domingo, 18 de dezembro de 2022

SUAVE MILAGRE

 

                                                               Um texto de Manuel Branco Mendes

SUAVE MILAGRE

Era o dia natalício mais esperado, ainda que 15 dias antes do Natal cá fora, o Natal na Prisão! O salão parecia pequeno e Dezembro parecia Agosto, tal a quantidade de corpos suados, ruidosos e irrequietos se movimentavam às 5 horas da tarde, 7 horas antes da meia noite de daí a 15 dias!

 

Mais ou menos estrategicamente dispostos ao longo do perímetro do salão, alguns guardas prisionais faziam guarda e, na contiguidade do espaço ocupado, um deles fazia guarda, neste caso de honra, ao presépio ali montado num canto.

 

E foi assim que, com Jesus na manjedoura, os reclusos na prisão e os artistas no palco, o espetáculo começou, com umas breves palavras do Sr. Diretor que falou de paz e esperança para os muitos que brevemente iriam de precária passar o Natal com sua família e também para os muitos outros que pela sua condição de preventivos ou mesmo condenados, mas que pelo insuficiente tempo de pena cumprido, pelo seu comportamento ou até pela natureza do crime, passariam a noite feliz com as felicidades que conseguissem traficar para o interior da cela.

 

Estes eram, naturalmente, os mais investidos - digamos assim em linguagem moderna – no evento festivo, não sendo de estranhar que, na sua impaciência, as últimas palavras do Sr. Diretor, repisando agora o clássico tema de “todos temos uma oportunidade”, tenham sido cobertas por uma ruidosa assobiadela e batimento com os pés no chão, mas que ainda deu para ouvir uma voz lá do meio da turbamulta a gritar: “- Vai-te embora, ó marreco…”!

 

E foi embora, não por ser marreco, mas antes que outros adjetivos viessem e, por isso, mandava o bom senso que viessem agora os artistas, todos eles de participação graciosa, estavam ali de coração cheio, somos todos humanos, afirmavam alguns deslumbrados nesta sua epifania, e tal e tal, que o mesmo é dizer veem como eu sou porreiro com vocês, agora eu canto e depois todos batem palmas.

 

E assim ia sendo, num crescendo, sabe Deus até onde, não fora a intervenção do humano.

 

Tudo começou com aquele cantor famoso, cabeça de cartaz no masculino, que garantiu que os maiores bandidos andavam cá fora em liberdade e eles é que estavam lá dentro. Um homem, mesmo recluso, não é insensível a tal argumentação, e o salão quase foi abaixo com uma ovação a essa melodia, sendo que as que se seguiram, mais cantadas e ainda mais melodiosas, falando do amor sempre impaciente e (des)esperado, não tinham a invocação argumentativa daquele introito inicial. Grande artista!

 

Maior ainda foi ela, ali e agora, em carne e osso ao vivo, ela que, em papel, já preenchia tantas paredes e noites de cela e que ali veio a anunciar solenemente: “- Boaaaa taaarde …! Como é que estão? Bem? Meus queridos, vão estar ainda melhores, vamos a isto, sou toda vooossa”! E antes que a multidão ululante se fizesse ouvir, já a instalação sonora vomitava toneladas de decibéis de pimba e repimba ao som da letra olha aqui, olha ali, toma lá, dá cá e ela quebrava-se, requebrava-se, baixava-se, levantava-se, o corpete na (falsa) expetativa de conter a cobiça dos olhos, a mini-saia que de tão mini só Deus saberia o que era, e toma lá, dá cá, aqui e ali, era já o próprio ar que suava, comprimido entre todos aqueles corpos de cheiros e suores lúbricos!

 

De tal modo que teve que ser o Sr. Diretor em particular, mais conhecido por marreco em geral, a puxá-la do palco para os bastidores, não sem antes de uma assobiadela monumental confirmar a sua condição de marreco!

 

O grupo de bailado da prisão feminina era maioritariamente constituído por sul-americanas, quase todas invariavelmente detidas no aeroporto, ali chegadas no terror de poderem ser descobertas, na esperança de o não serem, no sonho de a sua vida mudar depois deste serviço!

Eram também quase sempre jovens e bonitas, com uma elegância que o rancho da prisão ajudava a cultivar e os seus maillots e passos de dança mais faziam acentuar! Mas também havia portuguesas para quem o aeroporto da Portela nunca passou do casal ventoso ou do bairro do relógio, quase que, juraria mesmo, da soleira da própria porta. Algumas delas companheiras de homens que, pela razão da mesma matéria delituosa ou outra, se encontravam na assistência, num tempo em que as visitas não eram ainda suficientemente íntimas, prisões diferentes, celas diferentes, camas diferentes...

 

Foi o caso e foi o delírio com a sua entrada, o chão tremeu com o batuque de pés no chão e o Menino Jesus estremeceu nas suas palhinhas deitado, no presépio ali, mesmo ao lado do palco!

 

Cada dança, cada passo dengoso, cada simulação eram focos incendiários naquela imensa pradaria seca que insensivelmente ondulava numa perigosa aproximação ao palco. Alguns deles, mais à frente ou mais desesperados, ou as duas coisas, começaram mesmo a tentar trepar para o palco, ali, naquela maior clareira junto ao presépio, pés apoiados no pequeno anfiteatro em que o mesmo presépio se dispunha, cai o burro, rebola a vaca, as ovelhas tresmalhadas já fora do redil, Nossa Senhora e São José, ainda que de pernas para o ar, continuam lá, corajosamente, junto ao Menino, como que pregado à sua manjedoura, com aquele sorriso que os oleiros, o Divino e o terreno, lhe deram à nascença, um olho nelas, ali mesmo em cima e tão próximo Dele, um outro neles, ali ao lado, quase com os pés em cima Dele!

 

O Senhor Diretor gesticulava para os guardas face à catástrofe, gritando: “- Tirem-nos do palco, empurrem-nos, empurrem-nos” e até o guarda junto ao presépio, com risco para a integridade do Menino Jesus, agarrou pelas calças um mais afoito já quase em cima do palco, não sem que outros já quase lá pisassem mesmo as tábuas, numa enxurrada em que o mar invadia a terra com consequências imprevisíveis.

 

Eis se não quando, agarrando resolutamente o microfone, aquela mais matrona na dança, mas reconhecidamente quem mandava ali, gritou: “- Silêncio e todos para baixo, quem tem mulher na nossa prisão?”

 

“- Eu, eu e mais eu…”, os dedos iam crescendo no ar à medida que o silêncio se ia instalando até que ela, ali reconhecida como suprema autoridade, concluiu: “- Pois amanhã falamos com todas elas e ou vocês se portam bem ou quando forem de precária não há nada p’ra ninguém…!!”

 

Foi quanto bastou para que o silêncio ainda em desassossego se acabasse por instalar, uma imensa salva de palmas submergiu a multidão, o espetáculo recomeçou ao ritmo só faltam 10 dias para ir de precária, e o Menino Jesus manteve o seu sorriso indecifrável, mas feliz!

 

Paz na prisão aos homens de boa vontade que vão de saída precária no Natal!


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