segunda-feira, 26 de setembro de 2016

"Democracia e Ética"



«Vivemos numa democracia e num estado de direito». Este é o enunciado que tão assertiva e repetidamente pulula na boca dos políticos e nas parangonas da comunicação social como se se tratasse de um postulado ou axioma. Porém, conhecendo a realidade social, económica, cultural e política, a frase deixa transparecer laivos de perversidade e suscita risos escarninhos a quem conhece o “modus vivendi” da maioria dos portugueses e a sua estruturação social. Além disso, a afirmação, tantas vezes pronunciada em tom laudatório como se tivéssemos o sistema político mais avançado, veicula, na sua essência e de forma sub-reptícia, a imposição do status quo, o constrangimento do livre arbítrio, calando e apoucando as vozes dissonantes sob a aparência do superior interesse coletivo.
Portugal tem uma democracia à la carte, corporizada na proporção aritmética dos diferentes estratos sociais e dos seus reais interesses mais ou menos obscuros e egoístas: saúde, educação, justiça, mobilidade social e honorabilidade não radicam na equidade, no mérito pessoal nem tão pouco na liberdade /opção de escolha. Para se poder escolher é preciso ser livre. E quando agregados familiares auferem duzentos e poucos euros de rendimento mensal não há liberdade, há tirania e, pior que tudo, humilhação. Em complementaridade, uma considerável faixa da população é pouco letrada e analfabeta, à qual impuseram muralhas invisíveis e intransponíveis que lhe cerceia a liberdade e a condena a todas as formas de miséria e de alienação, numa palavra, à sub-humanidade. Já Marcus Tullius Cícero (séc. I a. C.) afirmava que «a ignorância é a maior enfermidade do ser humano». É, portanto, tarefa primordial de qualquer democracia resgatar as populações do obscurantismo, a não ser que haja razões mais obscuras e incompreensivas.
Pensamos também, muito particularmente, nas crianças a quem roubaram e roubam a infância e as gargalhadas inocentes em nome de escândalos financeiros e outras formas de corrupção e de ilícitos que amaldiçoam a vida de mais de dois milhões de concidadãos, além sacrificar os contribuintes. Apesar de todas as malfeitorias da Banca aos depositantes e ao país, esta revela-se um sorvedouro insaciável de recursos financeiros enquanto nas esquinas das cidades os mendigos, de rostos esquálidos e um olhar perdido pela desesperança, estendem as mãos ao mundo que os inventou, rejeitou e catalogou de marginais. Não, não é inépcia dos indigentes. Trata-se, sim, de desumanidade, de reduzir o ser humano a um subproduto de uma teoria económica qualquer. É impossível acreditar numa democracia ostracizante em que, nos últimos anos, as pessoas situadas abaixo do limiar da pobreza perderam 25% do poder de compra e os mais ricos, os do topo da pirâmide, ficaram incólumes; em cada quatro crianças portuguesas, uma vive abaixo do limiar da pobreza; os jovens com menos de 25 anos tiveram uma perda de 29% nos seus rendimentos. (Cf., estudo da Fundação Manuel dos Santos, Portugal Desigual, set. 2016).
Na verdade, nas duas últimas décadas, tem-se vindo a assistir à perda de valores éticos nas estruturas institucionais e empresariais, tendendo estas a anular pela abstração o sentido e o respeito pela pessoa na sua individualidade e dignidade. O ser humano é cada vez mais “coisificado” e, por essa razão, o paradigma de sucesso resume-se ao ter e ao parecer. É indiferente esmagar um povo desde que isso contribua para avolumar contas bancárias num offshore inimaginável, bem secreto. A ostentação, a arrogância e a futilidade emergentes desse sucesso são a mão do materialismo desumanizado e do poder iníquo que esmaga os vulneráveis e oprime pela exclusão aqueles que, pelas suas convicções humanistas ou cristãs, ousam discordar. Jamais se poderá omitir o homem e a sua humanidade, a sua condição de ser e devir ontológico, por isso, cada vez é mais atual a citação de Esopo (séc. VII a. C.): «a exibição exterior é um pobre substituto para o valor interior».
