terça-feira, 14 de julho de 2009

TESTAMENTO DE UM PROFESSOR


Neste blogue já foram apresentados testamentos de mestres que marcaram a sua passagem pela sabedoria, pela capacidade didáctica e pela autenticidade. Diz o ditado: “diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és” e eu acrescento que para nos conhecermos importa conhecer as nossas influências, entre elas o que alguns professores nos legaram. Pois bem, aqui vos deixo o testemunho de um professor canadiano, que leccionou Ética e Sociologia no ano lectivo de 1964/65. O texto reflecte uma pessoa que não domina a nossa língua mas que fez questão em falar e fornecer aos alunos textos em português, desde o início do ano lectivo, após quatro meses de estadia em Portugal.

A. Alexandrino


Encontrou-se nos papéis de um filósofo, o seguinte testamento:

“Queridos discípulos
Procurai ser cada vez mais livres e mais conscientes. Para isso procurai não deixar que as motivações inconscientes prevaleçam sobre as conscientes. Desconfiai dos vossos mecanismos de defesa, não vos deixeis levar por mitos, seja qual for a sua beleza.
Ao propordes uma esperança aos homens, tende cuidado para não os alienar e não lhes propor um mito. Proponde a cada um a esperança de que é capaz, sem desprezar nem subestimar as suas capacidades de progresso.
Custe o que custar, ficai abertos aos outros, às suas preocupações, angústias, entusiasmos, ficai abertos aos factos, aos acontecimentos, à realidade, aceitando continuamente de pôr em questão as vossas sínteses.
Sede acolhedores com as pessoas e procurai compreender antes de ser compreendidos, aceitar antes de ser aceites, amar antes de ser amados. Lembrai-vos que homens para impor ideias e suas maneiras de ver, há muitos, mas que homens para ouvir e acolher há poucos.
Que esse acolhimento não seja sinónimo de indiferença. Não hesiteis em inquietar os opulentos, em protestar contra a injustiça, em defender os direitos do homem. Mas que o principal argumento das vossas intervenções seja sempre a vossa própria maneira de agir.
Vede em qualquer homem um amigo possível e que não venham da vossa parte os obstáculos que impedem as amizades possíveis de se tornar amizades actuais.
Perante todos, que a vossa preocupação básica seja torná-los mais livres, mais capazes de autênticas relações pessoais e mais disponíveis à acção de Deus.
Em todas as circunstâncias, sede os representantes e os defensores dos valores graças aos quais a vida humana merece ser vivida: a verdade, a beleza, o amor, e que a necessidade de eficácia e de organização nunca vos leve a aceitar e a preconizar a mentira a fealdade e o ódio.
Lembrai-vos que, embora o agir de cada um de nós pareça insignificante, é por esse agir aparentemente insignificante, que se faz a hominização do mundo e a amorização da humanidade.”
Faço meu este testamento.

Fátima, Junho de 1965
Pierre Pelletier, O.P.

11 comentários:

Isidro disse...

(1) O nome do "frei Pierre Pelletier" está na minha memória desde o ano que entrei em Aldeia-Nova, não porque o conhecesse, ou alguma vez tenha conhecido, mas porque me foi referido por um amigo como uma prova de que eu tinha acabado de entrar num estabelecimento mais avançado que os congéneres. Com verdade ou sem ela, caiu-me bem e permaneceu como memória acessível.

Por isso, fui aos perdidos e achados do meu computador procurar uns restos de texto sobre que foi irreversivelmente perdida a fonte. Ao fazer mais um esforço para lhe localizar algumas referências encontrei, a propósito do "frei Pierre Pelletier", que não sei se é o referido pelo Alexandrino, o seguinte:

(2) "...Tudo a querer ficar bem nos registos da estória ou da história?

Estes humanos dizem que a virtude está no meio, mas não me parece. A virtude é muitas vezes não fazer nada ou deixar fazer.

Estudar é sempre uma solução boa. Pois, é verdade. Estar preparado, dizia frei Pierre Pelletier. Lembram-se?

Preparemo-nos então para não sermos os das figuras tristes e acéfalas. Se quiserem trazer depressa o azeite à superfície, não conseguirão.

Se quiserem tapar o sol com a peneira porque haveriam de conseguir? Porque haveria de ser diferente com a verdade ou com o erro?"

(3) O que sempre repõe a questão da ética e não só, com ou sem "Caritas in Veritas".

