quinta-feira, 24 de junho de 2010

Caritas in Veritate, uma encíclica revolucionária


Stefano Zamagni, uma das figuras mais respeitadas da reflexão sobre Doutrina Social da Igreja na actualidade, veio a Portugal: A convite do Centro de Ética Económica e Empresarial da Faculdade de Ciências Económicas e Empresariais da Universidade Católica, proferiu no passado dia 2 de Junho a conferência «Caritas in Veritate, uma encíclica revolucionária»

POR JOÃO CÉSAR DAS NEVES*

Nessa prelecção o autor - professor de Economia na Universidade de Bolonha e na Johns Hopkins University, e uma das figuras mais respeitadas da reflexão sobre Doutrina Social da Igreja na actualidade - partiu de três paradoxos fundamentais, dos quais nascem as questões socioeconómicas do nosso tempo. O primeiro paradoxo é a injustiça da redistribuição. O mundo tão desenvolvido continua a mostrar enorme disparidade entre ricos e pobres, entre países da abundância e da miséria. O segundo paradoxo é o da fome. Num planeta onde é produzida mais comida que a necessária para alimentar a humanidade, continua a existir o terrível flagelo da subnutrição e da miséria extrema. Finalmente existe o paradoxo da felicidade. Desde há muitos anos que os cientistas mostraram que, apesar do enorme aumento de bem-estar no Ocidente, os indicadores de felicidade não só não sobem, mas até descem.


Desde 1974, quando Richard Easterlin falou neste problema no seu artigo "Does Economic Growth Improve the Human Lot? Some Empirical Evidence", sabemos que nós, que somos em geral muito mais ricos que os nossos pais, não somos mais felizes. A razão é vasta, mas tem elementos evidentes. A felicidade exige relação interpessoal, mas o mundo desenvolvido é cada vez mais solitário, mais egoísta, mais individualista. Promove-se o divórcio, o autismo dos jogos de computador, a vacuidade das relações fortuitas e efémeras. Não é difícil entender porque a nossa prosperidade não trouxe felicidade. E agora a crise até abalou a prosperidade.


Estes três paradoxos são bem visíveis para quem queira olhar com seriedade a realidade que nos rodeia. Mas é importante questionar de onde eles vêm. A sua origem está ligada a três clivagens que se sentem no mundo de hoje. A primeira é a clivagem entre o económico e o social. A actualidade compreende a importância das duas dimensões, mas considera-as entregues a entidades diferentes. As empresas e os mercados tratam da economia, dedicados à eficiência, à produção. Aqueles que não podem ser eficientes são entregues à esfera social. O Estado-providência usa os recursos produzidos pela economia e procura garantir alguma solidariedade, mas numa atitude posterior à produção, independente da economia e procurando perturbá-la o menos possível.


A segunda clivagem recente verifica-se entre a riqueza e o trabalho. Na realidade toda a riqueza é apenas resultado do trabalho. Ao longo de séculos sempre se via o esforço humano como o caminho para a prosperidade. Mas hoje parece que a especulação financeira conseguiu desligar uma da outra e temos a riqueza sem qualquer contacto com o trabalho, e até mesmo funcionando contra o trabalho. Cada vez se ouve mais dizer que o destino do ser humano é ultrapassar o trabalho, conseguir um mundo sem trabalho.


Finalmente, a terceira clivagem verifica-se entre o mercado e a democracia. O mercado precisa das regras, tribunais e leis para funcionar. Essas normas e julgamentos têm de vir de fora, controladas pelos mecanismos sociais através da democracia. Mas ultimamente apareceu um esforço para levar o mercado a ser auto-regulado. São as forças económicas que definem e controlam as linhas que o mercado deve respeitar. Mas quando o mercado é auto-regulado entra em colapso, como vimos nos últimos anos.


A solução para estas três clivagens, como indica a encíclica de Bento XVI, está em dois princípios fundamentais: a fraternidade e o bem comum. O princípio da fraternidade, segundo Zamagni, aparece na Doutrina Social da Igreja pela primeira vez nesta encíclica. É um velho princípio da revolução francesa, parte da trilogia fundamental de liberdade, igualdade e fraternidade. Mas em 1794 Saint-Just retirou este terceiro elemento e mandou queimar todos os livros que tratavam de fraternidade. Os movimentos maçónicos, embora falem disso, não seguem o princípio da fraternidade, mas o princípio da camaradagem, que é muito diferente. Porque a fraternidade implica a existência de um pai comum, a existência de um dom que nos une como irmãos.


O princípio do bem comum relaciona-se directamente com os bens fundamentais. Ele é muito diferente do princípio do bem total. Uma coisa é o bem de todos, outra bem diferente é o bem comum, o bem da comunidade. Para chegar a este, é preciso ver a sociedade não como uma soma de indivíduos, mas como uma entidade com identidade própria. Deve não centrar-se a finalidade apenas na prosperidade material, mas ter cada vez mais em conta os «bens relacionais», os bens humanos que nascem dos contactos entre as pessoas, que só ganham sentido no seio da comunidade. Aqui aparece também a lógica do dom, da gratuidade.


A doutrina social da Igreja é muito antiga, nascendo da reflexão dos Padres da Igreja sobre os problemas do seu tempo. S. Basílio de Cesareia, no século IV, escreveu as suas homilias sobre «Os Usos da Riquezas», um dos grandes tratados de Doutrina Social da Igreja. É nessa longa tradição que se entronca esta encíclica revolucionária de Bento XVI.




** João César das Neves é economista, professor catedrático na Universidade Católica e Coordenador do Programa de Ética nos Negócios e Responsabilidade Social das Empresas


1 comentário:

Nelson disse...

Por manifesto lapso meu, não ficou referido que este trabalho foi enviado pelo Luis Sousa Guedes.
Nelson