domingo, 1 de outubro de 2017

Fernando, eu me confesso Pessoa.

Por: Fernando Maria Faustino 
setembro de 2017

              Que linda tarde de setembro! O sol escalda e ilumina intensamente a cidade de Lisboa. Dentro do escritório do quarto andar da Rua dos Douradores, o calor é sufocante e o ar quase irrespirável. Aproximo-me da janela. Inquieto e nervoso, lanço um olhar atento sobre a cidade. Pessoas, vestidas de cores leves, caminham apressadas por uma urgência qualquer; outras deambulam vagarosas sem terem, aparentemente, uma tarefa a cumprir ou uma vida a realizar. O rumor do exterior esbate-se nas vidraças transparentes e relembro Cesário Verde. Sinto-me aprisionado numa vida que não quero. Ser correspondente comercial não é minha ambição, apenas uma necessidade. Não reclamo sinecuras ou outros rendimentos, pois aprendi com Ricardo Reis a viver a simplicidade da aurea mediocritas. Mas esta vidinha, consumida por traduções e retroversões de natureza comercial e regulada por imposições de horários rígidos com a precisão de um maquinismo futurista, banaliza e anula a existência humana. Por isso, a angústia, o tédio e a abulia enraízam-se na alma. Freneticamente, desço as escadas. Alheio à multidão, dirijo-me compulsivamente ao Café Martinho da Arcada. Sento-me à mesa, a mesa do Fernando — como é conhecida — e aguardo o lenitivo para a alma. O empregado, num olhar cúmplice, lança um cumprimento maquinal e enche o cálice de aguardente. Inicia-se então a luta entre a resistência estoica à bebida em busca da autodisciplina necessária — o médico e o fígado já tinham feito sérias advertências — e o desejo epicurista de fruir tão precioso néctar. Já que a vida é efémera, aproveite-se o momento e, de preferência, antes carpe horam que carpe diem. No fundo, é a quase indecisão entre o enlaçar e desenlaçar as mãos. Tomo o cálice nas mãos com a devoção de um ritual sagrado e bebo delicadamente a oferta de Baco. As papilas gustativas, ávidas, erguem-se numa ode triunfal e propiciam um turbilhão de sensações que povoam o corpo e a alma. Só Walt Whitman e Campos compreenderão o que em mim está sentindo é a alegre inconsciência libertadora da dor de pensar. Qual ataraxia, qual ausência de perturbação! Nem a felicidade do gato que brinca na rua me causa inveja. Se Lídia perde a mão do amado, eu perco-me nos vapores dionisíacos conducentes a uma interpretação cética da realidade que aniquila vontades e convicções. Reduzo-me à negatividade niilista do que sou ou fui, do que poderia ter sido e não fui. Cá estou mais uma vez com a mania das análises introspetivas. Paradoxalmente, sinto-me feliz, livro-me dos enleios obsidiantes da timidez e consigo alcançar essa coisa que é linda. 2 Hoje combinei encontrar-me com a Ophélia Queirós, a minha namoradinha, no Cais do Sodré para fazermos a sigthseeing trip no elétrico da Carris. Todavia, tenho de passar primeiramente pelo Príncipe Real — atualmente aluguei aí um quarto — para tomar um banho refrescante e mudar de roupa, se bem que a indumentária seja sempre invariável e formal. Saio do quarto e desço a Rua da Misericórdia. Perceciono com todos os sentidos atenta e objetivamente tudo o que me rodeia, talvez porque ame Cesário Verde, talvez porque Bernardo Soares e Alberto Caeiro têm falado muito comigo ultimamente. Ninguém é imune a influências literárias. À minha frente ergue-se a estátua de Camões. Não fosse o egrégio épico e o que seria a minha obra? Mas a minha admiração é também inveja, sentimento inconfesso e mesquinho. A sua grandeza faz sombra aos arbustos que querem ser árvores. Infelizmente não é sonho, mas realidade. Eu sou a árvore das árvores, eu sou o Supra Camões encarnado na antítese viva, lúcida e poética. Camões canta o Portugal do passado, eu canto o Portugal do futuro; ele canta o império material, eu o espiritual; os seus heróis não são eleitos nem predestinados por Deus, ao contrário dos meus. Li Edgar Allan Poe, John Milton, Alfred Tennyson, Baudelaire, Mallarmé, Vieira, Antero, Camilo Pessanha e tantos outros que Camões jamais lerá. Ele não tinha biblioteca, estudava as antologias de Rodhiginus, Voltarenus, Perrotus, Catari…, ou julgam mesmo que Camões andava pelo Oriente e pelas Áfricas com uma biblioteca atrás de si? Claro que não! A