(4) Em desagravo do Ferraz que, noutro ponto, sabiamente questionou a administração dos meus pseudo-comprimidos sobre a referida Encíclica, fazendo parecer que apenas duvidava do prazo de validade das drageias antes publicitadas pelo Alexandrino, preparei o seguinte "novelo" que cada um desenrolará segundo a sua conveniência.

(5) Há 100 anos, quando só tinha 3 cursos de pós-graduação (Medicina, Direito e Teologia) a "grande" Universidade de Harvard, nos EUA, abriu um curso para formar gestores socialmente responsáveis, dando-lhes "status" imediato, ao voltá-los para os "stakeholders" (todos os interessados) e não só para os "stockholders" (accionistas e empresários).

Esta matéria nunca mais deixou de estar na ordem do dia. Ter ética passou a ser uma boa justificação para melhorar a remuneração ou justificar a respectiva existência.

Mesmo assim, a geração dos "nossos" avós, a dos "nossos" pais e a "nossa" tiveram uma vida difícil e nem o papa parece ter-se apercebido da sua existência, o "ingrato", uma vez que, na "Caritas et Veritate", parece advogar a criação de semelhantes intérpretes ou a elevação do seu nível.

Talvez prefira mesmo que eles, gestores profissionais, façam uma peregrinação a Roma para lhe explicarem que existem e estão ali, uma vez que parece propugnar a criação de novos protagonistas da ética e da moral, assim procurando compensar o declínio da teologia, talvez provocado por teólogos que sempre vão dizendo que, coitados, os cientistas, os políticos e o povo não os entendem, por motivo da sua falta de fé.

Que pode valer para eles a verdade ("veritas") sob tal superioridade do seu Dom?

Calcula-se que a "Caritas in Veritate", doutrina social de um papa (Bento XVI) terá, ao todo, 10 a 15 páginas verdadeiramente novas em relação às suas antecedentes nesta área. Não é pouco, depois de se fazer a separação do bem escrito noticiário global, ainda que o mesmo tenha melhor qualidade em outros suportes laicos e religiosos, publicados nos últimos 100 anos.

Em termos de ética dos gestores, aquela encíclica chega a Harvard e ao Mundo com um século de atraso. Salvo o devido respeito por certo papa velhinho que esteve durante poucos anos no comando, mais vale tarde que nunca, 100 anos depois.

(6) E se um Papa tivesse produzido um texto estratégico como este no tempo de Lutero e Calvin? - Julga-se que Portugal, pelo menos, seria muito diferente do que é, se tal Papa tivesse sobrevivido (nada de insinuações sobre a actual dimensão da verdadeira audiência da presente encíclica...)

(7) E amanhã? - É um dia novo.

Anónimo disse...

Olá Alexandrino.Convivi um pouco com o Padre Pelletier, pois dez meses de noviciado não deram para mais.Mas os ensinamentos dele perduraram nos seus alunos, como tu. E este texto, por ele indicado,mostra bem a pessoa que ele era, o que também era apanágio de muitos outros dominicanos.
Um abraço.
Neves de Carvalho

Anónimo disse...

Salvé! Neves de Carvalho, voltaste.
É um dia bom para todos nós.
EB

nelson disse...

Há quantas luas, Sr. Engº Neves de Carvalho!... Foi tempo demais sem te sentir no blogue.
Abraço

Antero disse...

Não conheci o tão falado mestre Pierre Pelletier, mas ao aderir a um texto destes, manifesta um enquadramento individual e universal ainda hoje admirável. As regras de ouro permanecem de ouro...
Sorte a dos "pingoins" que passaram por tais mestres.
Mas não só: Louvo os discípulos que honram os seus mestres com tais citações e memórias.

Antero Monteiro

A. Silva disse...

Lindo texto, Alexandrino e cheio de sabedoria. Verdade, beleza e amor, valores fundamentais para uma vida.
Ainda vivi um ano lectivo na mesma casa que o Pierre, em 1959-60, estava ele no 4º de teologia e eu chegava ao Canadá, para o 2º, juntamente com o Mateus. Ao procurar na Internet informação sobre o Jean-Paul Audet (esse tal da exegese do Novo Testamento), encontrei um artigo da enciclopédia sobre o professor, muito bom. O Pierre Pelletier era um homem pequeno (ao contrário do outro Pelletier, o grande), por quem ninguém dava nada, passava despercebido mas, já no estudantado, cheio de uma sabedoria profunda. Um abraço. Toninho

Armando disse...

