sexta-feira, 29 de junho de 2007

MUDAR DE NOME (E TALVEZ DE VIDA)...


O meu psiquiatra já me detectou muitos traumas. E para ele não me julgar um pelintra, também lhe fiquei com meia dúzia de complexos. Ainda não me resolveu nenhum, o que é legítimo, mas agora está debruçado sobre um que me perturba sobremaneira: o nome.
É um trauma contumaz. Agarrado como uma pele á minha personalidade.
O nome ou antes apelido (Vintém), que o meu padrinho me atribuiu, tem-me causado grandes dissabores e discriminações ao longo da vida.
Eu sei que a intenção do meu padrinho é louvável. Ele procurou um nome que desse uma imagem de humildade, o último dos últimos, “vintém”, o mais pequeno.
Porém, basta reparar nos remoques e insultos de que tenho sido vítima, desde o primeiro dia que surgi aqui no blog, para perceber que o meu padrinho não conseguiu passar a mensagem.
Primeira investida. 24 de Março. “Olha Pancrácio, não vales mesmo um vintém.”
Segunda investida. 3 de Maio. “Que raio de pseudónimo tu arranjaste.” A coroar esta, seguiu-se uma girândola de impropérios que me escuso de referir, por pudor. Aqui até chamam pseudónimo ao meu apelido. Como quem diz: é impossível que alguém tenha um nome destes. Logo, só pode ser pseudónimo.
Não raro o meu nome se torna alvo de jocosas ou imbecis provocações, as mais das vezes algo antipáticas e subtis agressões às quais (por força das instintivas defesas) rapidamente me tornei indiferente
Pois bem, antes que eu reaja mal, porque um homem não é de pau, e vá dar com os costados na barra dos tribunais, é forçoso resolver esta situação. Suponham que venho a ser constituído arguido. Passo desde logo a ser uma personalidade pública e posso mesmo vir a ser eleito Presidente de Câmara aqui de Alguidares de Baixo. Ora isso vai contra a personalidade modesta que o meu padrinho idealizou.

Que tal Pintalhão? É um nome forte, inconfundível, é nome de comandante. E de santo. E de mártir. Tem mesmo muita pinta.
Começo por convocar os nossos melhores especialistas em Portugal, que por sinal são nossos ex-colegas.
Desde logo, interrogo os ilustres psicanalistas, se:
a) os danos psíquicos causados por tantos anos de humilhações traumáticas podem de algum modo ser reparados no todo ou em parte?
b) a minha personalidade não será afectada pela adopção de um novo nome, nomeadamente pelo surgimento de uma dupla personalidade?
De seguida, há que obter um parecer dos nossos ilustres juristas, sobre o modus operandi e os procedimentos jurídicos e notariais, para proceder com segurança e exactidão à mudança de nome.
Por último, escutar a opinião de todos os amigos, se acham bem ou mal uma eventual mudança de Vintém para Pintalhão.

Fico ansiosamente a aguardar pelo contributo de todos.
Saudações bloguistas do vosso
Ezequiel Vintém ( ex-frei Pancrácio)

terça-feira, 26 de junho de 2007

Por esta estrada - O MEU VIZINHO É UM PATRIOTA


Moro num triste terceiro andar voltado para uma barreira escalvada. Tenho, por vizinho da frente, o meu amigo Antunes, funcionário público, adepto do Benfica, bom pai de família e portanto bom português. Ele é um patriota.
O patriotismo do meu vizinho da frente manifesta-se mais agudamente em certa ocasiões. Comove-se até às lágrimas quando vê partir um contingente militar para a Bósnia ou para o Afeganistão. Olhem como ele segue pela televisão os desfiles, os discursos, as condecorações do 10 de Junho ou as marchas de Lisboa. O meu vizinho ignora um verso de Camões mas adora Camões. Este é símbolo da Pátria, morreu faminto e cego de um olho. Ah! Mas o patriotismo do Antunes chega ao rubro, atinge o paroxismo, quando se trata da selecção nacional de futebol. Morra-lhe a mãe, chegue a notícia do acidente do filho, se ele está a ver um jogo da selecção, não se moverá do sofá e sofre, bufa e berra seguindo hipnoticamente o rebolar da bola. Ele é um patriota. A bandeira nacional que colocou na varanda, quando a selecção participou no último campeonato, continua a tremeluzir ao vento, embora feita em tiras, cansada de tantas batalhas, como que a dizer: «Para a próxima é que é». O meu vizinho, o Antunes, é um patriota. Ele nunca desiste.
O governo fecha escolas, hospitais, serviços diversos, aumenta os preços? O Antunes aceita placidamente, compreende e, no íntimo, aplaude porque, se o governo decide será sempre pela causa nacional. Ele é um patriota.
Quando há um caso na justiça, o Antunes está sempre atento O apito dourado, o processo da Casa Pia, a Carolina Salgado, prendem-no horas a fio à televisão. Pouco se importa com a morosidade, os dois pesos e duas medidas da nossa justiça. Isso é com os tribunais. É por isso que tanto lhe faz beber do tinto ou do branco e até, às vezes, vai um palheto. Além de patriota ele é um cidadão atento.
A veia patriótica do meu vizinho leva-o a opinar sobre tudo mesmo sobre aquilo de que nada percebe. Ainda há dias conversando com ele sobre o sistema educativo ele expelia umas ideias que eu me apressei a registar: « O ensino? O ensino está cada vez pior, nós precisamos é de reformas que reformem verdadeiramente. As escolas tornaram-se um lugar de opressão para os alunos. Que estamos a fazer dos homens de amanhã? Os professores deviam respeitar mais a iniciativa e a liberdade dos nossos jovens. O que lhes falta é trabalhar mais e levar mais umas caneladas. Bem faz a senhora ministra da educação trazer os professores à rédea curta». E mais não disse , o Antunes, ficou mudo, depois calou-se e em seguida, em silêncio. Mas mesmo assim, por debaixo do seu mutismo eu adivinhava a sua alma de patriota.
E quanto à economia? Ah! O meu vizinho também opina. Ele diz-nos que o governo vai fazendo o que pode; temos que fazer sacrifícios; o défice ( ele pensa que o défice é uma espécie de aeroporto da Ota) é importantíssimo para o país…O Antunes tem um patriotismo de longo alcance. E vota. Ah! Sim, o Antunes vota.
A bandeira nacional colocada à janela continua a flamejar, está desbotada mas resiste. E resiste para que todos saibam que o meu vizinho é um patriota.
Eduardo Bento

