sexta-feira, 4 de abril de 2008

UM DIA NA VIDA DE UM MÉDICO -por José Carlos Amado dos Santos


O dia está calmo e sereno... lá fora o tempo é primaveril o Sol já aquece... a luminosidade torna-se intensa e este ritmo sazonal que em nós brilha mais uma vez se confirma... A primavera para mim é a mais bela das estações, o calor, o sol a vegetação e as plantas e árvores que lançam os seus rebentos verdejantes e as suas promessas em flôr... Estou a trabalhar no serviço de atendimento permanente de Marinha Grande e os doentes chegam à consulta um após outro naquela cadência irreflectida que a doença e a morte nunca esperadas e queridas propiciam... doença e morte também no tempo da Primavera! Estou a trabalhar neste centro de saúde faz 5 anos e nem sei muito bem como vim aqui parar... nada me liga a esta terra... Só a proximidade a estas praias do Oeste me atrai aqui: S.Martinho do Porto, Nazaré, S.Pedro de Moel... as minhas praias da infância e juventude... Um dia enquanto petiz do seminário dominicano viemos todos em autocarros até à praia das Paredes e aí passámos o dia em alegre brincadeira e confraternização... eram nossos vigilantes, se a memória não atraiçoa, o padre Rogério e o padre Alberto... também aqui muito próximo aos 13 anos, em S.Pedro de Moel e na praia velha junto ao riacho de Moel, pelos idos do mês de Julho desse ano, acampámos 4 :eu, José carlos, o Gabriel da Barragem do Castelo de Bode, o Zé Mendes da Caranguejeira, mais conhecido por Zé Francês e o Frei Gonçalo. Foram 5 dias intensos naquele campismo ingénuo e selvagem a habitar uma tenda para 4 pessoas e com as horas livres para os passeios e brincadeiras, ora na floresta ora na praia... E no intervalo da brincadeira, cada qual tinha as suas tarefas destinadas e nem o terço da noite era esquecido. Os anos são passados e faz tanto tempo, agora aqui mesmo ao lado, pratico medicina: depois de tantos anos no Norte, em Peso da Régua, com uma população maioritáriamente camponesa. Agora, em Marinha Grande, tenho uma população maioritáriamente operária... E assim aqui estou eu hoje, a trabalhar para mais um dia de consultas e cuidados... Aqui hà dias uma doente que procura afirmar-se como vidente vem à consulta e afirma: -"O Sr. Doutor é médico, mas junta a formação habitual das escolas de medicina, a uma formação de origem religiosa"... perante tal afirmação não pude deixar de concordar e de longe me apercebo que muito do que eu sou, penso e faço, vem dessas origens humildes, laboriosas e trabalhadas de pensamento, acção e comportamento, introspeção e retiro espiritual, estudo das matérias liceais e convivio mais ou menos são com os colegas e os superiores... ao começar a pensar a acção logo me iniciei na ética e muitos dos pensamentos bem como temas de reflexão espiritual só os venho a compreender muitos anos mais tarde com a prática médica que no seu comportamento deve muito ao Hipócrates, mas talvez ainda mais ao cristianismo...
A próxima consulta: ... ... Então o que se passa? -pergunto eu. -Olhe senhor doutor tenho andado muito molenga e eu ontem estava deitada no chão e o meu marido encontra-me uma carraça no pescoço e retira-me e o que me fez vir cá foi uma prima minha que ja tinha estado muito mal por causa de uma carraça... Eu concordo e entendo que tem todo o sentido ,a senhora está a fazer uma febre da carraça e precisa de vibramicina ...e neste 3 de Abril as consultas correm lentas ou apressadas ao sabôr da necessidade enquanto nos intervalos vou escrevendo estas linhas
Um grande abraço
José Carlos

15 comentários:

Anónimo disse...

Info:
Para os que não sabem o Frei Gonçalo faleceu há um mês no H. de Tomar.
E. Bento

Anónimo disse...

Li e reli com muito prazer este belo texto. Trata-se de um tentemunho, escrito com muito realismo e simplicidade. Faz-me prazer ver também que uma nova geração se levanta para testemunhar, neste blog, e dar-lhe assim vida e perenidade! Vê-se bem que és de outra geração, caro José Carlos, quando não, entre as praias que citas não poderias ter esquecido o Pedrogão, onde os da minha geração passàmos férias extraordinàrias. Eramos uns trinta estudantes e penso que até hesistem, neste blog, fotos que testemunham desses tempos maravilhosos. Até nudismo fizemos naquela praia que vai do Pedrogão até à Vieira... disso não hà fotos... Dormiamos numa espécie de estrobaria ou corriça. Comiamos o que cozinhavamos... Mas como dizia Lacordaire: não hà maior felicidade do que ser o seu proprio servidor! Nunca mais senti uma liberdade tão absoluta (interior e exterior) como a desses tempos... Depois começaram as responsabilidades na vida do comum dos mortais... Um abraço para todos, Fernando.

Nelson disse...

Dos elementos que disponho, dou conta que o José Carlos esteve em Aldeia Nova entre 1969 e 1974, no "seminário dominicano", naquele mesmo que eu (55/60) e tantos de nós nos orgulhamos de ter frequentado. Este testemunho do quotidiano, é bem revelador de como na nossa vida, qual roda da nora no dizer de Aquilino, não conseguimos divorciar-nos dos primeiros passos, dos momentos iniciais, das primeiras aventuras e das primeiras amizades. E com eles caminharemos de mãos dadas, pela vida fora.
O meu apreço e um abraço
Nelson

Anónimo disse...

Lenta, muito gota a gota, vão surgindo no blog aquelas vozes que os mais assíduos aguardavam desde o início. Estas ricas experiências de vida, que enriquecem o grupo. Neste caso é a experiência dum médico, mas podia ser a dum padeiro ou dum pastor. O importante, a meu ver, é a autenticidade. Mesmo como agentes passivos, sentimo-nos reconfortados ao ouvir dizer, que os princípios bebidos na infância ( que afinal não foi uma “Manhã submersa”), os quais compartilhamos, contam na formação de um médico. Aos slogans de que “a medicina é ateia” ou “nunca vi a alma na ponta do bisturi” este depoimento do José Carlos, diz-nos que o médico tem sempre perante si “corpos e almas”.
Gostei imenso. Venham mais.
A. Alexandrino

Jaime disse...

Ao descobrirmos a "alma" do Zé Carlos esboçamos , inevitavelmente, o retrato físico. (Afinal onde colocar a alma se não for num corpo? Não associo o nome à pessoa e, portanto posso esboçar à vontade a sua figura. Terei um dia de rever a construção mental da fisionomia mas, creio, que o essencial se vê no que escreve: "Retalhos da vida de um médico".

Aproveito para coisa menos séria: Um anónimo questionou-me precisamente no primeiro texto do Zé Carlos. Estive a ver se reunia dados que confirmassem a minhas informações dadas, aliás, sob reserva.
Assim: O Mendes estava, sim, nessa altura em Aldeia Nova. Veio de Fátima onde preparava o exame do 7º ano a efectuar no Liceu de Leiria antes de tomar hábito. Ele confirma a ideia de que o convite, tanto o meu como o dele, partiu do fr. Rogério. Neste mesmo texto o Zé Carlos, com a mesma precaução que tive: "se a memória não me atraiçoa", mantém o fr. Rogério em Aldeia Nova já depois disso. Pormenores...

Eduardo Bento!
Fui emocionalmente apanhado pela notícia da morte do Fr. Gonçalo. O primeiro pensamento que tive não foi se estaria no Céu. Dou por garantido. Mas e o "filho"? Sabes alguma coisa?
Abraços para todos.
Jaime

Anónimo disse...

Eduardo Bento e Jaime!
O fr. Gonçalo era o Irmão alto e de oculos de aros pretos que apoiava o secretariado do Rosário ?
Jaime, desculpa as minhas "brancas", que é isso do "filho" ?
Abraços para todos
J. Moreno

Anónimo disse...

Jaime e Moreno:
Para mim a questão do "filho" é um enigma. Não sei a que se refere o Jaime.
Um abraço.
Eduardo Bento

Jaime disse...

Moreno
Penso que o fr. Gonçalo a que o E. Bento se refere é esse mesmo que descreves. Assim o conheceste em Fátima. Mais tarde, em Aldeia Nova, quando esta casa funcionava como instituição de acolhimento de crianças sem casa ou família (tipo P. Américo ou P. Gil) apareceu um bebé a que o fr. Gonçalo tratou como se mãe dele fôra. Ao começar a falar, tratava-o por pai. Não sei que laços afectivo/legais os uniam na altura da cessação de funções de acolhimento de crianças da casa de Aldeia Nova, mas sei que o fr. Gonçalo obteve dispensa da obrigação de viver em comunidade para acompanhar o "filho" no seu crescimento.
História edificante se o termo não te choca pelas conotações de que está carregado pelo nosso vivido religioso.
Um abraço
Jaime

Anónimo disse...

