terça-feira, 2 de agosto de 2016

Fora do Estudo não há salvação

FORA DO ESTUDO NÃO HÁ SALVAÇÃO
Frei Bento Domingues, O.P. in Jornal Público

1. Ao apresentar em Luanda, com este título, um programa de trabalho histórico-teológico a um grupo de jovens estudantes dominicanos, sobre os modos de fidelidade e infidelidade ao carisma da Ordem dos Pregadores - ao longo dos seus 800 anos - um deles destacou os graves inconvenientes desta afirmação. A sua sonoridade evocava demasiado uma outra expressão que envenenou séculos de teologia missionária e pastoral: fora da Igreja não há salvação! Mas o que agora propomos é algo que nada tem a ver com essa aberração. O título diz apenas que em qualquer tempo, lugar e cultura, sem a dedicação permanente ao estudo, os dominicanos não podem realizar a sua missão na Igreja, acabando por cumprir tarefas que os não definem e os torna facilmente dispensáveis e substituíveis.
M. D. Chenu O.P., famoso historiador-teólogo que suscitou várias gerações de investigadores das ciências indispensáveis às práticas teológicas inovadoras, lembrou que “a Ordem dos Pregadores nasceu, radicalmente, da compreensão, da análise e do amor a um mundo em mutação. Enquanto o conjunto da Igreja hierárquica e povo simples praticante se sentem tolhidos, as novas equipas religiosas, Frades Menores e Pregadores à cabeça, reconhecem que esse mundo como tal, e não apenas a ordem estabelecida, é provocação ao Evangelho. É aí que importa ler os “sinais dos tempos”, acontecimento actual do Reino, presença activa da Igreja no gemido da criação. Não é obra de reformismo moral, de simples revisão pastoral, de acomodação de regras e estruturas, nem sequer, ao fim e ao cabo, de uma santificação das virtudes. Trata-se de um carisma, com a compreensão viva, profética, de uma situação humana nova, na evolução do mundo”.
2. Este é um sugestivo retrato histórico do mundo em que nasceram os franciscanos e dominicanos. A realização da originalidade do carisma da Ordem dos Pregadores implicava, não apenas a convicção de que sem a graça da pregação, graça do Pentecostes, não podia preencher uma das mais graves lacunas da Igreja do seu tempo, a miséria espiritual da ignorância. Consciente de que a graça não substitui a natureza, pelo contrário, exige a mobilização de todos os seus recursos cognitivos e afectivos, foi o próprio S. Domingos que, em 1217, dispersou os primeiros companheiros para estudar, pregar e criar comunidade, preferindo, para esse efeito, os centros universitários de Paris e Bolonha. O estudo não é uma ocupação ocasional, mas uma peça mestra da observância religiosa. Por isso, a aquisição de livros e a sua boa conservação não podiam ser afectadas pelo voto de pobreza. Os livros são as nossas armas, dizia o capítulo provincial de Avinhão, em 1288.
As exigências do estudo justificavam a flexibilização da vida conventual, por meio da dispensa individual e colectiva. Logo que um jovem começava o Noviciado, o padre Mestre devia ensinar-lhe que, sempre e em toda a parte, de dia e de noite, em casa ou em viagem, devia ter a preocupação de estudar e reflectir. A existência quotidiana de uma comunidade de Pregadores organizava-se como escola de teologia e pregação.
Segundo as primeiras Constituições, não se podia abrir nenhuma comunidade sem dispor de um prior e de um professor de teologia. A assiduidade ao estudo era um dos elementos da vida conventual que os visitadores, encarregados de controlar a regularidade da vida das comunidades, deviam verificar.
Por isso, todos os conventos da Ordem terão de ser, ao mesmo tempo, centros de vida consagrada, de pregação e de teologia. Foram estes os diversos elementos da nova fórmula de «vida apostólica» que S. Domingos procurou e conseguiu ver explicitamente enunciados nos documentos pontifícios, a fim de organizar e estabilizar o seu desígnio fundacional.
Ainda nos começos do século XVI, um célebre Mestre Geral da Ordem e grande teólogo, Tomás de Vio Cayetano, retomou a mesma convicção: se o estudo da Verdade sagrada desaparecer da Ordem dos Pregadores, esta Ordem acaba[1]
3. Outro Mestre Geral, Humberto de Romans (1200-1277), já tinha destacado a originalidade da forma de vida configurada por S. Domingos, seus companheiros e seguidores, afirmando que a Ordem dos Pregadores foi a primeira a unir, de forma estrutural, estudo e vida religiosa.
Não aconteceu, por acaso, que em poucas décadas florescessem no seu seio figuras como Sto Alberto Magno e S. Tomás de Aquino. O primeiro sublinha que é na doçura da vida comunitária que se busca a verdade. Não suporta que a ignorância queira recusar à Ordem dos Pregadores o estudo e o uso da filosofia. O seu discípulo, Tomás de Aquino, realça que a forma de vida activa, pregando e ensinando a realidade contemplada é mais perfeita do que a pura vida contemplativa. É melhor iluminar do que ser apenas luz.
Desejo que os dominicanos em Angola, continuem decididos, na linha de S. Domingos, a desenvolver centros de vida consagrada, de pregação e de práticas teológicas aliadas às ciências humanas.
Luanda, 31.07.2016



[1] Para todos esses aspectos históricos, ver André Duval, O.P., Síntesis histórica de la Orden de los Frayles Predicadores, Biblioteca Dominicana, Bogotá, s/d.ão

2 comentários:

Silva Missio Canonica disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Silva Missio Canonica disse...

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