«Vivemos
numa democracia e num estado de direito». Este é o enunciado que tão assertiva
e repetidamente pulula na boca dos políticos e nas parangonas da comunicação
social como se se tratasse de um postulado ou axioma. Porém, conhecendo a
realidade social, económica, cultural e política, a frase deixa transparecer
laivos de perversidade e suscita risos escarninhos a quem conhece o “modus vivendi” da maioria dos
portugueses e a sua estruturação social. Além disso, a afirmação, tantas vezes
pronunciada em tom laudatório como se tivéssemos o sistema político mais
avançado, veicula, na sua essência e de forma sub-reptícia, a imposição do status quo, o constrangimento do livre
arbítrio, calando e apoucando as vozes dissonantes sob a aparência do superior
interesse coletivo.
Portugal
tem uma democracia à la carte,
corporizada na proporção aritmética dos diferentes estratos sociais e dos seus
reais interesses mais ou menos obscuros e egoístas: saúde, educação, justiça,
mobilidade social e honorabilidade não radicam na equidade, no mérito pessoal
nem tão pouco na liberdade /opção de escolha. Para se poder escolher é preciso
ser livre. E quando agregados familiares auferem duzentos e poucos euros de
rendimento mensal não há liberdade, há tirania e, pior que tudo, humilhação. Em
complementaridade, uma considerável faixa da população é pouco letrada e
analfabeta, à qual impuseram muralhas invisíveis e intransponíveis que lhe
cerceia a liberdade e a condena a todas as formas de miséria e de alienação,
numa palavra, à sub-humanidade. Já Marcus Tullius Cícero (séc. I a. C.)
afirmava que «a ignorância é a maior enfermidade do ser humano». É, portanto,
tarefa primordial de qualquer democracia resgatar as populações do
obscurantismo, a não ser que haja razões mais obscuras e incompreensivas.
Pensamos
também, muito particularmente, nas crianças a quem roubaram e roubam a infância
e as gargalhadas inocentes em nome de escândalos financeiros e outras formas de
corrupção e de ilícitos que amaldiçoam a vida de mais de dois milhões de
concidadãos, além sacrificar os contribuintes. Apesar de todas as malfeitorias
da Banca aos depositantes e ao país, esta revela-se um sorvedouro insaciável de
recursos financeiros enquanto nas esquinas das cidades os mendigos, de rostos
esquálidos e um olhar perdido pela desesperança, estendem as mãos ao mundo que
os inventou, rejeitou e catalogou de marginais. Não, não é inépcia dos
indigentes. Trata-se, sim, de desumanidade, de reduzir o ser humano a um
subproduto de uma teoria económica qualquer. É impossível acreditar numa
democracia ostracizante em que, nos últimos anos, as pessoas situadas abaixo do
limiar da pobreza perderam 25% do poder de compra e os mais ricos, os do topo
da pirâmide, ficaram incólumes; em cada quatro crianças portuguesas, uma vive
abaixo do limiar da pobreza; os jovens com menos de 25 anos tiveram uma perda
de 29% nos seus rendimentos. (Cf., estudo da Fundação Manuel dos Santos, Portugal Desigual, set. 2016).
Na
verdade, nas duas últimas décadas, tem-se vindo a assistir à perda de valores
éticos nas estruturas institucionais e empresariais, tendendo estas a anular
pela abstração o sentido e o respeito pela pessoa na sua individualidade e
dignidade. O ser humano é cada vez mais “coisificado” e, por essa razão, o
paradigma de sucesso resume-se ao ter e ao parecer. É indiferente esmagar um
povo desde que isso contribua para avolumar contas bancárias num offshore
inimaginável, bem secreto. A ostentação, a arrogância e a futilidade emergentes
desse sucesso são a mão do materialismo desumanizado e do poder iníquo que
esmaga os vulneráveis e oprime pela exclusão aqueles que, pelas suas convicções
humanistas ou cristãs, ousam discordar. Jamais se poderá omitir o homem e a sua
humanidade, a sua condição de ser e devir ontológico, por isso, cada vez é mais
atual a citação de Esopo (séc. VII a. C.): «a exibição exterior é um pobre
substituto para o valor interior».
