sábado, 1 de julho de 2017

FRANCOLINO GONÇALVES, 1943-2017



Uma crónica de Alexandra Lucas Coelho, que acaba de regressar de Israel e da Palestina, onde esteve em reportagem para o próximo número da VISÃO História. A edição estará nas bancas na primeira semana de julho

Ao longo de 15 anos, o meu amigo em Jerusalém e eu mantivemos este pacto: um dia gravaríamos uma conversa sobre aquilo que nos rodeava. Semelhante a muitas que tínhamos, só que dessa vez para que outros pudessem ouvi-lo também. Quando seria isso possível? Talvez ele soubesse que nunca, eu acreditava que um dia.
Não vai acontecer. Francolino José Gonçalves, frei Francolino, o meu primeiro amigo em Jerusalém, morreu anteontem de madrugada, quinta-feira, 15 de junho, horas após eu partir de lá. Era o português que no último meio século melhor conheceu israelitas e palestinianos, e uma das pessoas mais extraordinárias que conheci: um erudito com gargalhada de criança, um transmontano na mais difícil das cidades, um exegeta do Velho Testamento de coração no presente, nas trevas deste terceiro milénio. Talvez por tudo isso sabia falar às plantas, aos bichos, à gente como se cada ser vivo fosse o milagre no horror diário. E se eu, ateia, tento acreditar nisso, é também por causa dele.
Um dia, no fim dos anos 1960, um frade dominicano nascido em Corujas, Macedo de Cavaleiros, entrou na Escola Bíblica e Arqueológica Francesa, encostada aos muros da Cidade Velha de Jerusalém, a dois passos da mais bela das portas, a de Damasco, e desde então aquela foi a sua morada. Estudara e continuou a estudar teologia, filosofia, filologia, hebraico antigo, história da antiguidade, história oriental. Professor de milhares de pessoas, considerou-se até ao fim um estudante, contou-me um jovem frade que o acompanhou nestas últimas, difíceis semanas. Francolino morreu de um cancro galopante. Quatro quimioterapias entre o começo do inverno e o fim da primavera.
Conhecemo-nos no auge da Segunda Intifada, abril-maio de 2002. Eu aterrara ali de forma inesperada, indo a caminho de Alexandria por causa da biblioteca. Enquanto voava para o Egipto, tanques israelitas invadiram as cidades palestinianas, na sequência de atentados suicidas. Então, mal aterrei no Cairo, Margarida Santos Lopes, editora de Internacional no Público, ligou a perguntar se eu não podia ir para Jerusalém em vez de Alexandria. Nem cheguei a sair do aeroporto, apanhei o voo seguinte para Israel, depois um sherut (carrinha) para a Porta de Damasco, com o nome do hotel que Margarida me sugerira. Foi assim que desde a primeira madrugada, ignorante de tudo, e portanto acreditando que tudo era possível, fui vizinha de frei Francolino. Porque esse hotel, com uma esplanada que era um ponto de encontro para muita gente em Jerusalém Leste, fica em frente ao convento-escola dos dominicanos. Francolino e eu tínhamos a mesma morada: Nablus Road. O sherut deixou-me junto aos muros do convento.
Quem me falara num dominicano português em Jerusalém foi Adelino Gomes, que conhecera frei Francolino em 1987, durante a Primeira Intifada. Fez então com ele uma emissão em direto para a RDP, com Francolino a comentar a Missa do Galo da Basílica da Natividade, preciosidade que espero que esteja nos arquivos da rádio. Já não me lembro em que dia liguei a esse tal dominicano, talvez antes da minha primeira tentativa de entrar em Belém, que continuava cheia de tanques, como todas as cidades palestinianas. Cercos, recolher obrigatório, palestinianos a explodirem-se em autocarros, operações punitivas do exército israelita que resultavam em matanças, a Basílica da Natividade literalmente refém, sob tiroteio. Algures no meio daqueles dias liguei a frei Francolino e ele convidou-me a atravessar a rua, tocar na campainha dos dominicanos, primeira de tantas vezes. A hora favorita dele era antes do almoço, partilhávamos a refeição com toda a gente na sala comunitária, depois caminhávamos entre as árvores do parque da escola, que ele conhecia uma por uma. E a partir de cada árvore ora a conversa ia para Trás-os-Montes, ora para as raízes do que nos rodeava. Eu ia, vinha, Belém, Ramallah, Nablus, Jenin, Hebron, Gaza, quando era possível atravessava a rua para visitar Francolino. E ele saía dos livros proféticos a que dedicou décadas, e descia para me acolher com uma disponibilidade que só alguém como ele daria a uma novata como eu. Novata nessa árvore de todo o bem e todo o mal que é Jerusalém. Francolino: a curiosidade de um pensamento vivíssimo; lucidez aguda, jamais cínica; coração no lugar, e humor. Aos meus empedernidos olhos de não-crente, a igreja era um lugar melhor por causa de Francolino. O mundo era um lugar melhor. E ele morava ali como um segredo.
Fomo-nos vendo sempre que voltei em reportagem. Em 2005, propus ao Público ir para Jerusalém como correspondente por meio ano. Aí tornei-me mesmo vizinha de Francolino, porque aluguei um quarto com uma varanda em Musrara, bairro junto à porta de Damasco, do outro lado da invisível Linha Verde, que separa os dois lados de Jerusalém. Continuava a atravessar a rua para visitar o meu amigo. Então houve encontros fora do convento, passeios. Uma vez Miguel Portas estava de visita a Jerusalém, apresentei-os, jantámos os três, eu a ouvir a conversa daquele ateu com aquele dominicano, o tanto que sempre têm em comum pessoas como foram o Miguel e o Francolino, independentemente dos deuses. Outra vez, no São Martinho, a então diplomata portuguesa na Palestina, Vera Fernandes, fez um magusto em casa, Francolino propôs que fôssemos juntos, muito nos divertimos. Ao escrever isto fui confirmar a data à nossa correspondência no Gmail desde 2005 e percebi que tão cedo não conseguirei relê-la.
Também não reli agora a história que fiz sobre escola dos dominicanos em Jerusalém, que remonta ao século XIX, e a sua fabulosa coleção de fotografias do Médio Oriente. Claro que frei Francolino aparece por lá, como outros dominicanos, e fico feliz por essa história, e portanto Francolino, estarem no meu primeiro livro. Mas o nosso pacto manteve-se, porque ali não se tratava de falar do presente que nos rodeava. Se Francolino nunca o quis fazer, creio, foi para que nada do que era a sua opinião pudesse recair sobre a escola.
No ano passado, planeei passar o verão em Jerusalém, e escrevi a frei Francolino ainda em março, para saber das datas dele. Ele costumava passar sempre o verão em Trás-os-Montes, eu queria organizar-me de modo a vê-lo. Mas calhou ele responder-me de Lisboa, onde tinha ido por razões académicas, creio que uma banca de doutoramento. Então fui visitá-lo ao Convento de São Domingos, a morada dos dominicanos em Lisboa. Era uma manhã linda de primavera. Eu estava a concluir a escrita de Deus-Dará, um romance com uma estrutura de sete dias, acabava de reler o Apocalipse, tinha tantas perguntas. Falámos das muitas versões, traduções, interpretações, ele recomendou-me que lesse várias porque não havia uma, a certa. Não havia uma Bíblia certa, a Bíblia era infinita. Tudo no pensamento de Francolino era movimento, abertura.
Ao longo destes 15 anos, em diferentes circunstâncias, da despenalização do aborto à visita do papa Bento, publiquei vários textos críticos para a ortodoxia da igreja católica. Frei Francolino era um leitor online do jornal onde eu escrevia, várias vezes me dava conta das suas leituras. Nunca, em momento algum, senti que aquilo que nos distinguia fosse um obstáculo ao nosso diálogo. Ao contrário, por mais que conhecesse a sua permanente curiosidade, ele conseguia sempre surpreender-me (quando leu notícias sobre O Meu Amante de Domingo, um romance nada católico, escreveu-me entusiasmado a dar parabéns).
No começo do verão de 2016, mal cheguei a Jerusalém e antes que ele partisse para a sua temporada transmontana, visitei-o e pela primeira vez passeámos juntos dentro da Cidade Velha. Na Via Dolorosa um rapaz que morava ali convidou-nos a tomar um café na sua casa, como tantas vezes acontece. Nunca tinha estado no meio de uma família palestiniana com Francolino. Muita gente que passa tempo em Jerusalém vai endurecendo de ouvir histórias. Porque as histórias repetem-se, as histórias terríveis repetem-se muito. Mas Francolino morava ali há meio século e nada na atenção dele, na comoção, estava endurecido. Creio que ele sabia como cada história é terrível à sua maneira. Que o mal começa na banalidade do mal.
Esse passeio foi o último que demos.
Esta primavera, escrevi-lhe a dizer que ia voltar para um mês de reportagens a propósito dos 50 anos da Guerra dos Seis Dias, e portanto da ocupação israelita. Cláudia Lobo, diretora da VISÃO História, acolhera com entusiasmo a ideia, disponibilizando-se para dedicar um número ao tema. Reuni-me com ela e Luís Almeida Martins, para vermos que outros textos incluir. Falei-lhes em frei Francolino para um texto sobre a representação bíblica daqueles lugares. Escrevi um email a Francolino a anunciar a minha ida próxima, a edição da revista e a possibilidade de o ter a colaborar. Estranhei não ter resposta antes de partir. Escrevi de novo já de Jerusalém. Nada. Telefonei algumas vezes para o direto dele. Nada. Até que numa manhã toquei à campainha, quando disse o nome dele me abriram o portão, e ao chegar lá em cima, atravessando aquelas árvores que ele me dera a conhecer, Carmen, a palestiniana cristã na receção, olhou para mim, eu perguntei se estava tudo bem, e ela disse que não, não estava. Chorámos juntas, ele era como um pai para ela, ela disse. Toda a gente ali o amava, ela disse. Chamou o jovem frade polaco que o estava a acompanhar, Jakub Bluj. Ele contou-me como tudo acontecera rapidamente. Era questão de muito pouco tempo. Francolino já mal conseguia ver gente, preferiu que eu não subisse. Sentei-me a escrever-lhe uma carta, que Jakub lhe levou. Nas semanas seguintes, Jakub foi-me escrevendo, poucos dias antes de eu partir Francolino foi levado para o hospital. Não estava em condições de ver ninguém.
Na noite antes de eu partir, fui ter com Jakub ao convento. Era a hora do iftar, quando o canhão do ramadão dá sinal aos muçulmanos para o fim do jejum. As ruas estavam desertas,
toda a gente tinha ido beber, comer. Havia um silêncio como só há nesse momento, antes da grande festa noturna começar. As árvores do convento estavam a ficar negras contra o crepúsculo, subi aquele caminho entre o portão e o edifício como tantas vezes fizera com Francolino. Ali morara ele quase meio século, pela primeira vez eu estava ali e não lhe falaria. Jakub contou-me da transferência para o hospital, como ele estava frágil. Voei para Lisboa no dia seguinte e nessa noite Francolino morreu.
Hoje, sábado, há uma missa no Convento de São Domingos em Lisboa, às 19h. Por vontade da família, Francolino será sepultado em Trás-os-Montes






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