Um texto de Manuel Branco Mendes
SUAVE MILAGRE
Era o dia natalício mais esperado, ainda que 15 dias antes do
Natal cá fora, o Natal na Prisão! O salão parecia pequeno e Dezembro parecia
Agosto, tal a quantidade de corpos suados, ruidosos e irrequietos se
movimentavam às 5 horas da tarde, 7 horas antes da meia noite de daí a 15 dias!
Mais
ou menos estrategicamente dispostos ao longo do perímetro do salão, alguns
guardas prisionais faziam guarda e, na contiguidade do espaço ocupado, um deles
fazia guarda, neste caso de honra, ao presépio ali montado num canto.
E
foi assim que, com Jesus na manjedoura, os reclusos na prisão e os artistas no
palco, o espetáculo começou, com umas breves palavras do Sr. Diretor que falou
de paz e esperança para os muitos que brevemente iriam de precária passar o
Natal com sua família e também para os muitos outros que pela sua condição de
preventivos ou mesmo condenados, mas que pelo insuficiente tempo de pena
cumprido, pelo seu comportamento ou até pela natureza do crime, passariam a
noite feliz com as felicidades que conseguissem traficar para o interior da
cela.
Estes
eram, naturalmente, os mais investidos - digamos assim em linguagem moderna –
no evento festivo, não sendo de estranhar que, na sua impaciência, as últimas
palavras do Sr. Diretor, repisando agora o clássico tema de “todos temos uma
oportunidade”, tenham sido cobertas por uma ruidosa assobiadela e batimento com
os pés no chão, mas que ainda deu para ouvir uma voz lá do meio da turbamulta a
gritar: “- Vai-te embora, ó marreco…”!
E
foi embora, não por ser marreco, mas antes que outros adjetivos viessem e, por
isso, mandava o bom senso que viessem agora os artistas, todos eles de participação
graciosa, estavam ali de coração cheio, somos todos humanos, afirmavam alguns
deslumbrados nesta sua epifania, e tal e tal, que o mesmo é dizer veem como eu
sou porreiro com vocês, agora eu canto e depois todos batem palmas.
E
assim ia sendo, num crescendo, sabe Deus até onde, não fora a intervenção do
humano.
Tudo
começou com aquele cantor famoso, cabeça de cartaz no masculino, que garantiu
que os maiores bandidos andavam cá fora em liberdade e eles é que estavam lá
dentro. Um homem, mesmo recluso, não é insensível a tal argumentação, e o salão
quase foi abaixo com uma ovação a essa melodia, sendo que as que se seguiram,
mais cantadas e ainda mais melodiosas, falando do amor sempre impaciente e
(des)esperado, não tinham a invocação argumentativa daquele introito inicial.
Grande artista!
Maior
ainda foi ela, ali e agora, em carne e osso ao vivo, ela que, em papel, já
preenchia tantas paredes e noites de cela e que ali veio a anunciar
solenemente: “- Boaaaa taaarde …! Como é que estão? Bem? Meus queridos, vão
estar ainda melhores, vamos a isto, sou toda vooossa”! E antes que a multidão
ululante se fizesse ouvir, já a instalação sonora vomitava toneladas de
decibéis de pimba e repimba ao som da letra olha aqui, olha ali, toma lá, dá
cá e ela quebrava-se, requebrava-se, baixava-se, levantava-se, o corpete na
(falsa) expetativa de conter a cobiça dos olhos, a mini-saia que de tão mini só
Deus saberia o que era, e toma lá, dá cá, aqui e ali, era já o próprio
ar que suava, comprimido entre todos aqueles corpos de cheiros e suores
lúbricos!
De
tal modo que teve que ser o Sr. Diretor em particular, mais conhecido por
marreco em geral, a puxá-la do palco para os bastidores, não sem antes de uma
assobiadela monumental confirmar a sua condição de marreco!
O
grupo de bailado da prisão feminina era maioritariamente constituído por
sul-americanas, quase todas invariavelmente detidas no aeroporto, ali chegadas
no terror de poderem ser descobertas, na esperança de o não serem, no sonho de
a sua vida mudar depois deste serviço!
Eram
também quase sempre jovens e bonitas, com uma elegância que o rancho da prisão
ajudava a cultivar e os seus maillots e passos de dança mais faziam acentuar!
Mas também havia portuguesas para quem o aeroporto da Portela nunca passou do
casal ventoso ou do bairro do relógio, quase que, juraria mesmo, da soleira da
própria porta. Algumas delas companheiras de homens que, pela razão da mesma
matéria delituosa ou outra, se encontravam na assistência, num tempo em que as
visitas não eram ainda suficientemente íntimas, prisões diferentes, celas
diferentes, camas diferentes...
Foi
o caso e foi o delírio com a sua entrada, o chão tremeu com o batuque de pés no
chão e o Menino Jesus estremeceu nas suas palhinhas deitado, no presépio ali,
mesmo ao lado do palco!
Cada
dança, cada passo dengoso, cada simulação eram focos incendiários naquela
imensa pradaria seca que insensivelmente ondulava numa perigosa aproximação ao
palco. Alguns deles, mais à frente ou mais desesperados, ou as duas coisas,
começaram mesmo a tentar trepar para o palco, ali, naquela maior clareira junto
ao presépio, pés apoiados no pequeno anfiteatro em que o mesmo presépio se
dispunha, cai o burro, rebola a vaca, as ovelhas tresmalhadas já fora do redil,
Nossa Senhora e São José, ainda que de pernas para o ar, continuam lá,
corajosamente, junto ao Menino, como que pregado à sua manjedoura, com aquele
sorriso que os oleiros, o Divino e o terreno, lhe deram à nascença, um olho
nelas, ali mesmo em cima e tão próximo Dele, um outro neles, ali ao lado, quase
com os pés em cima Dele!
O
Senhor Diretor gesticulava para os guardas face à catástrofe, gritando: “-
Tirem-nos do palco, empurrem-nos, empurrem-nos” e até o guarda junto ao
presépio, com risco para a integridade do Menino Jesus, agarrou pelas calças um
mais afoito já quase em cima do palco, não sem que outros já quase lá pisassem
mesmo as tábuas, numa enxurrada em que o mar invadia a terra com consequências
imprevisíveis.
Eis
se não quando, agarrando resolutamente o microfone, aquela mais matrona na
dança, mas reconhecidamente quem mandava ali, gritou: “- Silêncio e todos para
baixo, quem tem mulher na nossa prisão?”
“-
Eu, eu e mais eu…”, os dedos iam crescendo no ar à medida que o silêncio se ia
instalando até que ela, ali reconhecida como suprema autoridade, concluiu: “-
Pois amanhã falamos com todas elas e ou vocês se portam bem ou quando forem de
precária não há nada p’ra ninguém…!!”
Foi
quanto bastou para que o silêncio ainda em desassossego se acabasse por
instalar, uma imensa salva de palmas submergiu a multidão, o espetáculo
recomeçou ao ritmo só faltam 10 dias para ir de precária, e o Menino Jesus
manteve o seu sorriso indecifrável, mas feliz!
Paz
na prisão aos homens de boa vontade que vão de saída precária no Natal!
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