Um abraço
Nelson
Benedicamus
Domino
Mal refeito da
longa viagem e de todas as emoções coleccionadas nesse dia, dou comigo numa
camarata com algumas trinta camas. Um enxame de “estorninhos”, que mal podiam
com as malas do enxoval, esforçava-se por conseguir um espaço junto da cama que
lhes fora destinada. Os veteranos prontificavam-se a ajudar e ensinar a
estender os lençóis e os cobertores, já etiquetados com o número que previamente
fora atribuído. Coubera-me o 35.
Ainda tens merenda? Era a pergunta
sacramental, na mira de saldar o esforço despendido. A merenda era sempre
abundante, porque a mãe não queria que nada faltasse ao filhinho que pela
primeira vez deixava a casa paterna. Viagem longa e demorada. E a primeira foi
numa madrugada orvalhada de Outubro em que até as estrelas e a mentirosa lua
vieram juntar-se às lágrimas da minha mãe. O relógio da torre deixava cair as
cinco badaladas. Eram cinco da manhã e eu já não iria ouvir as cinco da tarde
do relógio da minha aldeia, que anunciariam a minha chegada a uma vida que não
sonhara mas que aceitara. Cinco léguas me separavam da estação do
caminho-de-ferro. Partia tranquilo, levando por companhia um veterano, o meu
primo e amigo Álvaro Milagre. Uma camioneta de carreira ruidosa e poeirenta,
com um cobrador rabugento e ensonado, afastou-me do lar paterno e, de solavanco
em solavanco, lá se quedou no pequeno largo da estação de caminho-de-ferro de
Celorico da Beira. Do lado de dentro do postigo, mais um funcionário ensonado e
rabugento, perguntava o meu destino. Caxarias!
Trocados os escudos por uma guia de marcha para um sítio que eu só
imaginava, resguardo-me na gare à espera do monstro de ferro. Ali, homens e
mulheres com grandes malas, cestos e sacos, aguardavam o mesmo que eu e olhavam
de revês para o meu fato preto, medindo-me de alto e baixo. Eu carreguei-me de
receios e de solidão, pois era a primeira vez que era enviado para o mundo,
tendo por destino ser padre. Sobraçando por certo as mesmas preocupações,
deparo-me com outro menino de negro vestido, fazendo guarda à sua bagagem. Na
ânsia de encontrar companhia hesitei em questioná-lo, mas atrevi-me. Também vais para o seminário? A resposta
foi aquela que eu quis ouvir e o Chico Saraiva, natural de Freches, também
tinha tirado o bilhete para Caxarias. O silvo da locomotiva fez-se ouvir lá
para as bandas do Baraçal, anunciando a chegada iminente. Minutos volvidos e
expelindo fumos por todos os cantos, o comboio arrastava-se. Das janelas de uma
das carruagens várias cabeças acenavam na nossa direcção. É para aqui! Ajudaram-nos
a subir as malas do enxoval e instalamo-nos familiarmente. Os interrogatórios
sucederam-se e depressa nos tornámos amigos, irmãos e cúmplices. Antes que a
memória me atraiçoe, quero recordar aqui os nomes: José Lourenço, António Alves Lines, José da Cruz Fernandes, Amadeu
Pereira Valério, Orlindo Gonçalves Igreja, Manuel José Braz, Manuel Orlindo
Melro, Manuel Salvado, o Jesuíno, o Fausto da Paixão Gomes e mais os entrados em
Celorico - Álvaro Amaral Milagre, Nelson
Amaral Veiga e Francisco Soares Saraiva.
Demarcado o
território dentro do comboio, seguimos em festa de estação em estação, a
admirar um percurso que haveríamos de memorizar, tantas foram as vezes que
alguns de nós o repetimos. E, ironia do destino, muito embora o comboio de há
sessenta anos já não seja o mesmo, é o mesmo traçado ferroviário que delimita
os terrenos onde eu construí a minha casa, numa terra que me adoptou e eu adoptei.
As janelas do comboio já não se abrem como outrora, e eu já não posso ver se me
acenam como nós acenávamos às pessoas ao longo do percurso. Aqui, na linha da
Beira Alta, entre a estação ferroviária já encerrada de Contenças (Vila Nova de
Tazem) e a de Mangualde, perto da entrada do primeiro túnel, eu vou ouvindo e
vendo o comboio e recordando as longas viagens dos meninos seminaristas. Tão
pouco nos esquecíamos de, à passagem por Mortágua e já com o trem em andamento,
questionar os circunstantes que ficavam do lado de fora, quem matou o juiz?... A resposta era sempre a mesma, carregada de
raiva e ódio e que eu aqui não vou repetir, mas que consubstanciava uma ofensa
às nossas mães. E aquela emblemática gare do Luso, hoje também praticamente
desactivada, em que a voz esganiçada das vendedeiras despertava a nossa atenção!...
