sexta-feira, 28 de setembro de 2018

SOPRANO

Mais um naco de memórias. Quando não vos agradar, eu termino.
Abraço
Nelso



Soprano

O barulho do petromax incomodava-me sobremaneira. A camarata do primeiro ano era um compartimento com algumas trinta camas e uma espécie de casa de banho ao fundo. Mais ou menos do centro do tecto, saía um gancho de ferro onde se pendurava o petromax que iluminava, como podia, o dormitório. À entrada do mictório, ficava de vigília toda a noite um lampião a petróleo que arremedava uma luz de presença. Aproveitando as duas paredes, fixava-se num canto com duas taipas de madeira, o quarto do prefeito.
A primeira noite foi de medos, de sonhos despertos, de dúvidas, inquietações e perguntas sem resposta. Ouvi soluços, palavras abafadas e lamentos incontidos. Tudo isso eu consegui reprimir e interiorizar numa insónia sem memória. Sobre a madrugada o sono deve ter-me vencido pois só despertei com o zumbido do petromax, que me haveria de perseguir para sempre. O prefeito batia palmas infindáveis e lá vinha mais um Benedicamus Domino.
A figura deste prefeito assustava-me. Eu que nos meus quatro anos de escola primária, tinha aprendido a não gostar de espanhóis por causa das Aljubarrotas e dos Filipes, tinha pela frente um prefeito espanhol, berrão, autoritário, irascível e com instintos que, a esta distância, consideraria pedófilos. Não se quedou por muito tempo em Aldeia Nova e não deixou saudades em ninguém. Nunca foi meu professor, mas dava por lá umas aulas de inglês e esporadicamente ministrava umas aulas de ginástica a todos. Recordarei para sempre uma frase sua que feriu o meu orgulho de portuguesito com o ego patriótico razoavelmente afirmado, quando numa aula de ginástica ele ordenava que formassem duas alas, mandando estender o braço até ao ombro do colega da frente para delimitar espaço. Como houvesse um grupo de alunos muito juntos ele gritava: Para trás, más para trás… se Portugal es pequeño, será grande España!... Nunca mais esqueci esta atitude segregacionista desse tal Avelino Aboím Gonzalez y Tiembra.
E tão cedo que era, quando o espanhol bateu as palmas!... Feita a higiene matinal, lá seguimos todos em fila indiana, petromax à frente porque o sol ainda estava escondido, em direcção à capela. À saída do dormitório ficava a oficina do sapateiro, passávamos por debaixo da figueira, depois a copa à direita e a adega do Irmão Domingos à esquerda. Haveríamos de tomar assento nos bancos da capela, em lugar já demarcado de véspera. Matinas!... Que era isso? Uma salmodia monocórdica, entoada alternadamente pelos frades e pelos alunos mais velhos que já eram versados na matéria. Depois a Santa Missa, dita conventual, nesse primeiro dia celebrada pelo fr. Luís Cerdeira, o director, enquanto em dois altares laterais outros frades despachavam em surdina a sua obrigação quotidiana. Ite, missa est.
Mais uma fila indiana até ao dormitório, fazer as camas e vestir o guarda-pó, assim uma espécie de bata de cotim que protegia a roupinha. Depois o refeitório, onde se deglutia um prato de papas de milho e uma aguada caneca de café com leite, acaudatada de um pão, vulgo carcaça, com manteiga americana.
Verificados os horários lectivos, seguiam-se as aulas. Afinal também havia professores leigos. E eu a imaginar que para se ser padre, não era preciso andar às voltas com a história, a geografia, a matemática, as ciências e o francês… Não seria suficiente aprender latim e português e, obviamente, o catecismo?!... E, por uma louvável gestão económica, herdávamos os livros dos companheiros de anos anteriores, poupadinhos quase todos. E, de hora a hora, a campainha soava anunciando o fim e o início de uma nova aula.
Rosa, rosae, nominativo, genitivo, vocativo, dativo, ablativo… isto de aprender a ser padre, tem que se lhe diga!... A meio da manhã, um intervalo de meia hora que mal dava para satisfazer as necessidades fisiológicas, quanto mais para engendrar um stique para o hóquei em campo ou um taco para o críquete. E no recreio os terrenos iam-se demarcando, uns com os buracos para o berlinde, outros no voleibol e no hóquei, enquanto aqui e ali, ainda houvesse quem curtisse uma acrisolada saudade. A sineta interrompia tudo e lá vinha de novo a formatura, um rito que eu haveria de recuperar, anos mais tarde, no cumprimento do serviço militar. Mais aulas e muitas orações, antes, depois e às vezes no meio. O toque da campainha era o momento mais ansiado, sobretudo o do meio-dia e meia, que nos fazia de novo sentar ao redor das mesas de mármore frio, onde já se alinhavam as alfaias de alumínio, prontas para o embate com a pouco elaborada comida preparada por um arremedador de cozinheiro que granjeara a alcunha de fr. Porras.
Depois do almoço vinha um curto período de recreio, depois formatura e depois aulas. Nesse primeiro dia, no fim das aulas, fomos chamados à música. No salão de baixo, junto do piano, um professor de música, leigo, de bata preta  e que, se a memória me não atraiçoa, dava pelo nome de Ferreira. E o músico, ia entrevistando cada um de nós obrigando-nos a entoar a escala diatónica, tanto na forma ascendente como descendente, tomando por base o som do piano. E o mestre músico lá ia arrumando os nomes que seleccionava, acrescentando-lhe o naipe em que cada um iria ser integrado.

Eu fui selecionado para soprano.

2 comentários:

Fernando Vaz disse...

Fiz bem voltar ao “Criar Laços”
Penso que o teu livro das nossas memórias já deve estar terminado!... Publica e manda, o teu preço será o meu. Se for um presente ainda melhor...
Mais uma vez lí atentamente e está tudo certinho. Jà tinha esquecido certos promenores que gostei de relembrar: o petromax, a primeira noite...(felizmente que, mais tarde, houve primeiras noites melhores)...
O famoso guarda pó azul, em cotim... o frei Porras... A música!
Recordo-me perfeitamente do Zé Ferreira que nos preparou para cantarmos no Mosteiro da Batalha uma missa a quatro vozes em honra da jovem Rainha de Inglaterra que ainda está no poleiro... Uma missa solene para uma Rainha , chefe da Igreja Protestante, é preciso ousar!
O Zé Ferreira que vinha do seminário dos olivais, foi depois para Fátima como secretário do Padre Reed que dirigia a Revista do Rosário. Quando o P. Reed foi para Roma levou-o com ele sempre como secretário e vivia mesmo ao lado do Angélico, para onde eu fui escorraçado com o Rufino... enquanto outros foram para Espanha, França, Canadá etc. É outra história...
Nelson, manda sempre, pois tenho a certeza que mesmo aqueles que não dizem nada, apreciam.
Com amizade, um grande abraço para todos os leitores...
Fernando

Nelson disse...

Caro Fernando:
Bem-hajas pelas tuas palavras e, sobretudo, por me fazeres compreender que a minha memória está viva. Vou debitando as minhas memórias em sítio que os vindouros aproveitarão ou não. Aquelas que se prendem com as nossas vivências comuns, deixo-as aqui para que uns recordem e outros conheçam. Tu também terás muito que contar, Vai mandando,
Grande Abraço