segunda-feira, 25 de junho de 2007

Aquecimento global pode provocar extinção de 30% das espécies

diz painel da Folha Online - 06.04.07
“Uma conferência internacional de aquecimento global aprovou nesta sexta-feira uma relatório que alerta contra ameaças diretas ao planeta Terra e à sobrevivência da humanidade a não ser que o mundo se adapte às mudanças climáticas e aja para interrompê-las. As ameaças vão do aumento vertiginoso da fome no mundo à extinção de até 30% das espécies do planeta.De acordo com relatório do Painel Intergovernamental de Mudança Climática (IPCC, na siga em inglês --considerado a maior liderança mundial em mudança climática), até 30% das espécies do planeta enfrentam um risco crescente de desaparecerem se a temperatura global aumentar 2ºC acima da média dos anos 1980 e 1990.Para este século, a previsão do relatório é que as temperaturas aumentarão entre 1,8ºC e 4ºC.Áreas que atualmente sofrem com a falta de chuvas se tornarão ainda mais secas, aumentando o risco de fome e doenças no mundo, diz o relatório. O mundo enfrentará também ameaças crescentes de enchentes, tempestades e erosão."É uma pequena visão de um futuro apocalíptico", afirmou o grupo ambientalista Greenpeace sobre o relatório final.O relatório afirma que a África será o continente mais atingido pela mudança climática. Até 2020, prevê o texto, até 250 milhões de pessoas poderão ser expostas à falta de água. Em alguns países, a produção alimentícia cairá pela metade.A América do Norte deverá experienciar tempestades mais severas, com perdas humanas e econômicas, ondas de calor e incêndios selvagens.Partes da Ásia estão sob ameaça de grandes enchentes e avalanches devido ao derretimento das geleiras do Himalaia. A Europa também verá o desaparecimento das geleiras dos Alpes, diz o texto.A Grande Barreira de Corais da Austrália perderá muitos de seus corais mesmo em aumentos moderados da temperatura do mar.A série de relatórios do IPCC de 2007 é a primeira em seis anos do corpo de 2.500 cientistas formado em 1988. A conscientização do público sobre mudanças climáticas deu ao IPCC importância vital e alimentou a intensidade das negociações --a portas fechadas-- durante a conferência de cinco dias desse ano.”


G8 assobia para o lado

Montagem de A. Alexandrino

quinta-feira, 21 de junho de 2007

O MESTRE GERAL, ANICETO FERNANDEZ, NÃO RESISTIU AO BORDÉUS!


Como já vos disse, nestas páginas, sem a intervenção do Padre Tomás Videira, teria saido de Fátima no fim do noviciado. Sem a sua segunda intervenção teria despido o hábito em 1966. Digo-vos sinceramente que cada vez que decidia ficar, era mesmo para ir até ao fim, convencido que podia realizar-me como dominicano. Projetava-me completamente num apostolado como o que faziam nessa altura, o binómio de choque frei Bento e frei Mateus, enriquecido mais tarde com o frei João Domingos. Essas conferências seguidas de debates, eram adaptadas ao lugar e ao momento. Era num trabalho desse estilo, mais que em qualquer outro, que eu me reconhecia como dominicano. Eram estes dominicanos e alguns outros, como o Pe Tomás, Miguel, Pervis etc. que me davam ganas de ser dominicano. Quando fui para Roma ainda era com a convicção que seria dominicano até ao meu último suspiro. Ao fim do 1° ano, depois de ter trabalhado como nunca, 10 a 15 horas por dia, senti-me completamente abandonado, cansado e depressivo. A minha única aspiração do momento era passar as férias em Portugal, encontrar-me com muitos de entre vós, saindo do isolamento em que me encontrava. Quando o Mestre dos estudantes (um espanhol) me informou que tinha ordens do meu Provincial, frei Raúl Rolo, para não me deixar sair da Itália, passei um quarto de hora horrível. Aceitei passar as férias numa ilhazinha (Procida) ao lado de Capri, onde os dominicanos tinham uma casa de férias. Um verdadeiro paraíso, com praia privada e tudo. Apesar disso sentia-me lá tanto à vontade como Napoleão na ilha de Elba! Ao fim de uma semana perguntei ao padre Mestre se também estava proibido de sair da ilha (a que se dava volta em menos de uma hora) ou só da Itália. O país era-me imposto, mas não estava com residência vigiada!... Depois de uma semana na ilha, convenci um colega italiano, a voltar ao continente e durante dois meses, visitámos toda a Itália em auto stop. Foi formidável...
Outubro 1968, estava em plena forma e recomecei o ano escolar (2° em Roma) com o mesmo ritmo do precedente e sempre completamente isolado dos dominicanos portugueses, como se já não fizesse parte da família. Durante todo este tempo só mantive contactos com o Horácio. Não digo que alguém foi culpado...foi assim. Durante os primeiros dois anos que passei em Roma, o ritmo era deitar à meia noite e levantar às 6 da manhã. Fiz os dois anos de teologia que me faltavam, fiz uma tese sobre “O homem criador, à imagem de Deus Criador”, e deram-me o titulo de ‘lector in sacra theologia’. Muito antes do fim do ano escolar, estando convencido que era ‘persona non grata’ em Portugal, fui ter com o Mestre Geral para lhe pedir todas as dispensas. Respondeu positivamente ao meu pedido, não sem antes me propôr ser ordenado e ficar em Roma ou escolher outra província. Respondi-lhe que como dominicano só conseguia projectar-me em Portugal. Compreendeu. Aproveitei para pedir-lhe autorização para me inscrever durante mais um ano no Angélicum e, por conta própria, me licenciar em Filosofia, ao que ele acedeu. Passei o Verão de 1969 em França com a intenção de trabalhar durante três meses, e financiar o ano escolar que passaria em Roma, fazendo já parte dos EX.
A vida não se parece com uma estrada, com percurso linear e destinação única e definitiva. Muito pelo contrário, aparecem cruzamentos quando menos o esperamos e somos obrigados a escolher nova direcção. Mudar de cap é sempre doloroso e comporta riscos. Nesse verão tinha dado um passo importante noutra direcção mas encontrava-me no meio de um cruzamento sem saber que direcção tomar... Ao fim de um mês de trabalho, ao descarregar um caminhão de vigas de ferro, caiu-me uma em cima. O acidente podia ter-me sido fatal, mas safei-me com um pé partido. Com o pé no gesso, passava os dias no convento dos dominicanos a preparar a peregrinação do Rosário a Lourdes. Uma das organizadoras, uma tal Geneviève não me deixou indiferente e vice-versa. Aí entrámos numa estrada em que houve curvas, subidas e descidas, usámos travão e acelarador, mas nunca mais entrámos em nenhum cruzamento... Voltei, como tinha decidido, mais um ano para Roma. Já tinha entrado nesta nova estrada quando recebí uma carta do Padre Miguel, que tinha sido eleito Provincial há alguns meses. Convidava-me a regressar a Portugal, visto que tinha terminado os estudos de teologia. Propunha-me mesmo ir para o Porto para aí animar a vida litúrgica. Se esta carta tivesse chegado alguns meses antes, hoje seria dominicano, ter-me-ia realizado intelectualmente e mesmo humanamente, continuando, no entanto, a sofrer da úlcera do estômago, que me tinha atacado desde o noviciado. Manifestava-se duas vezes por ano, no começo da primavera e do Outono. Passava com um tratamento e desapareceu completamente quando entrei nesta estrada sem encruzilhadas. Sempre tive a certeza que o homem não nasce determinado para um percurso, definido desde toda a eternidade. São as circunstâncias da vida iluminadas e dirigidas pela inteligência, com a vontade como cúmplice (simplifico) que fazem de nós o que cada dia somos. Hoje diferentes de ontem e preparando-nos para sermos ainda mais diferentes àmanhã. Felizmente que há a memória (e os espelhos) para fazer a ligação entre todos as nossas acções, e mutações, quando não, como somos seres diferentes, cada manhã, não nos reconheceriamos e andariamos todos perdidos.
Mas que tem isto a ver com o Aniceto e o Bordéus? Já vem...É a tal história da cesta das cerejas: puxas por uma e vêm todas, mas não sabes em que ordem... No inicio de 1971 o Mestre Geral Aniceto Fernandes, veio a Clermont Ferrand fazer uma visita canónica (talvez não seja o nome justo) de dois dias. Fui avisado desta visita pelo Padre Pervis, então prior do convento, e que com o seu sotaque brasileiro, nos tinha pregado um retiro em Fátima em 1964 ou 1965. Fui pois visitar o M. G. , convidando-o para vir jantar a minha casa. Qual não foi a minha surpresa quando ele aceitou e me disse: “Bueno, vuelba buscarme por las siete de la tarde”. Quando cheguei a casa e disse à minha mulher: adivinha quem vem comer esta noite? Ela não adivinhou!... Era segunda feira, a meio da tarde, e apesar dos comércios estarem fechados, às 19h o jantar estava pronto, foi apreciado por um Aniceto Fernandez, acessível, agradável e mesmo jovial. Ao despedir-se o Padre Aniceto disse à Geneviève: “vous êtes responsable du bonheur de Fernando” voltando-se para mim e acenando para a Geneviève: “eres responsable de su felicidad, no olbides...” A minha sogra ( santa mulher, que educou os 4 filhos sozinha, depois de enviuvar aos 45 anos) nunca soube que se o eminente Mestre Geral dos Dominicanos se apoiava no meu ombro ao sair de casa, à uma da manhã, não era devido ao cansaço ou mudança de ares, mas devido ao “bordéus”. Os dominicanos melhor que ninguém sabem que a “veritas” também está no vinho, se for bom!
Fernando.

terça-feira, 19 de junho de 2007

O EXAME


Neste mês em que assistimos, de perto ou à distância, à tremideira que toma conta do sistema nervoso de muitos jovens, de novo sujeitos a exames nacionais, vêm-nos à memória, a saga dos nossos exames da 4ª Classe e da admissão ao Liceu ou à Escola Comercial e Industrial, como era denominado o actual ensino secundário, nos anos 50 e 60 do século passado. Talvez fiquem aliviados quando souberem como era nos primórdios da civilização…

Já ia quente o ano da graça de 1954. O ensino obrigatório estava a terminar para mim. De imediato viria a “aprendizagem” dum ofício “em terra”, ambição máxima, ou a esperada e tradicional iniciação na vida de pescador. Afortunadamente a minha professora chamava-se Vitória (por coincidência, a minha primeira neta tem o mesmo nome). A sua determinação, o seu entusiasmo, a sua dedicação à profissão, que abraçara sem dúvida por vocação, faziam dela uma lutadora sempre com olhos postos no sucesso próprio e dos que a rodeavam. E era linda, muito linda. Acho que foi a minha primeira paixão platónica. Ostentava o apelido Saias, uma das mais distintas famílias da cidade de Olhão, e nos seus verdes anos vinte, mostrava uma maturidade e devoção à causa do ensino, que muito raramente voltei a encontrar. Não contente com suportar quarenta e sete alunos das 2ª e 4ª Classes em simultâneo na mesma sala, desdobrava-se a convencer as famílias dos mesmos a permitirem que fossem à escola e até que fizessem a admissão ao Ensino Secundário, o que para aqueles pais era uma autêntica loucura. Prontificou-se mesmo a preparar os interessados em horas pós-escolares, sem cobrar nada por esse trabalho extra. E assim me vi envolvido nessa aventura.
Representava então, ter de me deslocar a Faro, capital do Distrito, onde nunca tinha estado, e que dispunha do único Liceu da província algarvia. Desde logo a selecção teria de ser exigentíssima, porque as vagas eram escassas para toda a população estudantil do Algarve.
Eu já tinha alguma experiência das torturas de exames fora de portas. Na 3ª Classe desloquei-me à aldeia para ser sujeito ao exame final. Dias antes tinha passado pelo exame da 4ª Classe, numa escola da vila de Olhão, dista de seis quilómetros, também em ambiente estranho. A experiência tinha sido traumatizante. A oral, dias após a escrita, caso esta fosse positiva, desenrolava-se perante um júri de três professores numa sala repleta de familiares dos examinandos, que não se inibiam de expressar as suas emoções, perante as respostas dos alunos. -“Onde começa a digestão?” –“Uhm… Nos pés.” (Gargalhadas sonoras), -“Que espécies de aves conhece?” - “Uhm… Melros, cucos e milharucos”.”(Gargalhadas sonoras, com aplausos). O Armando desmaiou sussurrou-se entre os presentes. Faltava pouco para ser chamado “a depor”. Teria de ser ressuscitado à bofetada, aos gritos ou outros métodos artesanais. A falta à chamada era impensável e o júri era indiferente ao drama dum reles aluno, desconhecido, de um lugar remoto, filho de pescadores. Mais ou menos consciente, ele lá estava perante o júri e a assistência, alguns minutos após. Saiu-se bem, dizem.
Para o grande exame, na Capital de Distrito, a mãe, na ausência do pai envolvido nas lides da pesca em Marrocos, preparara o filho com todos os cuidados para a grande prova. Encadernara-o com roupas a estrear, decoradas com um laço (papillon) rosa velho ao pescoço e apoiadas nuns sapatos a brilhar, guardados desde a crisma. E penteado. Levaria ainda uma caneta de tinta permanente e um relógio Camy, que o pai trouxera de Tanger. Durante quinze dias foi encharcado de chá de flor de laranjeira, que “faz muito bem aos nervos”, diziam as vizinhas, também envolvidas na preparação.
No dia D a noite foi mal dormida. Os nervos aumentam a cada minuto que passa, apesar dos manuais estarem já vistos, revistos e sublinhados. O salto no desconhecido ía ser dado.
Graças à intervenção dos santos que não tiveram descanso nesses dias, o Armando ficou aprovado no exame. Tinha carta branca para ingressar no Liceu. Durante as férias, a professora Vitória, visitou-o. Queria saber o futuro do rapaz, que “não podia ficar pelas pescas “ dizia. – “Não temos posses para o pôr a estudar” – respondiam os pais. “Isso é só para os ricos.” A professora não obteve resultados e foi desgostosa.
Dois meses volvidos, porém, cantou vitória, quando soube que o menino tinha ido para o Seminário, “o Liceu dos pobres”, como alguém lhe chamou.

A. Alexandrino

sábado, 16 de junho de 2007

FOI HÁ 47 ANOS ATRÁS!...

O dia de hoje, 16 de Junho, acordou cinzento, aqui nesta Beira interiorizada, desertificada e esquecida. Cinzento, chuvoso, ventoso e com temperaturas que ofendem estes dias que até são de transição para o verão. Então, como não dá para mais, pega-se num livro, folheiam-se jornais, abre-se o computador e, atentando bem no calendário… é mesmo, 16 de Junho!... Fiquei sempre preso desta data, que para vós nada dirá e que para mim diz tanto. Faz hoje 47 anos que, a tantos de vós eu vi pela última vez. Foi o meu último dia em Aldeia Nova!... Meu, do Fernando Vaz, do Arnaldo, do Vitorino, do Rufino e do Domingos Branco. Quando vos disse adeus, nesse dia, eu ainda alimentava uma ténue esperança que, daí a um pouco mais de um mês, nos reencontraríamos para envergar o hábito de S. Domingos. Mas, como já em tempos vos deixei dito, o Fr. Vicente que era o prof. de física, entendia que um bom fradinho de S. Domingos, só o poderia ser, se soubesse física!... Entendeu que eu não sabia e ofereceu-me um 9, indicando-me o caminho de Fátima mas com uma passagem por A. Nova para mais um exame. E nesse já distante 16 de Junho, eu deixei a “velha casa” com propósitos de um até já. Depois, no outro lado do meu mundo, na altura tão pequeno, eu tentei adormecer e amadurecer, como se as duas situações fossem compatíveis. Hoje, estou convencido que não adormeci e que amadureci. Não foi uma decisão só minha, nem a tomei de ânimo leve. Mas ficou decidido não rumar a Fátima, para não me sujeitar a novo exame, que eu considerava vexame. De Aldeia Nova, ainda alguém me acenou –É só um pro-forma!
Isso ainda feriu mais o meu orgulho, pois se era pro-forma, tinha-se resolvido a questão na altura própria.
Todos tivemos a nossas razões e esta foi a minha, que convosco evoco de novo, por ser dia 16 de Junho. Foi há 47 anos atrás!...


Abraça-vos o Nelson

terça-feira, 12 de junho de 2007

O Passeio de Santo António

Saíra Santo António do convento
A dar o seu passeio costumado
E a decorar, num tom rezado e lento,
Um cândido sermão sobre o pecado.
Andando, andando sempre, repetia
O divino sermão piedoso e brando,
E nem notou que a tarde esmorecia,
Que vinha a noite plácida baixando…
E andando, andando, viu-se num outeiro,
Com árvores e casas espalhadas,
Que ficava distante do mosteiro
Uma légua das fartas, das puxadas.

Surpreendido por se ver tão longe,
E fraco por haver andado tanto,
Sentou-se a descansar o bom do monge,
Com a resignação de quem é santo…
O luar, um luar claríssimo nasceu.
Num raio dessa linda claridade,
O Menino Jesus baixou do céu,
Pôs-se a brincar com o capuz do frade.
Perto, uma bica de água murmurante
Juntava o seu murmúrio ao dos pinhais.
Os rouxinóis ouviam-se distante.
O luar, mais alto, iluminava mais.
De braço dado, para a fonte, vinha
Um par de noivos todo satisfeito.
Ela trazia ao ombro a cantarinha,
Ele trazia… o coração no peito.
Sem suspeitarem de que alguém os visse,
Trocaram beijos ao luar tranquilo.
O Menino, porém, ouviu e disse:
- Ó Frei António, o que foi aquilo?…
O Santo, erguendo a manga de burel
Para tapar o noivo e a namorada,
Mentiu numa voz doce como o mel:
- Não sei o que fosse. Eu cá não ouvi nada…
Uma risada límpida, sonora,
Vibrou em notas de oiro no caminho.
- Ouviste, Frei António? Ouviste agora?
- Ouvi, Senhor, ouvi. É um passarinho.
- Tu não estás com a cabeça boa…
Um passarinho a cantar assim!…
E o pobre Santo António de Lisboa
Calou-se embaraçado, mas por fim,
Corado como as vestes dos cardeais,
Achou esta saída redentora:
- Se o Menino Jesus pergunta mais,
…Queixo-me à sua mãe, Nossa Senhora!
Voltando-lhe a carinha contra a luz
E contra aquele amor sem casamento,
Pegou-lhe ao colo e acrescentou: - Jesus,
São horas…
E abalaram pró convento.


Augusto Gil

segunda-feira, 11 de junho de 2007

E AGORA ZÉ?


“Caminhava Jesus Cristo com os seus apóstolos pelas estradas da Galileia quando se lhes deparou um cão morto.
Os apóstolos disseram: - Que mal que cheira o cão. E Jesus Cristo retorquiu: - Já viram os dentes brancos que tem?”

