FORA
DO ESTUDO NÃO HÁ SALVAÇÃO
Frei
Bento Domingues, O.P. in Jornal Público
1.
Ao apresentar em Luanda,
com este título, um programa de trabalho histórico-teológico a um grupo de
jovens estudantes dominicanos, sobre os modos de fidelidade e infidelidade ao
carisma da Ordem dos Pregadores - ao longo dos seus 800 anos - um deles destacou
os graves inconvenientes desta afirmação. A sua sonoridade evocava demasiado uma
outra expressão que envenenou séculos de teologia missionária e pastoral: fora da Igreja não há salvação! Mas o
que agora propomos é algo que nada tem a ver com essa aberração. O título diz
apenas que em qualquer tempo, lugar e cultura, sem a dedicação permanente ao
estudo, os dominicanos não podem realizar a sua missão na Igreja, acabando por
cumprir tarefas que os não definem e os torna facilmente dispensáveis e
substituíveis.
M. D. Chenu O.P., famoso historiador-teólogo que
suscitou várias gerações de investigadores das ciências indispensáveis às
práticas teológicas inovadoras, lembrou que “a Ordem dos Pregadores nasceu,
radicalmente, da compreensão, da análise e do amor a um mundo em mutação. Enquanto
o conjunto da Igreja hierárquica e povo simples praticante se sentem tolhidos,
as novas equipas religiosas, Frades Menores e Pregadores à cabeça, reconhecem
que esse mundo como tal, e não apenas a ordem estabelecida, é provocação ao
Evangelho. É aí que importa ler os “sinais dos tempos”, acontecimento actual do
Reino, presença activa da Igreja no gemido da criação. Não é obra de reformismo
moral, de simples revisão pastoral, de acomodação de regras e estruturas, nem
sequer, ao fim e ao cabo, de uma santificação das virtudes. Trata-se de um
carisma, com a compreensão viva, profética, de uma situação humana nova, na
evolução do mundo”.
2. Este é um sugestivo retrato histórico
do mundo em que nasceram os franciscanos e dominicanos. A realização da
originalidade do carisma da Ordem dos Pregadores implicava, não apenas a
convicção de que sem a graça da pregação, graça do Pentecostes, não podia
preencher uma das mais graves lacunas da Igreja do seu tempo, a miséria
espiritual da ignorância. Consciente de que a graça não substitui a natureza,
pelo contrário, exige a mobilização de todos os seus recursos cognitivos e
afectivos, foi o próprio S. Domingos que, em 1217, dispersou os primeiros companheiros
para estudar, pregar e criar comunidade, preferindo, para esse efeito, os
centros universitários de Paris e Bolonha. O
estudo não é uma ocupação ocasional, mas uma peça mestra da observância religiosa.
Por isso, a aquisição de livros e a sua boa conservação não podiam ser afectadas
pelo voto de pobreza. Os livros são as
nossas armas, dizia o capítulo provincial de Avinhão, em 1288.
As exigências do estudo justificavam
a flexibilização da vida conventual, por meio da dispensa individual e
colectiva. Logo que um jovem começava o Noviciado, o padre Mestre devia
ensinar-lhe que, sempre e em toda a parte, de dia e de noite, em casa ou em
viagem, devia ter a preocupação de estudar e reflectir. A existência quotidiana
de uma comunidade de Pregadores organizava-se como escola de teologia e
pregação.
Segundo as primeiras Constituições,
não se podia abrir nenhuma comunidade sem dispor de um prior e de um professor
de teologia. A assiduidade ao estudo era um dos elementos da vida conventual que
os visitadores, encarregados de controlar a regularidade da vida das
comunidades, deviam verificar.
Por isso, todos os conventos da
Ordem terão de ser, ao mesmo tempo, centros
de vida consagrada, de pregação e de teologia. Foram estes os diversos elementos
da nova fórmula de «vida apostólica» que S. Domingos procurou e conseguiu ver explicitamente
enunciados nos documentos pontifícios, a fim de organizar e estabilizar o seu
desígnio fundacional.
Ainda nos começos do século XVI, um
célebre Mestre Geral da Ordem e grande teólogo, Tomás de Vio Cayetano, retomou
a mesma convicção: se o estudo da Verdade
sagrada desaparecer da Ordem dos Pregadores, esta Ordem acaba[1].
3.
Outro Mestre Geral, Humberto de Romans (1200-1277), já tinha destacado a originalidade da forma de vida
configurada por S. Domingos, seus companheiros e seguidores, afirmando que a
Ordem dos Pregadores foi a primeira a unir, de forma estrutural, estudo e vida
religiosa.
Não aconteceu, por acaso, que em
poucas décadas florescessem no seu seio figuras como Sto Alberto Magno e S. Tomás
de Aquino. O primeiro sublinha que é na
doçura da vida comunitária que se busca a verdade. Não suporta que a
ignorância queira recusar à Ordem dos Pregadores o estudo e o uso da filosofia. O seu discípulo, Tomás de Aquino,
realça que a forma de vida activa,
pregando e ensinando a realidade contemplada é mais perfeita do que a pura vida
contemplativa. É melhor iluminar do que ser apenas luz.
Desejo que os dominicanos em Angola,
continuem decididos, na linha de S. Domingos, a desenvolver centros de vida
consagrada, de pregação e de práticas teológicas aliadas às ciências humanas.
Luanda, 31.07.2016
[1] Para todos esses
aspectos históricos, ver André Duval, O.P., Síntesis
histórica de la Orden de los Frayles Predicadores, Biblioteca Dominicana,
Bogotá, s/d.ão
2 comentários:
http://pela-positiva.blogspot.pt/2016/07/fora-do-estudo-nao-ha-salvacao.html
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