Arrufadas de Coimbra e cavacas do Luuuuuuuso!...
ou então: bilha e água!... E por
dez tostões lá comprávamos nós uma bilha de barro, com um litro de água de
duvidosa proveniência. Os mais atrevidos faziam pontaria com ela às paredes do
próximo túnel, enquanto os mais conservadores faziam questão de a levar intacta
até ao destino.
Mais uma paragem
e um movimento ferroviário fora do comum. De um altifalante roufenho ouve-se: Estação de Pampilhosa - acaba de dar
entrada na linha número um da Beira, o comboio regional procedente de Vilar
Formoso e com destino à Figueira da Foz. Os passageiros com destino a estações
até Porto ou Lisboa, devem mudar de comboio. Em Pampilhosa, tínhamos uma
longa espera de mais de duas horas, aguardando o comboio procedente do Porto e
que nos levaria a Caxarias. Vendedores ambulantes assediavam-nos tentando
convencer-nos a comprar. E a quitanda que tinham pela frente, ofertava os
produtos mais diversos, que iam de navalhas a correntes com porta-chaves, carteiras,
esticadores para os colarinhos, minúsculos espelhos de bolso, redondos, que no
verso tinham a gravura do Travassos, do Águas, do Costa Pereira, do Vasques, do
Pedroto… Havia sempre negócio!...
Alinhávamos as
malas no cais da Linha do Norte e íamo-nos revezando até à cantina, no extremo
da gare onde, por dez tostões, se saboreava o indispensável pirolito, roídos de
inveja por não podermos sacar a pequena bolinha de vidro, que tanto jeito dava
para jogar ao berlinde.
-Atenção senhores passageiros!... Dentro de
momentos vai dar entrada na linha número um do Norte, o comboio procedente de
Porto Campanhã, com destino a Lisboa Santa Apolónia!...
Ia começar a
segunda etapa. E como era longo aquele comboio! Nas carruagens da retaguarda
havia braços fora das janelas, onde jovens enfiados nos seus fatinhos pretos
acenavam ao grupo que aguardava expectante no cais.
- Ena tantos!... dizia eu para comigo na
primeira viagem.
E eram mesmo
muitos. Vinham do Minho, de Trás os Montes, do Douro, da Beira Douro e
concentravam-se numa só carruagem, em claro desafio à soldadesca, que nesse dia
também se juntava para o regresso aos seus quartéis. Carruagem enorme, onde num
extremo pontificavam magalas, e no outro seminaristas. Hei-de recordar o
sentido oportuno de um nosso companheiro, o Faustino, que respondia sem pudor
às provocações dos soldados. O Faustino era oriundo da zona do Porto, e eu admirava
nele o seu ar cómico e um elevado sentido de oportunidade. Recordo que numa
peça de teatro, das muitas que se encenavam em Aldeia Nova, uma houve, encenada
pelo açoriano Medeiros, aquele que ganhara a alcunha de “Napicho” porque, recusando-se a puxar à bomba que elevava a água,
dizia com o seu acentuado sotaque açoriano: “Na puxo, na puxo”. A peça em questão tinha por nome As aventuras do Calabrês e ao Faustino
coube a interpretação duma personagem que dava pelo nome de Fausto Camolas
Barbaças. O Faustino também abandonou o seminário, constou-me que fora oficial
da GNR e, com o posto de tenente, o Zé Espirito Santo tê-lo-á visto à
distância, ao que suponho num campo de futebol e ainda lhe gritou : Ó tenente
Camolas!... Nada mais sei e constou-se-me que terá falecido. Oxalá que não.
Todavia, hei-de recordar sempre o seu sentido de oportunidade numa dessas
longas viagens entre a Pampilhosa e Caxarias, num facto que terá acontecido
após paragem na estação de Coimbra B.
Ali o movimento de passageiros também era grande e entrou para a nossa
carruagem mais um grupo de soldados. Um deles, ao deparar-se com tantos meninos
vestidos de preto, entoou em tom litúrgico:
Dominus vobiscum!... e de pronto, o Faustino responde no mesmo tom: És o maior burro que eu tenho visto!...
O pobre do magala, não contava por certo que lhe surgisse um acólito tão
repentista, com resposta tão certeira e bem direcionada.
-Aqui, Caxarias!... gritava alguém
fora do comboio. Num inquestionável espírito de entreajuda, os mais velhos
ajudavam os mais novos a transpor as malas para fora do trem e a estação de
Caxarias ficava povoada de meninos seminaristas. Uma velha carrinha verde de marca Ford, mais tarde substituída por uma WW pão de forma azul,
conduzida pelo Irmão Ezequiel, carregava as nossas bagagens e alguns de nós,
voltando depois ao encontro dos restantes para nos levar até à velha casa de
Aldeia Nova.