Ofelinha diz mesmo que sou demasiado certinho para ter estes pensamentos tão pretensiosos e perversos, todavia, não sou eu que o digo, é um outro que habita em mim e, assim, é fácil declinar qualquer responsabilidade. Bem, chega de presunção e vaidade pessoal, características nas quais não me penso nem constam no universo dos 127 nomes, entre pseudónimos, heterónimos e semi- -heterónimos da lista apresentada por José Cavalcanti Filho, pretensiosismo dos meus estudiosos ao quererem limitar-me a um número definido. Impossível! Sou infinitamente múltiplo. Meto pela Rua do Alecrim e um grupo de crianças, num alvoroço inocente, anima a tarde pachorrenta. Mergulho na memória longínqua dessa infância feliz que não tive, esse paraíso irremediavelmente perdido. É um misto de saudade e nostalgia, não a saudade melancólica e tristonha de Teixeira de Pascoaes até porque a minha evocação é alegria e também le temps perdu de Proust. Chego ao Cais do Sodré e a voz da Ofelinha traz-me à realidade. Ali está ela,19 anos, pequenina, cabelo curto, olhos negros e vivos. Conheci-a no escritório e a sua inocência interessou-me. Quis declarar-me e, apesar da minha pátria ser a língua portuguesa, não consegui encontrar nem o léxico nem a sintaxe nem a semântica para formular uma simples frase. Socorri-me, então, da célebre expressão de Hamlet «Oh querida Ofélia!» No dia seguinte, beijei-a apaixonadamente por um breve instante. Nunca mais voltei a vivenciar essa experiência genuína, sensual e inocente, pois tenho a obsessão de rejeitar 3 toda a espontaneidade de emoções e sentimentos, por conseguinte, procedi à elaboração estética do beijo, trabalhando-o, elevando-o a um plano puramente intelectual. Desse beijo, restam apenas representações mentais assim como de toda a relação que mantemos. Esta pulsão incontrolável de tudo intelectualizar fez de mim e dos outros que em mim vivem um fracasso nos amores. Salva-se o Ricardo Reis que, por benemerência de Saramago, o recriou imperfeito, volúvel nos amores, isto é, humanizou-o ao envolvê-lo com Lídia, empregada do Hotel Bragança, e que nada tem a ver com as Lídias, Neeras ou Cholés convencionais das odes. Esta Lídia, sim, sensual e sem preconceitos enlaçou-lhe a mão, o corpo e a alma e deu-lhe um filho cuja paternidade não assumiu. E ainda teve a ousadia de pedir a jovem Marcenda Sampaio em casamento. Enfim, todos os outros heterónimos — e eu próprio — são flores sem fruto. Onde está aquele Reis racional e clássico que eu criei? Chega, lá estou mais uma vez a divagar sobre a minha pluralidade. Já quase não me suporto com tanta autoanálise e a propensão para o egotismo exacerbado. — Boa tarde, Ofelinha! Sempre vamos de elétrico até Belém? A minha pergunta soa a consentimento tácito. Atiro-lhe um beijo paternal ao que ela corresponde com uma ternura infindável do seu olhar aveludado. Ao contrário de mim, tudo nela é espontâneo e transparente. As viagens de elétrico são a nossa predileção, são mesmo os momentos mais felizes que partilhamos, até porque temos em comum uma grande paixão por esta Lisboa de sete colinas luminosas e de gente secular. Sentamo-nos, frente a frente, no banco esverdeado do elétrico e, ocasionalmente, quando o guarda-freio muda de direção, as rodas chiam nos carris e os solavancos bruscos propagam-se secamente por todos os passageiros, quais figuras desconjuntadas. Embato bruscamente contra o meu Bebé (nome carinhoso dado por mim a Ofélia) e desfaço-me em desculpas britânicas. No fundo, foram as únicas vezes em que os nossos corpos se sentiram amplamente. Já passámos Alcântara. A vista é desafogada e a paisagem soberba. Embarcações multicolores deslizam preguiçosamente na superfície espelhada do Tejo azul. Porto Brandão ao fundo e, felizmente, ainda não construíram aqui nenhuma ponte. Ofélia, não te oiço. Eu sou a minha própria paisagem, sou o objeto da minha observação, procuro conhecer-me e desconheço-me, não sou quem se vê nem se pensa. Estou perdido e angustiado. Chegámos a Belém. De tanto pensar, tenho a alma dorida. Eu não fiz a viagem de elétrico, estive ausente e solitário como em todas as viagens que faço em mim. Ofélia, sim, feliz e jovial, Ofélia contemplou a beleza de Lisboa.

1 comentário:

Francisco Torres disse...

Muito bem escrito. Abraço.