O Blog “criar laços” vai no quarto mês de existência. Ainda tem uma estrutura frágil, a visão ainda não totalmente definida, e ainda não deglute alimento sólido. Crucial mesmo é avaliar da sua capacidade de sobreviver.
Dizia-me há tempos um ex-colega, que o blog teria longa vida se tivesse nível. Não emitiu a sentença a contrário, por pudor. No entanto ela permaneceu no ar, como um cutelo suspenso sobre a cabeça do inocente. O pobre não é responsável pelo próprio nível. Somos nós todos os ex-dominicanos, os responsáveis pelo grau mais ou menos elevado do seu conteúdo. Não apenas o Nelson, na função de editor, ou o Fernando Vaz e o Eduardo Bento na qualidade de co-autores ou os que expõem os seus textos ou comentários com regularidade.
Afinal como se avalia o tal “nível”? Pelo maior ou menor número de artigos científicos ou de investigação? Pela publicação de textos filosóficos, teológicos ou de elevado conteúdo criativo? Pela riqueza da linguagem utilizada pelos bloguistas? Pela ausência de discordâncias ou conflitos ideológicos, literários entre os ex-colegas? E quem assegura esse nível? E quem se responsabiliza pela escolha do que é ou não conveniente publicar?
Já temos uma amostragem de mais de cinco mil visitantes do blog. Com esta base, já era possível delinear uma hierarquia das preferências dos visitantes acerca dos textos publicados. Mas acho que as estatísticas, que não excluo linearmente, são vistas como manipuláveis. Para muita gente, as análises estatísticas torturam os números até dizerem o que o autor pretende.
Uma verdade inquestionável é que o sucesso ou insucesso do blog é, insisto, da responsabilidade de todos os ex-dominicanos, por acção ou omissão. Os que se têm exposto, dentro das suas capacidades, são os menos responsáveis.
Questiono-me também sobre o que levará aqueles que dispõem dos meios para intervir, a ficarem quedos e expectantes. Será porque o nível dos textos publicados é tão relevante que têm receio do confronto? Ou ao invés o nível é tão baixo que não se querem misturar com a mediocridade? Não tenho resposta e também cairia no ridículo se indicasse uma receita, porque estou a falar para pessoas inteligentes.
Afinal qual é o objectivo da criação do blog? Um concurso literário? Uma competição de ideias originais? Uma roda de elogios recíprocos? Louvando-me nas sábias palavras do Celestino, o blog tem simplesmente como finalidade: “estabelecer fácil interligação entre a malta, criando/reforçando laços de amizade que nasceram na nossa juventude/vivência colectiva em Aldeia Nova/Fátima”.

Mas afinal, dirão, o que é que esta arenga tem a ver com a história do cão do início do texto?
Têm razão ia-me esquecendo. Então passemos a explicar.
Os marretas que insistem em manter vivo o blog, não pretendem ser concorrentes dos “Gatos fedorentos”, criando os “Cães fedorentos”. Desenganem-se.
Alto! Esperem aí.
A partir desta, as seguintes são linhas extraordinárias que o blog não me paga.
Ergo, a explicação terá de ficar para a próxima.
Um forte abraço a todos, com ganas de “criar laços”

A. Alexandrino

sexta-feira, 8 de junho de 2007

Retrato-robot de Ezequiel Vintém, em tempos idos Frei Pancrácio, e de sua fidelíssima esposa Pancrácia Vintoa


(Foram duas as arremetidas falhadas levadas a cabo por um tal Vintém para me parodiar e à minha esposa com um suposto retrato robot)

É dia de Corpo de Deus festa que a santa igreja celebra com toda a solenidade. E é feriado para todos os portugueses católicos e não católicos.
Pelas nove horas Ezequiel e Pancrácia saem de casa de braço dado. Andam pelos sessenta anos, ele mama na teta do funcionalismo público e ela foi há anos reformada compulsivamente por assédio sexual a um seu subordinado na secção de finanças. Aí vão eles, na manhã lisboeta, simulando o casal mais aconchegado do mundo. Nesta manhã de feriado religioso irão à missa? Move-os o sentido religioso de participação na eucaristia? Qual quê! O casal Vintém dirige-se para a sede do partido de que são militantes ajuramentados, para uma sardinhada que a secção do partido promove nesta manhã de feriado. O marido dirige-se ao primeiro andar onde uma dezena de militantes irá fazer a Análise da Situação Política e, entretanto, a Vintoa colabora na preparação do grelhador debaixo de uma tília raquítica nas traseiras da sede.
Qual análise política!... O Vintém dormita e sonha com a suculenta sardinha enquanto dois ou três correligionários vão dizendo banalidades e as bacoradas próprias dos nossos políticos da capital. Ao fim de duas horas de inútil e asinina conversata política os salvadores da pátria deles, descem para o pátio onde a comezaina começa.
Atentai no Vintém e na Pancrácia, não comem há uma semana. Vede-os com os beiços lambuzados de gordura e de vinho tinto. A Vintoa deixa cair uma pele de sardinha entre as mamas. Não há dúvida, esta mulher até mete cobiça. Mas cobiça mete a qualquer camelo no deserto a bebedeira que o Ezequiel amamenta com vinho e mais vinho. Grande coisa é ser membro de um partido e do partido do governo. A sardinhada é de borla, o povo paga.
Pelo fim da tarde, os Vinténs regressam ao seu triste terceiro andar.
Lambuzados e bêbedos rebolam-se para cima da cama onde há muito não conhecem o que é pacto carnal. Vintém e Vintoa vão adormecendo emitindo arrotos e muitas flatulências. Ressonam, ressonam como o chefe do seu partido na Assembleia da República
Na manhã seguinte quando Ezequiel Vintém sai para a inutilidade da sua repartição, engravatado e recomposto, ninguém suspeita que ali vai um guloso, um oportunista, um alarve.