Distribuída a
cama e arrumadas as malas, pequenos grupos se espalhavam pelo recreio, uns
tomando conta de uma nova realidade e outros constatando as alterações
verificadas durante os três meses das férias grandes. O toque agudo de uma
sineta convidava-nos a uma concentração junto à porta do refeitório. Em quatro
alas, mais novos a um lado e mais velhos a outro, tomámos a direcção da capela.
Era a hora do terço. Finda a recitação monocórdica das ave-marias a saída foi
em silêncio até ao refeitório. Ali, o director ia distribuindo as mesas
compridas com uma pedra mármore enegrecida pelo uso, a servir de toalha. Às
palmas do director, fez-se silêncio. Já quase desprovido de protecção capilar,
o director era um homem austero, que ditava as ordens sob um forte sotaque da
Beira Baixa. Escutámos as recomendações, que foram muitas, e fiquei a saber que
durante a refeição só se poderia falar em dias de Benedicamus Domino.
2 comentários:
Meu caro Nelson
De vez em quando visito o nosso blog na esperança de encontrar uma pérola!...
Desta vez calhou! Podia ter escrito o mesmo texto com um estilo mais pobre e outros nomes mas a vivência foi a mesma. Encontrei esta pérola ao chegar de uma viagem que fiz à minha aldeia. Em Mirandela tive um encontro inesperado...o azar faz bem as coisas...
Na última quinta feira, dia vinte, entrei num banco em Mirandela deparei com um jovem de 77 anos, da minha idade. Lancei um bom dia geral. O jovem de cabelos brancos voltou-se e fixou-me longamente e compreendi que ele fazia a mesma pergunta que eu: “de onde o conheço?” .
Foi a vez dele de tratar dos seus assuntos e ouço o empregado chamar: Manuel Alberto Rodrigues!...
Repeti olhando para ele: Manuel Alberto Rodrigues?! Pensei mas não disse “Felisteu”?
Ele olhou para mim mais concentrado e disse... com voz forte , tal como um cigano de Macedo quando vai
a Mirandela: caramba, caramba, caramba... (pelo menos o Celestino compreende).
Disse Fernando, e pensou certamente “Rebelo”! O abraço foi longo e o banqueiro chamou outro cliente.
Almoçámos juntos no melhor restaurante de Mirandela “o Gerês”. Foi ele quem pagou!... (1)
Todos os empregados vinham saudà-lo : Senhor Rodrigues, hoje temos o seu prato preferido!
O patrão (chefe com a sua touca branca) vem da cozinha para saudar o Senhor Rodrigues e propor-lhe uma sopa como ele gosta, para preparar o estomago. É rarissimo comer caldo e parece-me que nunca o comi ao almoço, mas como era convidado e recebi uma boa educação, onde vós sabeis, comí a sopinha que na verdade estava uma delícia!
Separámo-nos três horas depois mas o Senhor Rodrigues e meu amigo Manuel Alberto aceitou vir almoçar comigo num restaurante mais modesto, comida menos requintada mas preparada com amor e produtos genuinos là dos meus lados, “Rei Orelhão” a 5 kms do Franco. Comemos e bebemos bem as duas vezes, conversàmos muito e recordàmos mais uma vez a primeira viagem de comboio, com o Francolino e etc... Nessa viagem começou a nossa amizade que ainda dura... Um abraço para aqueles que se recordam de mim. Fernando Vaz
(1) A última vez que tinha estado com o Manuel Alberto foi há mais ou menos 20 anos em Macedo de Cavaleiros onde ele ainda tem hoje uma agência de seguros. Telefonei-lhe para que viesse almoçar com os velhos amigos. Respondeu-me que andava à caça, que almoçassemos, que viria tomar o café connosco. Assim foi! Chegou e conhecêmo-lo porque não esperavamos mais ninguém. Comeu a sobremesa e tomou um café. Levantei-me para ir pagar... surpresa do chefe: já está pago.
Como reagir quando ouço o Eduardo Bento proclamar...estás a ver Fernando que tinha razão quando te disse para o chamares e talvez ele pagasse o almoço?!...
Não sei se o Eduardo Bento se recorda, mas nesse dia o Manuel Alberto queria que passassemos por Corujas, sua terra natal, para ir buscar um saco de castanhas para cada um...
P.S. já não sei como se mandam os comentários, mas vou tentar...
Um abraço
Fernando Vaz
Meu Velho Amigo e Companheiro!...
Como é bom sentir-te por aqui. Sinto-me feliz por, aquele arrazoado que chamas pérola, ter motivado o teu reencontro com este espaço. Bem-hajas.
Podes contactar-me parta o meu email nelsonamaralveiga@gmail.com
Forte Abraço
Nelson
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