(Memórias de Aldeia Nova, a quase 50 anos de distância…)
Chegou o dia! Combinado o encontro pelas 04h30 ou 05h00 da madrugada, com dois ou três companheiros de viagem, da mesma aldeia, (vide http://chaosdemeda.blogspot.pt ) que já eram alunos do seminário.
Depois de uma madrugada sem memória de nenhuma outra anterior tão grande, lá começou a utilização dos meios de transporte necessários e indispensáveis para rumar a Aldeia Nova:
- dois quilómetros de burra, para levar as malas;
- nessa altura, depois de sentir os pés, e até o esqueleto, congelarem numa paragem sem qualquer protecção, chegou a “camioneta de carreira”, janelas todas fechadas, para evitar a entrada do frio, com ar bafiento, atabacado, com cheiros adversos à pacificação de estômagos e do pequeno almoço madrugador, tomado à pressa. Curvas e mais curvas, naquelas pobres estradas de outros tempos, de Mêda e Trancoso emolduradas aqui e ali com a monumentalidade dos grandes blocos de granito…. até Celorico da Beira;
- Também ali o frio era muito. Lá se fez anunciar, ainda longe, o comboio, com o seu silvo habitual; horas de viagem, com mudança na Pampilhosa, para apanharmos o comboio que vinha do Porto e nos levaria a Caxarias.
Em Caxarias, lá saímos das diversas carruagens, com malas quase maiores do que nós. Como bando de pardais, chegámos em revoada, sem nos conhecermos, adivinhando que o destino era o mesmo: Aldeia Nova!
Os mais velhos que já conheciam o local, aproveitaram para jogar os matraquilhos no café, junto à estação de Caxarias, pondo em dia as conversas de colegas que se reencontravam depois de umas férias grandes. Chegou a carrinha para levar as malas e os que couberam. Os restantes, lá fomos caminhando até que a carrinha nos apanhou e nos conduziu a Aldeia Nova:
- Ali estava o seminário, com duas partes bem distintas: a parte velha e a parte nova, resultante de uma ampliação recente. Com tanta malta a chegar no mesmo dia a agitação foi grande: distribuição de camas no dormitório, lá no último piso, junto ao telhado, com a mala debaixo de cama; Depois o jantar, com o refeitório à luz dos petromaxes, o que era uma modernice para quem vinha das Beiras, habituado a candeias e candeeiros, com pouca luz. As refeições, embora modestas, mais urbanizadas e a horas certas, diria mesmo muito melhoradas, para a maior parte dos que chegavam daqui e dali, comparadas com as refeições frugais das nossas casas. Esclarecimentos, regras, tempos livres, um dia ou dois para adaptação, até começarem as actividades escolares.
Assim se entrou na rotina das aulas, recreios, almoço, estudo, missa (que foi, se bem me lembro em diferentes horários), o jantar, o período de estudo nocturno. O campo de futebol, tinha uma actividade intensa nos recreios, a vozearia reflectia-se no pavilhão ao fundo e vice-versa. A nossa vivacidade agitava o tempo e o espaço, cultivando o espírito e as nossas imensas capacidades físicas (existe um belo texto-poema do E. Bento que me lembra sempre esta vivência: http://criarlacos-ex-dominicanos.blogspot.pt/search?q=Lembras-te? ).
A vida, frequentemente compassada pelo toque da sineta, alcandorada à entrada do refeitório, sempre ouvida com agrado, qual reflexo pavloviano. Assim se seguiram os vários anos de 1964 a 1969 (dos 10-11 aos 15). A evolução foi gradual mas determinada e determinante. No terceiro ano passávamos para o dormitório da parte nova, em comunicação e com o dormitório velho.