José Oliveira ( em resposta às muitas agressões recebidas)

quinta-feira, 7 de junho de 2007

Mais uma para o álbum de recordações...


AQUI, PARECIA CANTAREM VITÓRIA!...

domingo, 3 de junho de 2007

OS SETE -diz o Zé Celestino


AQUI ANDAVAM TODOS Á PAISANA!...
TAMBÉM NÃO DAVA JEITO JOGAR DE SOTAINA!

Ainda, do baú do Celestino...


Mas atenção!... Aqui, neste tempo, já havia equipamentos!...

Arquivo do Zé Celestino


Bons rapazes e aplicados...

sábado, 2 de junho de 2007

POR ESTA ESTRADA


PARA ONDE VAMOS?

Todos os males atingiram o seu limite, não podem piorar mais.”
Babeuf

As palavras que servem de epígrafe a este texto inscrevem-se numa concepção pessimista do estado a que chegou o mundo. Será pessimismo ou, antes, um olhar consciente lançado com realismo sobre o tempo em que desembocou a História? Muitas vozes, e vindas das mais diversas áreas do pensamento filosófico ou científico, fazem-se ouvir chamando a atenção para o desequilíbrio a que se chegou, seja em questões económicas, climatéricas, educacionais… Parece que essas vozes não encontram eco porque os problemas crescem, a situação agrava-se. Sente-se a necessidade de uma refundação ética da humanidade mas tudo parece propiciar a injustiça, a exclusão, a violência, enfim, a desumanidade da humanidade.
Perguntamo-nos, com inquietação, para onde vamos, que esperança podemos acalentar para emergir desta presente derrota da esperança. Sobretudo, que possibilidades estamos a dar aos mais novos? Como podem eles constituir família, tornar-se independentes dos seus pais? Olhando à nossa volta vemos como os caminhos se fecham aos jovens, como as suas possibilidades são a prazo e tudo parece aniquilar os sonhos e os projectos de quem quer dar um rumo e um sentido à sua vida.
Em Portugal a taxa de desemprego atinge o nível gritante de 8,4 por cento e 18,1 por cento dos jovens entre os 15 e os 24 anos estão desempregados. Como podemos falar de democracia e de liberdade se as pessoas são coarctadas na construção de projectos de vida e estão impossibilitadas de escolha porque lhes falta aquilo que é um direito reconhecido: o trabalho? Onde estão a concretização das fáceis promessas eleitorais? Não foi o actual Primeiro Ministro que prometeu em campanha eleitoral a criação de 150.000 empregos? Todos os dias cresce o desemprego, fecham empresas,
há salários em atraso.
Vão-se levantando algumas vozes denunciando estes problemas, crescem atitudes solidárias de grupos que vão respondendo à situação o melhor que podem. Mas podem pouco perante o deserto que tudo atrofia e seca à sua volta, perante a ganância global dos senhores do mundo e a indiferença ou a colaboração dos que estão à frente do poder dos Estados. Estabeleceu-se uma descrença generalizada no papel dos políticos perante a sua incapacidade de dar resposta eficaz aos problemas dos povos que governam.
Há hoje uma perigosa desordem global que assola o mundo. Perigosa porque, assente na injustiça, não ouve o grito dos mais pobres. Abate-se sobre o mundo a arrogância de um poder obscuro movido pela indiferença para com a injustiça. Situações semelhantes à que vivemos hoje, geraram na história convulsões de consequências profundamente nefastas para a humanidade.
É tempo de pensar o lugar aonde chegámos se queremos que o presente não comprometa a esperança no futuro. Hoje a História interpela, também, cada um de nós, pois todos temos obrigação de “saber” e a nossa consciência de homens não nos deixa cair na indiferença mas atira-nos para um desafio que rompe com todo o pessimismo: «Que posso eu fazer para transformar o mundo?»

