1. Perante o
rumo assustador que a política internacional está a tomar e a múltipla
inconsciência na “União Europeia”, fui interpelado por alguns católicos, quese
identificam com a herança do Vaticano II, para a urgência de reunir pessoas de “boa
vontade”, não apenas para interpretar os sinais deste tempo, mas sobretudo para
encontrar formas activas de responder à pergunta dos Actos dos Apóstolos: que fazer?
É tarefa para quem não acredita no determinismo
histórico. Um amigo mandou-me, entretanto, o hebdomadário, Le Point[1] (5 de Jan.) com a
fotografia do filósofo ateu Michel Onfray na capa e a referência ao seu último
livro – Décadence – anunciando que a
civilização baseada no judeo-cristianismo está absolutamente esgotada. Os seus
valores de outrora estão mortos e nada nem ninguém os pode reanimar.
O Islão, pelo contrário, está
forte, tem um exército planetário, constituído por inumeráveis crentes prontos
a morrer por Alá e o seu Profeta, ancorados em apetecíveis recompensas celestes.
A referida Revista está recheada com uma entrevista a M.
Onfray, extractos do seu livro e algumas mansas réplicas.
O entrevistado deleita-se no exercício do contra ponto.
Nós somos os últimos da civilização moribunda e mergulhados no niilismo, eles no
fervor; nós estamos esgotados, eles cheios de saúde; nós deixamo-nos engolir pelo
instante, eles movidos por uma eternidade gloriosa; temos por nós o passado,
eles têm o futuro; para eles, está tudo a começar, para nós, está tudo a acabar.
Segundo este filósofo, cada coisa tem o seu tempo. O
judeo-cristianismo reinou quase dois mil anos. Uma duração honrosa para uma
civilização. Aquela que a substituirá também será substituída. É uma questão de
tempo. O nosso barco afunda-se, resta-nos desaparecer com elegância.
Este
determinismo coloca os próprios católicos fora de jogo. O Concílio Vaticano II em
nada nos pode ajudar. Querendo ser um remédio, aumentou a doença. Ao fazer de
Deus um colega que trata por tu; do padre, um amigo convidado para férias; do
mundo simbólico, uma velha lua a ignorar; do mistério da transcendência, uma rasteira
insignificância; da missa, uma cenografia decalcada das emissões televisivas;
do ritual resistente, uma cançoneta ligeira; da mensagem de Cristo, um simples
panfleto sindicalista; da batina, um disfarce de teatro; das outras religiões e
espiritualidades, algo equivalente ao cristianismo. Enfim: a Igreja, ao precipitar
o movimento de fuga para a frente, provocava o seu descalabro.
2. Dir-se-á que esta caricatura ignorante não passa de mais uma reprodução lefebvrista. Está longe da
cultura da subtileza e do rigor. A experiência do autor, num colégio católico,
deixou-lhe recordações da violência, real e simbólica, que não são indiferentes
à sua vontade de desconstrução radical.
Seria, todavia, grave que, por
causa das análises inadequadas do autor, não perguntássemos com insistência: o
que aconteceu, ao longo dos séculos, para se esquecer, que numa das primeiras
comunidades cristãs não havia, entre
eles, nenhum indigente (…); distribuía-se a cada um segundo a sua necessidade[2]?
Hoje, o abismo entre ricos e pobres continua escandaloso. Alguns desses ricos e
opressores ainda passam por benfeitores. Que enxertos perversos foram feitos na
árvore cristã para dar frutos tão maus?
No
ano 2000, o Papa João Paulo II multiplicou as confissões de arrependimento
pelos pecados e crimes dos homens da Igreja. Pretendia ser um trabalho de
purificação da memória e os contínuos incitamentos à globalização da
solidariedade e a oposição frontal à guerra no Iraque. Estamos confrontados com
a “vitória” de Donald Trump, a religião dos muros, as ameaças em todas as
direcções e a derrota da civilização! Há muita gente assustada e outra
resignada. Há também quem resista.
3. O Papa Francisco, no longo discurso da audiência natalícia à
Cúria romana, deu publicamente contas do que foi realizado na reforma da Cúria,
no banco do Vaticano, de todas outras reformas em curso, com todos os
pormenores, marcando bem qual é a lógica que o guia: se a lógica do Natal é a
subversão da lógica do mundo, da lógica do poder, da lógica do controle, da
lógica farisaica e da lógica casualística ou determinista, então também a lógica
da reforma da Cúria deve ir nesta direcção[3].
Há quem diga que é muito exigente e extremamente severo com cardeais, bispos e
padres, quando não espelham uma Igreja pobre, dos pobres e para os pobres. De
facto, para ele, o clericalismo é um mal
terrível que tem raízes antigas e, como vítimas, sempre “o povo pobre e
humilde”. Não é por acaso que também hoje, na missa, o Senhor repete, aos
“intelectuais da religião”, que os pecadores e as prostitutas os precederão no
reino dos céus[4].
O Papa não é um Trump de
batina. Numa homilia, estava a proclamar que é preciso viver a santidade
pequenina da negociação, ou seja, aquele realismo sadio que a Igreja nos
ensina: rejeitar a lógica do isto ou nada
e de empreender o caminho do possível para nos reconciliarmos uns com os
outros. Nisto, uma criança desata a chorar: «não vos preocupeis porque a
pregação de uma criança na igreja é mais bonita do que a do sacerdote, do bispo
ou do Papa. Deixai-a chorar, porque é a voz da inocência que nos faz bem a
todos»[5].
22. Janeiro. 2017
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