A evolução das próprias edificações, sempre foi preocupação da Ordem e de todos os empenhados Dominicanos (grandes homens de que não mencionarei nomes para não esquecer ninguém) que zelavam pelas nossas condições de alojamento, formação escolar, saúde espiritual e física, foram construídas, nomeadamente:
- foi construída a ala dormitório lateral ao campo de futebol, a nascente, que estreámos no quarto ou quinto ano, muito compenetrados da importância de sermos os mais velhos, pois aquela separação dos mais novos dava-nos estatuto. Tinha uma localização estratégica importante para irmos rapinar fruta à quinta a horas tardias, cuidadosamente, para não sermos apanhados. Por baixo do dormitório ficava um espaço em que se jogava quase tudo, principalmente quando o tempo estava de chuva;
- campo de andebol e voleibol;
- junto aos campos de andebol e volei, no meio de videiras e laranjeiras, junto às restantes edificações, a nascente, foram construídas a lavandaria e estruturas de apoio;
- Nasceu, em substituição de uma modesta capela, a igreja mais ampla e moderna, de traços originais, arrojados e invulgares para a época.
Ciclicamente realizavam-se os jogos florais e peças de teatro. Um dos nossos melhores passatempos eram os jogos de futebol, sempre alimentados por um campeonato interno e também promovidos com localidades limítrofes. Lembro-me que a Urqueira era um dos dignos adversários. Lembro-me também do nosso grande, muito grande, guarda-redes, o açoreano José Maria.
Ainda passei pela enfermaria uma vez, com uma gripe terrível, com assistência cuidadosa e maternal das irmãs dominicanas.
Ainda guardo reminiscências do sabor do sorgo e memória da única vez em que a régua de cinco furos ( “menina dos cinco olhos” ) assentou repetidamente, por três vezes na minha mão direita, e de não sei quantos, por iniciativa do Pe Rogério. Mas, o que me deixou uma memória mais profunda, mais do que a própria régua, foi a tomada do nauseabundo óleo de fígado de bacalhau, para nosso bem, indispensável… não raramente, lá ia tudo às malvas.
Os passeios: aos moinhos do vento, onde cruzávamos espadas improvisadas, imitando os mosqueteiros e martirizando, não raramente as mãos e especialmente o dedos; as idas às piscinas, do Olival e de uma quinta a caminho de Ourém (cujo nome não recordo), as epopeicas aventuras de rumar a pé à nascente do rio Nabão; o pic-nic feito no Castelo de Ourém; a caminhada até Fátima no dia da visita do Papa Paulo VI. Ainda tenho gravadas na memória as reclamações dos meus pés essencialmente aquando das aventuras de ida à nascente do Nabão e a Fátima, a pé, as bolhas nos pés e os dois ou três dias de muitas dores musculares.
Os exames do 5º ano foram realizados no Liceu de Leiria, em geral com muito sucesso e boas notas em relação aos alunos do próprio Liceu. Assim ficou aferida, muito positivamente, a qualidade do nosso ensino, e acautelada para todos, a partir de então, a ligação ao ensino público ou privado.
Foram tempos de uma juventude intensa, que hoje avalio como muito mais feliz do que na altura me parecia. Criaram-se laços de amizade para a vida inteira. Com professores exigentes, esforçados, uns internos outros externos (…o Pe Chico, o prof. Sobral, o Capitão Guimarães e o Tenente Campante, de quem já contei um episódio em tempos, de quando o encontrei cerca de trinta anos mais tarde, em Lisboa “DOS MESTRES (I) – O TENENTE CAMPANTE” , aqui publicado em Fev2009,vide http://www.criarlacos-ex-dominicanos.blogspot.pt/2009/02/dos-mestres-i-o-tenente-campante.html ).
Foi esta Aldeia Nova que eu conheci e de cuja formação tanto beneficiei. Ali, conscientemente, se formavam homens. As histórias daqueles anos são infindáveis, principalmente pela gratidão e amizade que guardarei pra sempre daquele tempo e daquele lugar, pela positiva.
Por culpa do Eduardo Bento que reacendeu a nossa nostalgia e plenitude dominicana… e do Nelson que “exige” mais produtividade, aqui fica o meu testemunho dos tempos idos, para memória das pessoas e das coisas.
Antero