Essa via só começou em 1953 e o que acabei de contar-lhe é de 47-48, por aí. Uma coisa que se passava era que, como havia poucos liceus, os colégios eram caros e muita gente nem sequer podia pensar em mandar os filhos estudar, longe disso, a escola apostólica, ou mais tarde o seminário eram uma forma de possibilitar aos pobres que tivessem mostrado algumas aptidões prosseguir nos estudos para além da 4ª classe.
Mas, pelo visto, a sua vocação era mesmo a religiosa e não terá tido necessidade de fazer grandes sacrifícios para renunciar aos atractivos do mundo cá fora, presumo…
Mas, pelo visto, a sua vocação era mesmo a religiosa e não terá tido necessidade de fazer grandes sacrifícios para renunciar aos atractivos do mundo cá fora, presumo…
Não, foi uma enorme alegria a entrada para a escola apostólica, foi uma enorme alegria lá ter estado, e foi uma enorme alegria ter-me tornado mais tarde frade dominicano.
Quer dizer: nunca chegou a ser pároco, padre numa paróquia!...
Quer dizer: nunca chegou a ser pároco, padre numa paróquia!...
Não, nunca. Fui noviciado para ali - Fátima - e noviciado era um ano sem nenhum compromisso de parte a parte - era uma experimentação recíproca - e depois havia os votos durante três anos, que coincidiam com três anos de filosofia. Logo de seguida fui para Salamanca.
Nunca teve dúvidas a respeito da sua vocação?
Nunca teve dúvidas a respeito da sua vocação?
Sim, no ano do noviciado. Tinha 19 anos: uma crise muito forte, pus tudo em questão. E falei com o meu mestre, um médico de Lisboa que ia dar-nos aulas de Psicologia. Ele era muito amigo do nosso professor - um homem brilhante - que falou comigo e passou-se ali qualquer coisa que nunca consegui explicar. E foi então que fui para Salamanca e, de Salamanca, para Roma, Toulouse, etc., etc. Andei assim vários anos, saltitando entre os diversos centros de estudo da Ordem, até que fiz um estágio na Alemanha, mas aí já praticamente só para aprender a língua.
O que é efectivamente ser dominicano?
O que é efectivamente ser dominicano?
S. Domingos era contemporâneo de S. Francisco - estamos no início do séc. XIII - e, enquanto S. Francisco assumia sobretudo os movimentos populares que existiam nesse tempo no sentido de renovar a Igreja - havia uma contestação imensa - S. Domingos, um cónego de Osma (Espanha) que fez os seus estudos em Valência, era um intelectual que entrou para a Congregação dos cónegos de Sto. Agostinho e, nessa qualidade, passou a certa altura por Toulouse onde, após - diz a lenda - ter passado a noite em discussão com os monges cátaros, albigenses, se converteu à sua forma de interpretar e viver o catolicismo. Acabando por ter como missão re-evangelizar o Sul de França e de Itália, regiões nas quais, até aí, a evangelização de populações, paupérrimas, mesmo referindo-se à pobreza de Cristo, era feita de uma forma ostentatória, rica. Mas, como era um intelectual com uma grande preparação teológica, ao contrário, ou se quisermos como um suplemento do tipo de evangelização que fazia S. Francisco - que vivia com as populações e assumia os seus movimentos de contestação, como atrás disse - ele afirmava que, para evangelizar, era também necessário ter essa tal preparação, que para S. Francisco era muito menos importante. Porque de facto havia necessidade de uma forte remodelação teológica.
Porquê, exactamente?
Porquê, exactamente?
Porque, repare: os textos da cultura grega tinham começado por ser traduzidos para árabe -muita gente na Europa teve acesso a eles através dessas traduções - e só mais tarde, em particular em Toledo, é que foram retraduzidos para latim. Por isso, as muitas confusões se estabeleceram, e se levantou a seguinte questão: como mostrar que é verdade aquilo que nós dizemos que é verdade?
E como é que se mostra isso?
Para eles, pela argumentação, pela discussão: Quer dizer: tem de provar-se a real historicidade daquilo que vem na Bíblia.E como é que se mostra isso?
Mas se foi o próprio frei Bento Domingues quem escreveu há dias que na Bíblia se diz aqui uma coisa e, muitas vezes, logo de seguida se diz o seu contrário…
Exactamente! E aí é que está a questão. Embora eu pense que esse método da argumentação, da discussão, continue, todos estes séculos passados, a ser muito fecundo.
Voltando à sua qualidade de frade dominicano: o senhor tem algum tipo de obediências específicas por causa disso?
Ah, sim! Porque nós vivemos em comunidade.
Quem a dirige?
Temos um sistema electivo: elegemos o prior e os que coadjuvam o prior, no governo da comunidade.
Tem um quarto seu, um telefone próprio?
Sim.
O senhor é um frade obediente?
Eu creio que sim…
Mas é muito irreverente. Escreve certas coisas que…
Escrevo livremente! Porque há um princípio elementar, que é o seguinte: o que não é feito livremente, não é humano.
E no chamado tempo da "outra senhora", como era?
O cardeal Cerejeira e alguns bispos tiraram-me a jurisdição de pregar, de intervir. Mas o resto não podiam.
E o resto era…
Pensar, escrever.
Como é que são lidos os seus artigos do "Público" dentro do convento?
Aqui em casa? Cada um pensa o que quer e escreve o que quer.
Não submete os seus artigos à apreciação de ninguém antes de publicá-los?
O objecto dos artigos nunca foi discutido internamente. O que acontece é que costumo mostrá-los a pessoas que lêem aquilo que escrevo, porque o meu princípio é o de que quatro olhos vêem melhor do que dois. Mas isso não quer dizer que, se essas pessoas não estiverem de acordo com o que escrevi, eu vá mudar. Por outro lado, não cultivo a polémica e, se alguém escreve contra mim, não replico: não serve para nada. E, se eu tenho liberdade para escrever o que quero, para quê negá-la aos outros: o público é que decide se gosta ou não gosta, se adere ou não, e eu não tenho nada que dizer - aqui é que está a verdade! Porque a verdade é um processo de descoberta, não há ninguém que a tenha.
Pagam-lhe os artigos, é claro…
Sim, pagam. Mas nunca recebo esse dinheiro: ponho-o desde o início na conta do convento.Pagam-lhe os artigos, é claro…
E vive de quê? Tem uma mesada?
Todos temos uma mesada. Há uma bolsa comum e depois uma mesada para os gastos de cada um. E, se precisar de alguma coisa - de comprar livros, por exemplo - existe um procurador, que é aquele que está encarregado de procurar o necessário à vida da comunidade, que ajuda a resolver o problema.
Mas cada um dos frades vive de um modo muito frugal, não é assim?
Procuramos viver da forma mais frugal possível, é verdade.
NOTA: Este excerto da entrevista do Frei Bento ao jornal o JOGO, do passado dia 2, foi remetido pelo Fernando Vaz.
1 comentário:
Publicado no Jornal "O Jogo" de 2 de fev. 2008, fernando
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