segunda-feira, 27 de julho de 2020

FR. MATEUS PERES OP - (Com a devida vénia ao jornal Público)


QUEM FOI FREI MATEUS PERES, O.P.?
Frei Bento Domingues, O.P.

1. A crónica projectada para este Domingo – a última antes das férias – inspirava-se numa passagem bíblica do Primeiro Livro dos Reis. É muito bela. Salomão reconhece os seus limites para ser um bom governante. Pede a Deus um coração cheio de entendimento para governar o Seu povo, para discernir entre o bem e o mal. Esta oração agradou ao Senhor, que lhe disse:
«Já que me pediste não uma longa vida, nem riqueza, nem a morte dos teus inimigos, mas sim o discernimento para governar com rectidão, vou proceder conforme as tuas palavras: dou-te um coração sábio e perspicaz, tão hábil que nunca existiu nem existirá jamais alguém como tu»[1]. Quem dera que não só D. Trump e Bolsonaro, mas muitos outros governantes, renunciando ao espírito de dominação, fossem guiados por um coração sábio, perspicaz e hábil!
Quando ia começar a crónica deste Domingo, tive de mudar o seu rumo. Morreu, na passada segunda-feira, um confrade do Convento de S. Domingos que nos acolhe, o Frei Mateus Cardoso Peres (1933-2020). Pelo muito que lhe devo, vou deixar, aqui, algumas palavras de agradecimento.
2. Nasceu em Lisboa numa família profundamente cristã. Tinha 9 irmãos e licenciou-se em Direito, em 1956. Nesse mesmo ano, entrou na Ordem dos Pregadores, no Convento dos Dominicanos de Fátima que já frequentara como estudante. Estudou filosofia e teologia no Centro Sedes Sapientiae de Fátima e teologia em Otava (Canadá). Foi ordenado presbítero em 1962.
Com o seu consentimento, permito-me seguir o esboçou do seu itinerário feito por Luiza Sarsfield Cabral [2].
Foi membro activo de um grupo de grande relevo na renovação do catolicismo português. Figura internacional da Ordem dos Pregadores, é um dos teólogos de contribuição mais original na renovação da teologia moral na Igreja portuguesa no pós-Concílio Vaticano II.
Pertenceu a uma geração de católicos que, marcada por preocupações políticas e sociais, constituiu uma referência obrigatória na década de cinquenta-sessenta em Portugal. João Bénard da Costa retracta-a do seguinte modo: «Na JUC, entre os “contestatários” havia dois ramos distintos: o dos “sociólogos” (mais bem “comportados” e menos “intelectuais”) e o dos “vanguardistas”, quer em posições políticas, quer no interior da Acção Católica, quer numa predominante atenção aos fenómenos estéticos mais inconformistas. Esses eram (éramos) [...] o Nuno Peres (Frei Mateus Cardoso Peres OP), o Nuno Portas, o Nuno Bragança, o Luís Sousa Costa, o Pedro Tamen, o Alberto Vaz da Silva, o M. S. Lourenço, o Cristóvão Pavia, o José Escada, o Manuel de Lucena, o José Domingos Morais, o Duarte Nuno Simões – o Mário Murteira e o Carlos Portas eram a charneira entre os dois grupos»[3].
Com alguns entusiastas desse grupo, Frei Mateus Peres participou na criação do CCC (Centro Cultural de Cinema – Cineclube de Universitários para uma Cultura Cinematográfica Cristã), que teve o seu início em Novembro de 1956.
Foi colaborador em O Tempo e o Modo, Revista de Pensamento e Acção – importante espaço de diálogo e confronto de diferentes sensibilidades culturais, políticas e religiosas –, tratando do significado histórico e impacto do Concílio Vaticano II (1963-1965), no aggiornamento interno da Igreja e na sua relação com o mundo contemporâneo. A problematização teológica, introduzida em Portugal por Frei Mateus, nos seus textos de O Tempo e o Modo[4], é hoje considerada, pelos analistas dessa época, como um contributo único para a compreensão da novidade doutrinal e pastoral do Vaticano II[5]. O recurso ao pseudónimo Manuel Frade, com que assinou o último destes artigos, revela as dificuldades e limitações que existiam na Igreja portuguesa, então muito à margem desse acontecimento mundial.
Fez parte da primeira direcção internacional da famosa revista teológica Concilium, editada em português pela Livraria Morais Editora (1965), devido ao empenhamento de A. Alçada Baptista. Era esta a forma de Portugal e o Brasil terem acesso à grande renovação teológica pós-conciliar.
Pertenceu ainda à equipa que, no âmbito das actividades dessa revista, lançou entre nós os «Colóquios para Assinantes», destinados sobretudo a equacionar as questões da Igreja portuguesa à luz de um Concílio por ela praticamente ignorado.
Frei Mateus Peres dedicou muito da sua vida à renovação da teologia moral, na investigação e no ensino: a partir de 1963, no Studium Sedes Sapientiae dos dominicanos, em Fátima; de 1967 a 1972, na Faculdade de Teologia de Otava (Canadá). Regressado a Portugal, continuou a sua dedicação à teologia, no campo da Moral, no Porto (ISET, ICHT, UCP) e, finalmente, na UCP, em Lisboa.
É autor de alguma colaboração em obras colectivas e de inúmeros estudos na área da teologia moral, em revistas como Humanística e Teologia, Communio, Cadernos ISTA e outras. Muito apreciado como professor e conferencista, investigou as razões históricas e teóricas que contribuíram para a «má reputação da moral» (sic).
Ao fazer da ética uma construção do sujeito – em «uma visão teológica que faça justiça ao sujeito» –, deu um contributo decisivo para a superação de dois persistentes dilemas da teologia e filosofia moral, subjectivismo/objectivismo e autonomia/teonomia. Esta proposta encontra-se na sua obra fundamental, apresentada como tese de doutoramento em 1987, O Sujeito Moral: Ensaio de Síntese Tomista, 1992.
3. A nível dos Dominicanos, viveu em várias comunidades em Portugal e no estrangeiro. Assumiu vários cargos institucionais para que foi eleito: provincial em 3 mandatos, várias vezes prior conventual, mestre de estudantes, sócio do Mestre Geral para a vida intelectual, o que o obrigava a viver em Roma e a visitar vários países, de vários continentes.
Acompanhou o Mosteiro das Monjas do Lumiar, onde se desenvolveram as célebres Conferências do Lumiar. No mundo das congregações religiosas, foi presidente de CNIR.
Tendo desempenhado várias funções de relevo, ao nível da Ordem dos Pregadores, para ele, assumir o poder era o encargo de servir. Não apenas de servir segundo o seu critério individual, mas segundo as instituições democráticas que podem ser adaptadas e nunca postas em causa.
Compreendeu, na prática, a resposta de Deus à oração de Salomão: exerceu o poder com um coração sábio, perspicaz e muito hábil.

26. 07. 2020


[1] Cf. 1Rs 3, 1-15
[2] Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Volume VI, pp. 211-213
[3] João B. da Costa, «Meus tempos, meus modos» in Diário de Notícias, «Revista de Livros», 9/11/83,1
[4] A Igreja entre Duas Guerras (TM, 16-17, 1964), Tradição e Progresso (TM, 18, 1964), A 4ª Sessão: O Concílio e a Igreja (TM, 32, 1965).
[5] Cf. tese de licenciatura em Teologia de Nuno E. Ferreira, in Lusitania Sacra, 2.ª série, 6, 1994, pp.129/294

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