poderes se lembrem que há nas ruas das cidades, gente sem lar e sem pão.
Então tudo acorda para a realidade e para a solidariedade. Abrem-se edifícios
fechados, distribuem-se roupas e agasalhos, sevem-se refeições, estende-se a
mão e espalham-se sorrisos. Finda a tempestade, o que resta? De novo a rua, o
ostracismo e a miséria moral e humana. Os sem-abrigo são filhos da pátria
durante o ano inteiro e não somente nos dias de intempérie. A marginalidade não
é uma praga mas sim uma realidade que deve preocupar os governantes e não
apenas as instituições particulares que prestam apoio social. E é por isso que
quando o poder esporadicamente os recorda, eles desconfiam. Desconfiam
do trato.
Nelson Veiga
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