Eduardo Bento

RETRATO-ROBOT DO EX-FREI IMELDO, AGORA DR. JOSÉ OLIVEIRA

– 2º Episódio
TARDE DE DOMINGO NO JARDIM BOTÂNICO

Às 16:00 horas, mais coisa menos coisa, o casal Oliveira toma o eléctrico 32, que passa mesmo à porta de sua casa. Apeiam-se vários passageiros para os ajudar a subir. - Oh avozinha, ajude um bocadinho! Upa! Já dentro do eléctrico, quando procurava um lugar para se sentar, a D. Patena desequilibra-se e cai no colo de um soldado, e grita: - Ai que horror! Um soldado!
– Por um euro queria um alferes, minha senhora.
– Respeitinho rapaz, - atalha o Dr. Oliveira – a senhora já viveu com um alferes, que por acaso agora até é tenente. Levante-se e bata continência. Este país tem de se habituar a respeitar os heróis, que como eu defenderam a pátria nas províncias ultramarinas, para evitar que a União Soviética lá pusesse a pata. Olhe que eu estive dez horas debaixo de fogo.
Aqui para nós, este Dr. Oliveira é um publicitário. Nunca saiu dos gabinetes do Quartel General, graças às cunhas do Sr. Cardeal Cerejeira. Ele refere-se a certo dia, em que esteve longas horas numa patuscada de churrasco, e onde a braseira se situava precisamente no terraço por cima das cabeças dos convivas.
Despejados na paragem próxima do Jardim Botânico, entram pelo portão da R. da Alegria.
- Boa tarde Sr. Doutor, o seu amigo Dr. Bagão Félix já aí está.
- Obrigado António, eu sei onde o encontrar.
- Vamos por aqui doçura, quero fazer uma carícia ao taxodium distichum.
- Está bem fofinho. Qual é? Ah! Já me lembro, o cipreste dos plátanos.
Uma das razões porque o Dr. Oliveira, prefere este passeio a todos os outros é que aqui tem oportunidade de praticar o seu latim. Torna-se um pouco penoso para a D. Patena, que de latim só conhece a palavra amen. Além disso tem dificuldade em compreender porque é que o esposo há-de chamar chamaeropsis humilis à palmeira anã, que sempre foi uma planta modesta, ou taxus baccata ao pobre do teixo. Porém segundo os princípios que professa com o seu esposo, os verdadeiros princípios católicos, a mulher tem de ser fiel e obediente ao marido. Deve segui-lo cegamente e estar sempre atenta a qualquer desejo do seu amo, assim como uma escrava.
Acariciado o taxodium que ficou muito sensibilizado, encaminhou-se para a chorisia crispiflora a quem tem muita dificuldade em abraçar, ficando-se pelas palavras doces. Em bom português a D. Patena, trata-a por paineira barriguda, com a qual não quer meças.
Roçaram pela araucária bidwilli e inevitavelmente pela ficus religiosa, até avistarem o Dr. Bagão Félix no local de encontro favorito, junto à araucária heterophylla na rotunda central. O Dr. Oliveira tem ainda em comum com o amigo, o amor pelo clube da “galinha” (já não há águias), a actividade conjunta de catequistas na paróquia de S. Domingos e a afinidade ideológica.
- Olá meu caro Bagão!
- Como vais tu Oliveira? E a minha cara amiga Patena? diz o Dr. Bagão, dobrando-se para lhe beijar a mão.
- Muito bem Dr. a não ser este calor abrasador que nos dá uma enorme vontade de comer um gelado. É a minha primeira ideia de hoje. Enquanto ficam a falar latim, eu vou comprar gelados. Também quer Dr.?
- Agradeço, mas eu estou a cumprir jejum, para que os socialistas não alterem o meu Código de Trabalho inspirado na doutrina social da Igreja..
- Ai que horror! Gritou a D. Patena.
- O que foi mulher – acudiu pressuroso o Dr. Oliveira.
- Uma lagartixa, que nojo! Não venho mais a este jardim. Quando este bicho crescer, é capaz de comer criancinhas.
- Descansa mulher. Quem nasce para lagartixa, nunca chega a jacaré.
Houve tempo em que andavam por aqui o Rex Dinossaurus ou o Tinanossaurus. O próprio Dinossauro Excelentíssimo passeou por estas alamedas. Afastados aqueles, mandaram aqui alguns exemplares de elevada estatura. O seu espaço está agora a ser disputado por pequenos rastejantes.
- Há bichos pequenos que são bem assustadores, como as osgas, que no Algarve surgem de todos os lados – atalha o Dr. Félix. - De qualquer modo, eu gosto daquela província, onde se comem óptimos frutos de ficus carisa, de terminalia catappa, e se bebe a bela aguardente de arbustus unedo.
- Lá para o norte, os frutos mais apreciados medram sobretudo no Inverno como os da castania sativa ou da pumus, das quais há agora grandes plantações nos vales dos montes Hermínios . Lembrar-me que aquelas terras estiveram pejadas de quercus, cuja madeira deu corpo às naus com as quais descobrimos o mundo e agora só lá vemos pinus e eucalyptus. O ulmus minor assim como o fraximus excelsior também têm desaparecido daquelas paragens.
É sempre assim. Aos domingos o Dr. Oliveira embrenha-se na natureza, esquece a cidade e diverte-se bué. O domingo é o dia do Senhor, um dia de diversão. Mas não a diversão dos que desperdiçam o tempo em Centros Comerciais ou Hipermercados. Os bons cristãos divertem-se no seio da natureza, porque assim estão mais perto de Deus.
Aqui, no coração da cidade, pensa o Dr. Oliveira, usufrui-se da natureza domesticada, ordenada, etiquetada. Nada aqui se compara à confusão e mesmo anarquismo da natureza dos meios rurais, onde a flora surge desordenadamente sem pedir licença, sem se saber quem são, donde vieram, e quais os seus efeitos. Aproveitando-se desse caos a fauna mais infesta e tenebrosa instala-se, afastando os humanos. Os seres mais venenosos e obscuros, muitos dos quais nem chegam a ser vistos pelo homem, proliferam ali desordenadamente. O próprio Deus, na ideia do Dr. Oliveira, teve necessidade um dia arrasar essa fauna e essa flora através do dilúvio, para pôr ordem na anarquia e recomeçar com seres catalogados, etiquetados e domesticados. Em Portugal, para obtenção dos mesmos objectivos, opta-se preferencialmente pelo fogo.
A ordem, o respeito, a autoridade, a sociedade unicolor, constituem as bases para uma vida em segurança e paz, na concepção do Dr. José Oliveira.
Ezequiel Vintém (ex- frei Pancrácio
)