sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Com a devida vénia, ao jornal "O Almonda" de Torres Novas

 POR ESTA ESTRADA

                                   CARTA ABERTA AO MEU CÃO MANGUITO.

                                                           Querido Manguito

            Há breves dias, tu e eu, passámos por um profundo estado de aflição quando correu a notícia de que o nosso governo iria limitar o número de cães por apartamento. Só dois da tua espécie poderiam habitar cada casa. Que doloroso transe me trespassou o coração! Teria que te dar destino pois, como tu sabes, contigo habitam no andar a Pacóvia com o seu cachorro que, supostamente, é teu filho também. Não iria pôr na rua a mãe com o pequeno filhote. Seria desumanidade que me transtornava o âmago de forma insuportável. Eras tu que irias ser deixado a monte, ou ficarias a basculhar o lixo nas ruas da cidade, ou, na melhor das hipóteses, serias mais um habitante do canil municipal se para ti lá houvesse lugar. Ah, Manguito, Manguito, como a vida nos prega cada susto…
 Mas, felizmente, foi só susto. Ou porque os boateiros lançaram tão maldosa atoarda, ou porque o governo recuou na intenção da lei. A lei que iria obrigar-nos à separação. É claro que nesta crua dor havia um certo lenitivo. Sabemos que as leis do governo são sempre para nosso bem. Mesmo quando nos pisam é sempre  para nossa felicidade. A boa governação está sempre na mira dos seus sapientes olhos. Cada medida, lei ou decreto, é para que o futuro de todos nós seja um amanhã que canta. Tu, cão que és, nunca poderás lobrigar a alegria que sinto ao sofrer tantos cortes na minha pensão de reforma. É como se me estivessem a inocular uma pequena dor para que o futuro se abra em gargalhadas de felicidade. Os nossos governantes é que sabem o que nos convém.
            Atenta, Manguito, nesta de acabar com os feriados. Houve logo, nos do costume, críticas e ditos desaforados contra a medida. Mas agora já todos reconhecem que a produtividade aumentou e vai ainda aumentar mais, muito mais. Olha, vem aí o 1º de Dezembro, que sempre foi feriado para celebrar a batalha de Aljubarrota contra os mouros. Porque é que havemos de celebrar a bordoada que andámos a dar uns nos outros? E o feriado só servia para passar o dia de papo para o ar em qualquer praia com o clima ameno que está. Até  deviam obrigar ao trabalho aos domingos de manhã, a tarde chegava para descansar e a produtividade, a competitividade salvariam o produto interno bruto, a balança de transacções e outras coisas de que eu não percebo nada.
            Manguito, o que nos falta é alcance. Alcance de vistas, de entendimento, para compreender a profundidade e a largura das medidas legislativas do governo. Somos também uns pessimistas e ingratos. Pessimistas, porque estamos sempre a dizer mal, só por dizer, ingratos porque nem sabemos agradecer a vida sacrificada daqueles que só pensam no nosso bem.
            Pronto, Manguito, não te maço mais. Ainda bem que a lei não foi avante. Apenas um susto,  agora é como se tivéssemos saído da recessão e de um peso imenso nos libertássemos.  Com estrénuo júbilo podemos dizer: este país ainda é para cães.   
            Com afectuosa humanidade e a promessa de guardar sempre para ti o osso mais saboroso.


                                                                                                 Eduardo Bento

3 comentários:

Unknown disse...

Só tu Eduardo nos podes dar este mimo de prosa para nosso gozo e meditação. Era bem preciso um grande Manguito, com um ladrar tonitruante e umas valentes ferradelas, para que as leis fossem feitas por Humanos.
Um abraço... e continua!

Neves de Carvalho

Jaime disse...

O sermão do Eduardo Bento ao cão zurze no governo com pezinhos de lã mas, de passagem, tal como o governo fez ao condenar o 1º de dezembro à extinção, desafronta os espanhóis chmando mouros aos castelhanos. Ou afronta indirectamente se com mouro quer dizer cão infiel.
Jaime

Anónimo disse...

Como sempre, com fina ironia e profundidade! Diverti-me muito a ler este texto...
Só com uma leve discordância, meu caro amigo...
A limitação, segundo fontes geralmente bem informadas, não terá ido por diante uma vez que podia depauperar o executivo, onde abundam os animais e quadrupedes equiparados! Por outro lado, havendo quem diga - injustamente - que eles fazem muita coisa com os pés, ficaria o governo sem uma cabeça, por cada quatro patas a menos...
Um abraço para o Eduardo Bento.
P.S.- 3 (três) "manguitos" para o governo da nação!
Antero