Uma questão deveras preocupante prende-se com a educação da juventude. Desde cedo se começa a incutir nos jovens a obrigação absoluta de vencer, chegar ao topo, alcançar o tão almejado sucesso. Para isso vale tudo: bullying profissional, intrigas, assédio, calúnias e outros comportamentos inaceitáveis. O importante é o investimento na hipocrisia, no cinismo, na bajulação e na subserviência desde que daí resultem benefícios pessoais de natureza diversa. Enfim, anular o outro em nome do sucesso pessoal faz parte do quotidiano. É crucial defender acérrima e cinicamente as ideias e interesses dos lobbies, e aceitar o espartilho dos cânones da abjeção e ter dentro e fora das organizações comportamentos politicamente corretos, isto é, pactuar com a ortodoxia do opróbrio desde que isso represente mais um degrau rumo ao famigerado sucesso. Politicamente correto é sinónimo de hipocrisia e de sociedade desumanizada. O mal maior não é isso acontecer, é assistirmos e deixarmos isso acontecer.
Este unanimismo e outros ismos são devastadores para as organizações humanas e para a vida em sociedade. Mata a dignidade e criatividade individual, destrói a importância das genuínas interações humanas e o valor da verdadeira convivência e amizade, subtraindo cada vez mais o respeito pelo outro. Não tenhamos dúvidas, está instituída na nossa sociedade uma censura, uma atitude persecutória que condiciona a liberdade de expressão e de ação, sobretudo para aqueles que ousam denunciar a subversão dos valores e dos interesses instituídos.
É urgente refletir sobre a realidade humana concreta dos portugueses e ser politicamente incorreto e, num clamor, erguer a voz. Cristo foi politicamente incorreto porque afrontou os interesses do Império Romano, expulsou os vendilhões do templo e causou incómodos nas consciências que perduram no tempo; politicamente incorreto é o Papa Francisco ao denunciar as injustiças e desigualdades sociais e fazer a apologia da simplicidade; politicamente incorreto foi o nosso frei João Domingos que defendeu a dignidade e os direitos do povo angolano com uma determinação inusitada; politicamente incorretos são todas as mulheres e homens que se erguem em nome da humanidade. Só uma perplexidade: é o silêncio ensurdecedor, incómodo e cúmplice daqueles que se mantêm calados e que por dever, visibilidade, influência política, social ou religiosa, deveriam ser os fiéis depositários dos valores da condição humana. «Jamais se é grande se não for justo», Boileau.
É preciso redescobrir as referências dos clássicos greco-latinos e dos grandes humanistas e instaurar de novo a dignidade do ser humano. Leiamos Cícero, Séneca, Erasmo de Roterdão e, sobretudo, De Hominis Dignitate, de Giovanni Pico della Mirandola, cuja leitura deveria ser obrigatória para quem exerça funções públicas. Seguramente as folhas dos programas de Excel teriam menos importância.
Quer queiramos ou não, o mundo ocidental assimilou e aculturou a herança dos valores das civilizações grega e romana assim como do cristianismo. Por isso, negligenciar, não incorporar ou negar a importância destes três pilares na nossa formação, enquanto sociedade e cidadãos, significa não compreender a linearidade da nossa existência. Estes valores são constantemente equacionados, ainda que de forma inconsciente, consubstanciando inquestionavelmente a nossa grande matriz civilizacional mesmo para todos aqueles que se assumem como ateus. Pensar na democracia como um sistema político sem compromissos morais e éticos, que não atribua o primado da sua ação à dignificação do ser humano é ignominioso
Fernando Maria Faustino


(O artigo está escrito nos termos do Novo Acordo Ortográfico)

Sem comentários: