Frei Bento Domingues, O.P.
1. Estou sempre a ser interrogado sobre as razões da vinda do Papa
Francisco a Fátima. A resposta também é sempre a mesma: não sei. A adivinhação
nunca me fez companhia. De qualquer modo, dentro de poucos meses, já estaremos
a interpretar as declarações do peregrino Bergoglio. Toda a gente tem, no
entanto, direito a conjecturas, filhas de desejos e receios. Há quem diga que,
em Portugal, os bispos e os padres não são conhecidos pelo seu entusiasmo com a
linha reformista do Papa Francisco e que as dioceses e paróquias se ressentem
muito desse minguado interesse. Além disso, consta que existem grupos
organizados para resistir às novidades deste argentino.
Se assim for, não estaremos a ser
muito originais. Ana Fonseca Pereira, no Público da passada segunda-feira, deu
uma boa amostra das manobras da oposição organizada ao Papa Francisco, ao mais
alto nível, e robustecidas pela eleição de D. Trump. Nesse sentido, a
peregrinação a Fátima - seguindo uma tradição que já vem de Paulo VI – teria
uma significação de grande alcance. Fátima não é o melhor símbolo do
esquerdismo católico, mas a multidão que se vai concentrar a 12 e 13 de Maio,
em Fátima, apoiada pelos grandes meios de comunicação social, não vai mostrar,
apenas, que Fátima continua a ser a maior peregrinação do Ocidente, com ecos em
todos os continentes. Não poderá esse fenómeno religioso converter-se num dos
grandes focos da nova evangelização e
de uma Igreja de saída para todas as
periferias existenciais? Fátima cheira
a povo. As denunciadas manobras clericais já apanharam o fenómeno da Cova
da Iria em movimento. Conseguiram enquadrá-lo, moldá-lo, limpá-lo das suas
expressões mais rudes e supersticiosas, mas cada peregrino é que sabe o
sofrimento e a desolação, a esperança e a graça que motivaram as promessas mais
insólitas e o seu cumprimento doloroso. Obedece a razões que excedem o registo
da razão. Cada peregrino vive Fátima à sua maneira, sem pedir licença a
ninguém. É legítimo perguntar: não poderá a ancestral cultura do sofrimento ser
iluminada pela alegria do Evangelho?
O Papa talvez não se vá contentar
apenas em fazer coro com o comovente e nostálgico cântico do adeus ou com a inesquecível procissão das velas. Segundo o Evangelho
de S. João, o Novo Testamento (NT) começou com uma festa atribulada. A grande conversão não foi a da água em
vinho, mas a de Maria que, de mãe de
Jesus, passou a ser sua discípula. Assumiu e interiorizou de tal modo o
projecto do seu filho que, junto da cruz, Ele a encarregou de cuidar dos
discípulos. Para sempre.
Não seria de estranhar que o Papa
lembrasse àquela imensa multidão: aprendam,
com Maria, a ser discípulos de Jesus e da sua missão, membros de uma Igreja de
saída. Esta seria a grande conversão mariana de Fátima.
2. Desejos são desejos. Fátima é futuro, mas também 100 anos de
história e sobre ela já existem muitos pontos de vista, muitas interpretações.
No Público (P2) do Domingo
passado, António Araújo, elaborou um dossier
– Fátima 100 anos – no qual não faz, apenas, o registo e o balanço das
obras recentemente editadas sobre um fenómeno que continua a ser intrigante. No
seu estudo, põe de lado as obras de simplismo laudatório e condenatório e
manifesta, na sua análise, que já existem condições para o exercício de um
olhar ponderado, crítico, que exerce com grande mestria.
Eu não posso ser um bom estudioso
de Fátima porque acompanhei, muito de perto, o modo como as chamadas aparições
criaram uma cidade e um apreciável volume de negócios, mas também a forma como
se tornou o centro religioso do país e não só, a ponto de, por vezes, não se
saber se o Vaticano se transferiu para Fátima ou Fátima para o Vaticano. É um
corredor que já tem história.
Poder-se-á dizer: e que mal tem
isso e como poderia ser de outra forma? O Anjo apareceu em Fátima, mas os
peregrinos não são anjos.
3. Às vezes aborrece-me, outras dá-me para rir quando se pergunta
se Fátima é milagre ou construção, embora tenha de louvar a seriedade do
trabalho de Patrícia Carvalho acerca dessa mesma questão. Porquê?
O cardeal Ratzinger repetiu, em
Fátima, a conhecida distinção entre revelação pública e privada, para não
colocar ao mesmo nível o que se passou na Cova da Iria com os acontecimentos
narrados e interpretados no NT. Fátima não pertence ao Credo Católico. Mas nunca me esqueço da observação que o filósofo
Gabriel Marcel fez, em Fátima, aos estudantes dominicanos, muito críticos das
fantasiosas narrativas das aparições feitas pelos pastorinhos: se foi Nossa
Senhora que apareceu, deve ter liberdade para se manifestar como quiser; não
tem que vos pedir conselhos.
O cristianismo é incompreensível
sem a fé na Ressurreição, isto é, que a morte não é a última palavra sobre o
destino humano. Mas nunca me pareceu que, com a morte, Jesus Cristo, a sua mãe
e os discípulos de todas as épocas, tenham ido para férias eternas. Acredito
que os que morrem são acolhidos, já neste mundo, no Deus do puro amor. S. Paulo
lembrou, em Atenas, que foi um gentio a escrever que é na divindade que vivemos,
nos movemos e existimos.
Muitos místicos confessaram as
revelações divinas que viveram. Creio que, se estivéssemos atentos ao que se
passa no interior de cada um de nós, poderíamos saber ler os sinais que Deus
nos faz e os que lhe procuramos dar ou recusar, pelas nossas obras de
misericórdia e oração.
É por esquecermos que o Reino de
Deus está dentro de nós, acolhido ou recusado, que mandamos os nossos mortos
para o mundo do esquecimento.
Ainda que nos esqueçamos deles,
eles nunca se esquecerão de nós. São eternos colaboradores da sua paixão.
A continuar. Fátima dá para muito
mais.
19.02.2017
in jornal Público
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