sexta-feira, 18 de junho de 2010

Deus absconditus

onde estás, Deus libertador,
que nos perguntam por ti e não te vemos?
Deus escondido, onde estás?
devemos procurar-te entre os destroços,
a cinza e as mãos cortadas como canas verdes,
ou à frente das batalhas,
entre os que caminham como o vento
e as folhas das plantas, sensíveis à luz,
entre os que vão de cabeça alta e regressam
da servidão do saco e do tijolo
os que acordados vêm,
os pés recentemente desatados,
a língua solta?
Deus escondido, onde moras?
devemos procurar-te entre os que fizeram o êxodo
e começaram a amar,
os que morrendo a si já ressuscitam
os que rompem as muralhas da pele e pedem água?
devemos procurar-te naqueles que sobem à montanha
para molhar as mãos de luz e transfigurar-se?
(na solidão dos montes apalparei a tua face?
na limpidez dos rios e nas palavras
com que que fizeste o mundo verei a tua mão correndo?)
onde devemos esperar-te, Deus da surpresa
e como nós trânsfuga?
Deus dos que não têm voz nem barcos
para na albufeira olhar a alma
a crescer como a sombra dos pinheiros
anoitece a alma e o rio,
Deus gratuito, onde estás?
devemos procurar-te na poesia e no canto,
no amor e na beleza,
na barraca e no lixo?
onde apareces, Deus amigo dos pobres,
onde te acharemos, Deus libertador?


fr. José A. Mourão
in O Nome e a Forma

1 comentário:

Anónimo disse...

O Nome e a Forma chegou-me pela mão do Frei Marcos. E logo me deslumbrou.
Embora o Abel Pena já tenha dito quase tudo em tão belas palavras, aceitando o repto do Fernando Vaz, deixo aqui um breve comentário que em mim suscitou a leitura do livro.
Quando somos confrotados com a poesia de J. A. Mourão apodera-se de nós a convicção de que a nossa vida não se pode confinar a este percurso breve, a esta realidade transitória. Ela diz-nos que é possível uma passagem, ainda que por estreita vereda. Poesia de inquietante busca, tão intensa na viagem da demanda que parece não respirar, enche e despoja a alma; aponta para cima.
A escandalosa ocultação de Deus aponta para a sua presença mais além.
Mas - pergunto eu, à margem da análise - Deus absconditus ou ausente ou esquecido do mundo?
Eduardo Bento