Uma
questão deveras preocupante prende-se com a educação da juventude. Desde cedo
se começa a incutir nos jovens a obrigação absoluta de vencer, chegar ao topo,
alcançar o tão almejado sucesso. Para isso vale tudo: bullying profissional,
intrigas, assédio, calúnias e outros comportamentos inaceitáveis. O importante
é o investimento na hipocrisia, no cinismo, na bajulação e na subserviência
desde que daí resultem benefícios pessoais de natureza diversa. Enfim, anular o
outro em nome do sucesso pessoal faz parte do quotidiano. É crucial defender
acérrima e cinicamente as ideias e interesses dos lobbies, e aceitar o
espartilho dos cânones da abjeção e ter dentro e fora das organizações
comportamentos politicamente corretos, isto é, pactuar com a ortodoxia do
opróbrio desde que isso represente mais um degrau rumo ao famigerado sucesso.
Politicamente correto é sinónimo de hipocrisia e de sociedade desumanizada. O
mal maior não é isso acontecer, é assistirmos e deixarmos isso acontecer.
Este
unanimismo e outros ismos são devastadores para as organizações humanas e para
a vida em sociedade. Mata a dignidade e criatividade individual, destrói a
importância das genuínas interações humanas e o valor da verdadeira convivência
e amizade, subtraindo cada vez mais o respeito pelo outro. Não tenhamos
dúvidas, está instituída na nossa sociedade uma censura, uma atitude persecutória
que condiciona a liberdade de expressão e de ação, sobretudo para aqueles que
ousam denunciar a subversão dos valores e dos interesses instituídos.
É
urgente refletir sobre a realidade humana concreta dos portugueses e ser
politicamente incorreto e, num clamor, erguer a voz. Cristo foi politicamente
incorreto porque afrontou os interesses do Império Romano, expulsou os
vendilhões do templo e causou incómodos nas consciências que perduram no tempo;
politicamente incorreto é o Papa Francisco ao denunciar as injustiças e
desigualdades sociais e fazer a apologia da simplicidade; politicamente
incorreto foi o nosso frei João Domingos que defendeu a dignidade e os direitos
do povo angolano com uma determinação inusitada; politicamente incorretos são
todas as mulheres e homens que se erguem em nome da humanidade. Só uma
perplexidade: é o silêncio ensurdecedor, incómodo e cúmplice daqueles que se
mantêm calados e que por dever, visibilidade, influência política, social ou
religiosa, deveriam ser os fiéis depositários dos valores da condição humana.
«Jamais se é grande se não for justo», Boileau.
É
preciso redescobrir as referências dos clássicos greco-latinos e dos grandes
humanistas e instaurar de novo a dignidade do ser humano. Leiamos Cícero,
Séneca, Erasmo de Roterdão e, sobretudo, De
Hominis Dignitate, de Giovanni Pico della Mirandola, cuja leitura deveria
ser obrigatória para quem exerça funções públicas. Seguramente as folhas dos
programas de Excel teriam menos
importância.
Quer
queiramos ou não, o mundo ocidental assimilou e aculturou a herança dos valores
das civilizações grega e romana assim como do cristianismo. Por isso,
negligenciar, não incorporar ou negar a importância destes três pilares na
nossa formação, enquanto sociedade e cidadãos, significa não compreender a
linearidade da nossa existência. Estes valores são constantemente equacionados,
ainda que de forma inconsciente, consubstanciando inquestionavelmente a nossa
grande matriz civilizacional mesmo para todos aqueles que se assumem como
ateus. Pensar na democracia como um sistema político sem compromissos morais e
éticos, que não atribua o primado da sua ação à dignificação do ser humano é ignominioso.
Fernando
Maria Faustino
(O artigo
está escrito nos termos do Novo Acordo Ortográfico)
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