Frei Bento Domingues, O.P.
1. Nasci e
cresci numa aldeia onde toda a gente ia à Missa. Era obrigatória: faltar era
pecado e matéria de confissão. Era dita em latim e de costas para o povo, com os
homens à frente e as mulheres e as crianças atrás. Durante a homilia, os homens
saíam para fumar um cigarrito. Da Missa, aproveitava-se a reza do terço. O
padre, depois dos avisos, em português, voltava ao latim: ite missa est. Missão cumprida?
A palavra missa
vem do verbo latino mittere,
enviar, mandar, dispensar, mas também missão e míssil. Seja como for, o sentido
das palavras depende do seu uso.
A própria expressão Ite missa est já existia no latim profano antes de passar para a
liturgia cristã. Como diz Ávito de Viena (470-518), essa fórmula era usada para
terminar as audiências do paço e dos tribunais de justiça: “Nas igrejas e nas cortes
do imperador e do prefeito dizia-se missa est quando o povo era despedido da
audiência.”
Nos primórdios do Cristianismo, o culto era dividido
em duas partes: a primeira, composta de orações, leituras, cânticos e a pregação,
era aberta a todos; a segunda, a eucaristia propriamente dita, era reservada
aos baptizados. Por isso, no final da 1ª parte, os catecúmenos também eram
despedidos com o Ite, missa est,
"Ide, a vossa celebração terminou". É o que sugere Santo Agostinho: “Depois
do sermão faz-se a missa, isto é, a despedida ou envio dos catecúmenos”. Pouco a
pouco, a palavra foi-se aplicando ao conjunto da celebração. Já no século IV,
na Peregrinatio Sylviae, é dito que “O sacerdote abençoa os fiéis e faz-se a missa,
isto é, a despedida ou o envio”. Actualmente, em português, depois da bênção final, a despedida é feita
com a fórmula: Ide
em paz e que o Senhor vos acompanhe (Ite, missa est).
Essa informação não me trouxe
nenhuma alegria. Por outro lado, hoje, a Missa já não é em latim nem de costas
para o povo, mas continua aborrecida e sem ter em conta a realidade daqueles
que a procuram.
2. Repetiram-me, todo este Verão, que
a Missa precisa de uma reforma profunda. Algumas queixas eram bem identificadas:
três leituras e um salmo muito longe do nosso tempo, remetendo-nos sempre para
um passado, que já não nos diz nada; as chamadas orações eucarísticas são pouco
variadas e parecem existir apenas para enquadrar a chamada consagração do pão e
do vinho, a matéria da comunhão, e um enigmático pedido de Jesus, fazei isto em memória de Mim.
Será que esses reformadores
querem agora Missas à
la carte?
A situação real é muito mais
grave do que estas amostras de descontentamento podem sugerir.
Repetimos, em todas as Missas, o
pedido de Jesus. Essa repetição cumpre um desejo ou repete uma traição?
3. Será Jesus que precisa que nos
lembremos dele ou seremos nós que, sem olhar para o seu percurso, nos tornamos
incapazes de encontrar o nosso próprio caminho? Será Cristo que precisa da celebração
da Eucaristia ou somos nós? Ele pede-nos uma fidelidade a um ritual ou exige
que continuemos, com Ele, o Evangelho da Alegria para os dias de hoje? A missa
é um encontro com o passado ou uma fonte de desassossego do nosso presente? Um
despertador ou um calmante? Não celebramos a Eucaristia porque ela faça falta a
Jesus, mas porque nos é fundamental.
Os liturgistas garantiram, nas
celebrações da Eucaristia, a presença da memória do Antigo e do Novo Testamento,
mediante uma distribuição abundante das suas leituras. O passado não falta. Mas
a Eucaristia é só uma memória do passado? Um acontecimento do passado? Uma
visita a esse grande museu literário?
Onde estão as narrativas da vida
dos que participam nas celebrações? Essas são as páginas brancas do Evangelho
de que falou o Papa Francisco na sua viagem apostólica à Polónia, no encontro
com os sacerdotes, religiosos e seminaristas. Só vale a pena irmos à Missa para
sairmos modificados.
Uma Igreja pode estar cheia de
gente, sem gente. Como poderá acontecer a transfiguração da vida das pessoas da
comunidade cristã se as pessoas não estão lá com a realidade complexa da sua
vida de semana? É uma assembleia clandestina de si mesma. Só se ouvem as vozes
do passado e o presente é confiscado pelo clero, o único que tem voz e vez.
Não é totalmente verdade. Conheço
um clérigo, chamado Papa Francisco, que não falou aos jovens sem antes os ouvir
e interrogar, de muitos modos. Não para os adular nem para receber o seu
aplauso, mas para recolher as suas inquietações e lhes lançar novos desafios.
Não quer jovens adormecidos, pasmados, entontecidos. Não viemos ao mundo para
vegetar, para fazer da vida um sofá que nos adormeça. Viemos para deixar uma
marca.
Quando se pergunta que fazer da
Missa, não pode ser apenas, nem sobretudo, para lhe encontrar um ritual mais
simpático, mais agradável, uma antologia de leituras mais encantatórias.
A pergunta real é outra. Em que
Igreja precisamos de nos transformar, para celebrar uma Eucaristia que nos
responsabilize e nos faça sair para a transformação da sociedade?
Importa criar uma circulação
permanente entre o que se passa no mundo e na Missa. Uma Missa sem mundo em
transfiguração só pode gerar um mundo sem missa e sem o seu desejo.
11.09.2016
in jornal "Público"
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