Como já vos disse, nestas páginas, sem a intervenção do Padre Tomás Videira, teria saido de Fátima no fim do noviciado. Sem a sua segunda intervenção teria despido o hábito em 1966. Digo-vos sinceramente que cada vez que decidia ficar, era mesmo para ir até ao fim, convencido que podia realizar-me como dominicano. Projetava-me completamente num apostolado como o que faziam nessa altura, o binómio de choque frei Bento e frei Mateus, enriquecido mais tarde com o frei João Domingos. Essas conferências seguidas de debates, eram adaptadas ao lugar e ao momento. Era num trabalho desse estilo, mais que em qualquer outro, que eu me reconhecia como dominicano. Eram estes dominicanos e alguns outros, como o Pe Tomás, Miguel, Pervis etc. que me davam ganas de ser dominicano. Quando fui para Roma ainda era com a convicção que seria dominicano até ao meu último suspiro. Ao fim do 1° ano, depois de ter trabalhado como nunca, 10 a 15 horas por dia, senti-me completamente abandonado, cansado e depressivo. A minha única aspiração do momento era passar as férias em Portugal, encontrar-me com muitos de entre vós, saindo do isolamento em que me encontrava. Quando o Mestre dos estudantes (um espanhol) me informou que tinha ordens do meu Provincial, frei Raúl Rolo, para não me deixar sair da Itália, passei um quarto de hora horrível. Aceitei passar as férias numa ilhazinha (Procida) ao lado de Capri, onde os dominicanos tinham uma casa de férias. Um verdadeiro paraíso, com praia privada e tudo. Apesar disso sentia-me lá tanto à vontade como Napoleão na ilha de Elba! Ao fim de uma semana perguntei ao padre Mestre se também estava proibido de sair da ilha (a que se dava volta em menos de uma hora) ou só da Itália. O país era-me imposto, mas não estava com residência vigiada!... Depois de uma semana na ilha, convenci um colega italiano, a voltar ao continente e durante dois meses, visitámos toda a Itália em auto stop. Foi formidável...
Outubro 1968, estava em plena forma e recomecei o ano escolar (2° em Roma) com o mesmo ritmo do precedente e sempre completamente isolado dos dominicanos portugueses, como se já não fizesse parte da família. Durante todo este tempo só mantive contactos com o Horácio. Não digo que alguém foi culpado...foi assim. Durante os primeiros dois anos que passei em Roma, o ritmo era deitar à meia noite e levantar às 6 da manhã. Fiz os dois anos de teologia que me faltavam, fiz uma tese sobre “O homem criador, à imagem de Deus Criador”, e deram-me o titulo de ‘lector in sacra theologia’. Muito antes do fim do ano escolar, estando convencido que era ‘persona non grata’ em Portugal, fui ter com o Mestre Geral para lhe pedir todas as dispensas. Respondeu positivamente ao meu pedido, não sem antes me propôr ser ordenado e ficar em Roma ou escolher outra província. Respondi-lhe que como dominicano só conseguia projectar-me em Portugal. Compreendeu. Aproveitei para pedir-lhe autorização para me inscrever durante mais um ano no Angélicum e, por conta própria, me licenciar em Filosofia, ao que ele acedeu. Passei o Verão de 1969 em França com a intenção de trabalhar durante três meses, e financiar o ano escolar que passaria em Roma, fazendo já parte dos EX.
A vida não se parece com uma estrada, com percurso linear e destinação única e definitiva. Muito pelo contrário, aparecem cruzamentos quando menos o esperamos e somos obrigados a escolher nova direcção. Mudar de cap é sempre doloroso e comporta riscos. Nesse verão tinha dado um passo importante noutra direcção mas encontrava-me no meio de um cruzamento sem saber que direcção tomar... Ao fim de um mês de trabalho, ao descarregar um caminhão de vigas de ferro, caiu-me uma em cima. O acidente podia ter-me sido fatal, mas safei-me com um pé partido. Com o pé no gesso, passava os dias no convento dos dominicanos a preparar a peregrinação do Rosário a Lourdes. Uma das organizadoras, uma tal Geneviève não me deixou indiferente e vice-versa. Aí entrámos numa estrada em que houve curvas, subidas e descidas, usámos travão e acelarador, mas nunca mais entrámos em nenhum cruzamento... Voltei, como tinha decidido, mais um ano para Roma. Já tinha entrado nesta nova estrada quando recebí uma carta do Padre Miguel, que tinha sido eleito Provincial há alguns meses. Convidava-me a regressar a Portugal, visto que tinha terminado os estudos de teologia. Propunha-me mesmo ir para o Porto para aí animar a vida litúrgica. Se esta carta tivesse chegado alguns meses antes, hoje seria dominicano, ter-me-ia realizado intelectualmente e mesmo humanamente, continuando, no entanto, a sofrer da úlcera do estômago, que me tinha atacado desde o noviciado. Manifestava-se duas vezes por ano, no começo da primavera e do Outono. Passava com um tratamento e desapareceu completamente quando entrei nesta estrada sem encruzilhadas. Sempre tive a certeza que o homem não nasce determinado para um percurso, definido desde toda a eternidade. São as circunstâncias da vida iluminadas e dirigidas pela inteligência, com a vontade como cúmplice (simplifico) que fazem de nós o que cada dia somos. Hoje diferentes de ontem e preparando-nos para sermos ainda mais diferentes àmanhã. Felizmente que há a memória (e os espelhos) para fazer a ligação entre todos as nossas acções, e mutações, quando não, como somos seres diferentes, cada manhã, não nos reconheceriamos e andariamos todos perdidos.
Mas que tem isto a ver com o Aniceto e o Bordéus? Já vem...É a tal história da cesta das cerejas: puxas por uma e vêm todas, mas não sabes em que ordem... No inicio de 1971 o Mestre Geral Aniceto Fernandes, veio a Clermont Ferrand fazer uma visita canónica (talvez não seja o nome justo) de dois dias. Fui avisado desta visita pelo Padre Pervis, então prior do convento, e que com o seu sotaque brasileiro, nos tinha pregado um retiro em Fátima em 1964 ou 1965. Fui pois visitar o M. G. , convidando-o para vir jantar a minha casa. Qual não foi a minha surpresa quando ele aceitou e me disse: “Bueno, vuelba buscarme por las siete de la tarde”. Quando cheguei a casa e disse à minha mulher: adivinha quem vem comer esta noite? Ela não adivinhou!... Era segunda feira, a meio da tarde, e apesar dos comércios estarem fechados, às 19h o jantar estava pronto, foi apreciado por um Aniceto Fernandez, acessível, agradável e mesmo jovial. Ao despedir-se o Padre Aniceto disse à Geneviève: “vous êtes responsable du bonheur de Fernando” voltando-se para mim e acenando para a Geneviève: “eres responsable de su felicidad, no olbides...” A minha sogra ( santa mulher, que educou os 4 filhos sozinha, depois de enviuvar aos 45 anos) nunca soube que se o eminente Mestre Geral dos Dominicanos se apoiava no meu ombro ao sair de casa, à uma da manhã, não era devido ao cansaço ou mudança de ares, mas devido ao “bordéus”. Os dominicanos melhor que ninguém sabem que a “veritas” também está no vinho, se for bom!
Fernando.