Eu também não sabia desses pormenores da vida do fr.Gonçalo, mas consultando o "anuário" de 2007
frades O.P. da província portuguesa, o fr. Gonçalo vivia no Cercal. A obra das crianças (não sei se, no início, era mesmo do fr. Gil...) tinha um jornal que vinham vender pelo menos até ao Cartaxo, acompanhadas pelo fr. Gonçalo. A ele e ao fr. Alberto (meu conterrâneo) encontrei-os algumas vezes em A.Nova, nalgumas visitas guiadas com as minhas cachopas. Quanto a algumas datas, tenho a certeza que o fr. Rogério estava, em finais de 1968, em Nampula e o Mendes (?) teria ido nesse mesmo ano para Fátima, com outros colegas, como o Vasco, o Francisco Torres e outro dos lados de Vagos. Eu também saí nesse mesmo ano de A.Nova, rumo a Fátima, depois de uma visita do Geral à província no verão, acompanhando eese grupo de alunos que iam iniciar o sexto ano no CEF. Em 1970 ainda os visitei no convento do noviciado, junto a Barcelona, numa ida para Lyon, onde ia fazer uma espécie de "retiro" de 3 meses no Convento de La Tourette, para me consciencializar da inevitabilidade de cumprir o "destino" que a sorte me tinha ditado de acompanhar outras ovelhas (ou carneiros)num périplo turístico em África. Em Maio do ano seguinte, depois de um mês na Academia Militar, tive a sorte, no meio de certo azar de ir até Angola. Mas os pormenores ficam para outra vez. Só queria aproveitar para dizer ao Quim Moreno que nesse, visitei mais demoradamente que eu desejava Nambo,Beira Baixa (não ao pé do Celestino), Onzo, Zala, Quixico e Quipedro. Tem piada que, nos finais de Julho/71 chegava à noite à praça central de Nambo, onde se alinhavam os autocarros de A/C que me tinham trazido( com outros turistas) desde Luanda pela A-13, esperando que nos guiassem até um dos magestáticos e luxuosos hotéis,encontrei, para surpresa minha o Ferro que acabava uma estadia na região dos Dembos e zarpava para outra região, servindo-se dos mesmos veículos que nos tinham trazido. Não me lembro do José Carlos, embora tenha ido mais de uma vez a
Alqueidão da Serra. A equipa foi lá jogar contra a equipa local e penso que ganhámos. Voltei lá com o Albino, de cuja família fui muito amigo. Desculpem, meus amigos, algum erro, mas uma certa aversão a estes meios de comunicação é não ter pachorra de reler e corrigir o que botamos no computador.
Até breve. Um abraço a cada um. Toninho.

Anónimo disse...

Eu estava a pensar fazer uma colaboração semanal neste blog..mas tirando os comentários falta mais colaboração de outros amigos..e outros testemunhos..a minha geração deixa o seminário com o 25 de Abril de 1974 e tirando o Zé Mendes práticamente não mais contacto com ninguém..à pouco tempo vim a encontrar o Paulo Fetal que tem um restaurante nas Cortes..imagino que a minha geração seja muito "fracturante" e sendo como é, estando dispersa vai ser dificil..ainda não analisei os novos contactos que foram apresentados pelo Nelson...esta iniciativa de criar laços devia ter sido realizada desde sempre..um abraço José Carlos

Anónimo disse...

O Frei Gonçalo foi um homem e religioso que sempre esteve muito próximo do meu coração..para além desse episódio na praia velha muitos mais houve..a propósito de um conselho que lhe foi pedido acerca da prática do Yoga ele abonou a favor ,sendo evidentemente que tal prática ainda que venha do Hinduismo se considerada nos seus aspectos únicamente tecnicistas e envolvida pelo pensamento cristão ,ele concordava..também circulou um livro sobre educação sexual pelas mãos dos seminaristas e foi algum padre que facultou essa leitura , terá sido o Frei Gonçalo a facultar essa leitura(?),parece-me que sim ,mas posso estar enganado.. sabia que ele estava perante um dilema ético:ou deixava a criança e voltava para a Ordem ou Não deixava e nesse caso não poderia regressar à Ordem.. dilema dificil de resolver porque ele amava a Ordem e o filho adoptivo ao mesmo tempo.. José Carlos

Anónimo disse...

A praia do Pedrogão (para vergonha minha ) só a conheci à pouco tempo..Quanto ao meu testemunho como pessoa na minha qualidade de antiga seminarista tenho todo o gosto de a dispensar ,ainda que a complexidade do assunto torne a tarefa um pouco dificil e tenho por entendimento , que não obstante aspectos comuns ,hà muitas histórias diferentes..Também não sou nenhum seguidista ,ou rato de sacristia ou alguem que tenha passado a vida debaixo das saias dos padres..Eu digo ,porque sou obrigado a dizê-lo (e não para fazer favor nenhum): O que me valeu foi ter ido para o seminário e ter recebido essa influência..Já pensei o contrário e talvez influenciado pelo senso comum ou a escrita daqueles que escreveram a Manhã Submersa ,mas neste momento essa é a minha posição e acho que não estou muito errado..Porque infelizmente hà muitas "Manhãs Submersas" em tantas circunstâncias da vida e porquê rotular os seminaristas como tendo vivido uma manhã submersa(?)..José Carlos

Anónimo disse...

Caro Jaime o Frei Rogério não estava em Aldeia Nova ,ele passava às vezes em Aldeia Nova e nesse passeio ele esteve presente como também numa ida que fiz a Leiria (ou a Coimbra?) para visitar alguem que estava doente ,tirando isso ele não estava em Aldeia Nova José Carlos

Anónimo disse...

Se morreu melhor era um grande filho da puta

Milu disse...
Este comentário foi removido pelo autor.