Mais um naco de memórias. Quando não vos agradar, eu termino.
Abraço
Nelson
Soprano
O barulho do
petromax incomodava-me sobremaneira. A camarata do primeiro ano era um
compartimento com algumas trinta camas e uma espécie de casa de banho ao fundo.
Mais ou menos do centro do tecto, saía um gancho de ferro onde se pendurava o
petromax que iluminava, como podia, o dormitório. À entrada do mictório, ficava
de vigília toda a noite um lampião a petróleo que arremedava uma luz de
presença. Aproveitando as duas paredes, fixava-se num canto com duas taipas de
madeira, o quarto do prefeito.
A primeira noite
foi de medos, de sonhos despertos, de dúvidas, inquietações e perguntas sem
resposta. Ouvi soluços, palavras abafadas e lamentos incontidos. Tudo isso eu
consegui reprimir e interiorizar numa insónia sem memória. Sobre a madrugada o
sono deve ter-me vencido pois só despertei com o zumbido do petromax, que me
haveria de perseguir para sempre. O prefeito batia palmas infindáveis e lá
vinha mais um Benedicamus Domino.
A figura deste
prefeito assustava-me. Eu que nos meus quatro anos de escola primária, tinha
aprendido a não gostar de espanhóis por causa das Aljubarrotas e dos Filipes,
tinha pela frente um prefeito espanhol, berrão, autoritário, irascível e com
instintos que, a esta distância, consideraria pedófilos. Não se quedou por
muito tempo em Aldeia Nova e não deixou saudades em ninguém. Nunca foi meu
professor, mas dava por lá umas aulas de inglês e esporadicamente ministrava
umas aulas de ginástica a todos. Recordarei para sempre uma frase sua que feriu
o meu orgulho de portuguesito com o ego patriótico razoavelmente afirmado,
quando numa aula de ginástica ele ordenava que formassem duas alas, mandando
estender o braço até ao ombro do colega da frente para delimitar espaço. Como
houvesse um grupo de alunos muito juntos ele gritava: Para trás, más para trás… se Portugal es pequeño, será grande
España!... Nunca mais esqueci esta atitude segregacionista desse tal
Avelino Aboím Gonzalez y Tiembra.
E tão cedo que
era, quando o espanhol bateu as palmas!... Feita a higiene matinal, lá seguimos
todos em fila indiana, petromax à frente porque o sol ainda estava escondido,
em direcção à capela. À saída do dormitório ficava a oficina do sapateiro,
passávamos por debaixo da figueira, depois a copa à direita e a adega do Irmão
Domingos à esquerda. Haveríamos de tomar assento nos bancos da capela, em lugar
já demarcado de véspera. Matinas!... Que era isso? Uma salmodia monocórdica,
entoada alternadamente pelos frades e pelos alunos mais velhos que já eram
versados na matéria. Depois a Santa Missa, dita conventual, nesse primeiro dia
celebrada pelo fr. Luís Cerdeira, o director, enquanto em dois altares laterais
outros frades despachavam em surdina a sua obrigação quotidiana. Ite, missa est.
Mais uma fila
indiana até ao dormitório, fazer as camas e vestir o guarda-pó, assim uma
espécie de bata de cotim que protegia a roupinha. Depois o refeitório, onde se
deglutia um prato de papas de milho e uma aguada caneca de café com leite, acaudatada
de um pão, vulgo carcaça, com manteiga americana.
Verificados os
horários lectivos, seguiam-se as aulas. Afinal também havia professores leigos.
E eu a imaginar que para se ser padre, não era preciso andar às voltas com a
história, a geografia, a matemática, as ciências e o francês… Não seria
suficiente aprender latim e português e, obviamente, o catecismo?!... E, por
uma louvável gestão económica, herdávamos os livros dos companheiros de anos
anteriores, poupadinhos quase todos. E, de hora a hora, a campainha soava
anunciando o fim e o início de uma nova aula.
Rosa, rosae, nominativo, genitivo, vocativo, dativo,
ablativo… isto de aprender a ser padre, tem que se lhe diga!... A meio da manhã,
um intervalo de meia hora que mal dava para satisfazer as necessidades
fisiológicas, quanto mais para engendrar um stique para o hóquei em campo ou um
taco para o críquete. E no recreio os terrenos iam-se demarcando, uns com os
buracos para o berlinde, outros no voleibol e no hóquei, enquanto aqui e ali,
ainda houvesse quem curtisse uma acrisolada saudade. A sineta interrompia tudo
e lá vinha de novo a formatura, um rito que eu haveria de recuperar, anos mais
tarde, no cumprimento do serviço militar. Mais aulas e muitas orações, antes,
depois e às vezes no meio. O toque da campainha era o momento mais ansiado,
sobretudo o do meio-dia e meia, que nos fazia de novo sentar ao redor das mesas
de mármore frio, onde já se alinhavam as alfaias de alumínio, prontas para o
embate com a pouco elaborada comida preparada por um arremedador de cozinheiro
que granjeara a alcunha de fr. Porras.
Depois do almoço
vinha um curto período de recreio, depois formatura e depois aulas. Nesse
primeiro dia, no fim das aulas, fomos chamados à música. No salão de baixo,
junto do piano, um professor de música, leigo, de bata preta e que, se a memória me não atraiçoa, dava pelo
nome de Ferreira. E o músico, ia entrevistando cada um de nós obrigando-nos a
entoar a escala diatónica, tanto na forma ascendente como descendente, tomando
por base o som do piano. E o mestre músico lá ia arrumando os nomes que
seleccionava, acrescentando-lhe o naipe em que cada um iria ser integrado.
Eu fui selecionado para soprano.
2 comentários:
Fiz bem voltar ao “Criar Laços”
Penso que o teu livro das nossas memórias já deve estar terminado!... Publica e manda, o teu preço será o meu. Se for um presente ainda melhor...
Mais uma vez lí atentamente e está tudo certinho. Jà tinha esquecido certos promenores que gostei de relembrar: o petromax, a primeira noite...(felizmente que, mais tarde, houve primeiras noites melhores)...
O famoso guarda pó azul, em cotim... o frei Porras... A música!
Recordo-me perfeitamente do Zé Ferreira que nos preparou para cantarmos no Mosteiro da Batalha uma missa a quatro vozes em honra da jovem Rainha de Inglaterra que ainda está no poleiro... Uma missa solene para uma Rainha , chefe da Igreja Protestante, é preciso ousar!
O Zé Ferreira que vinha do seminário dos olivais, foi depois para Fátima como secretário do Padre Reed que dirigia a Revista do Rosário. Quando o P. Reed foi para Roma levou-o com ele sempre como secretário e vivia mesmo ao lado do Angélico, para onde eu fui escorraçado com o Rufino... enquanto outros foram para Espanha, França, Canadá etc. É outra história...
Nelson, manda sempre, pois tenho a certeza que mesmo aqueles que não dizem nada, apreciam.
Com amizade, um grande abraço para todos os leitores...
Fernando
Caro Fernando:
Bem-hajas pelas tuas palavras e, sobretudo, por me fazeres compreender que a minha memória está viva. Vou debitando as minhas memórias em sítio que os vindouros aproveitarão ou não. Aquelas que se prendem com as nossas vivências comuns, deixo-as aqui para que uns recordem e outros conheçam. Tu também terás muito que contar, Vai mandando,
Grande Abraço
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