Relendo agora a sebenta da cadeira dada pelo frei Pierre Pelletier, recordo que ao longo do curso é feito um cotejo entre as teorias tomista, existencialista e marxista. Os alunos foram encaminhados para a leitura de Sartre, Camus, E. Mounier, Maritain, alguns textos de Marx e Engels, Kierkegaard, Sedas Nunes, entre outros.
Permitam-me que cite uma passagem das conclusões, que sendo talvez um pouco utópicas, são arrojadas para a época:
“Sejam quais forem as suas opções no que diz respeito ao seu futuro, os homens de hoje podem, julgo eu, pôr-se de acordo sobre certos agires concretos. Penso, com efeito, que todos nós – existencialistas, marxistas, tomistas – podemos trabalhar juntos para que o homem seja mais consciente e mais livre, para que o homem sendo mais consciente seja mais livre e, sendo mais livre seja mais consciente. Indo ainda mais longe, creio que todos nós podemos colaborar para que aumente a comunhão entre os homens, para que a socialização actual do homem seja uma socialização personalizante, no amor.”
A. Alexandrino

Isidro disse...

Antero e quem mais se quizer rever,

Não exageres o valor das oportunidades dos que ficaram durante mais algum tempo, nem menosprezes o que, por esse motivo, também perderam, certamente, ou deixaram de ganhar e, já de fora, outros adquiriram mais cedo, como tu.

Estando bem à vontade para me referir a uns e a outros, com as devidas cautelas, tenho-o feito a conta-gotas, de modo a não entrar em pontos mais sensíveis para ninguém. Sem que de tanto houvesse necessidade, alguns têm-no agradecido com toda a clareza.

Bem vês que, apesar do manifesto esforço que aqui produzimos, alguns leitores nunca mostraram a sua caneta, embora não se encontrem escondidos. Não são eles que estão a perder. São os que, assim como assim, não podem lê-los.

Depois desta introdução, vou situar-te melhor, ainda que sobre algumas repetições do que já aqui escrevi. Entre 1969 e 1971, em Fátima, período em que já não participaste, tivemos uma vida digna de ser invejada, como liceais internos que viviam num convento verdadeiro, com um silêncio genuíno, q.b., a par de períodos muito comunicativos que, uma vez aprendidos, nunca mais são esquecidos (como um de nós foi expulso no Natal de 1969 é que eu não percebi nesse tempo...).

Agora passo a notar que, antes deste grupo, quem ia para Fátima entrava imediatamente no Noviciado, a seguir ao então 5.º ano o que, como já foi muito bem explicado pelo Ferraz, foi diferido para 2 anos mais tarde.

Por exemplo, o último moicano do nosso ano foi o Guerra - seguiu para o Noviciado em Espanha a seguir ao 7.º ano e, de regresso, fez o mesmo que eu e outros com um ano de antecedência (tu, há 3 anos) enquanto no tempo do João de Melo, do Ferraz, do Paulo e do Mendes, vestiam-se de branco, como noviços, logo que concluíam o 5.º ano.

Ou seja, os anteriores à minha geração, tomavam um contacto bastante diferente com a vida conventual, inclusive em termos do plano de estudos. Disso já aqui deram conta, com bastante exuberância, o Fernando, o Ferraz, o Alexandrino e outros, como o Toninho que, por razões dele, solta menos que o que pode.

Até o Celestino, que só lá esteve durante um trimestre, ficou tocado a ponto de querer fazer crer que valeram por 3 anos. Nós respeitamos isso.

Creio que, um dia, escreverei um pouco mais a preceito e mais à vista, sobre isto, mas só quando tiver a certeza que não estou a roubar memórias de ninguém.

Anónimo disse...

Armando:
Que bom teres atingido a reforma para ires á tua "assoteia" buscar o fr. Pedro Pelletier (o pequeno) e, como muito bem recorda o Toninho,sempre apagado e profundo.
Quem nos sabe dar novas deste Mestre e qual os caminhos percorridos?
Parabens por toda essa boa memória e justa homenagem.
J.Moreno

Armando disse...

"Noblesse oblige"
A minha memória reside nos na conservação dos textos do frei Pedro Pelletier (como ele gostava de ser tratado em Portugal) graças a uma esmerada encadernação que o J. Moreno teve a amabilidade de me oferecer. Diverte-me rever as notas e observações "a latere" que me remetem para o mau raciocínio aos 17/18 anos e o ambiente que se vivia no estudantado de então.
A. Alexandrino

A.B. disse...

Prezados comensais deste Blog,

De ano a ano aproveito para descer ao nível do mar e subir às montanhas.
Próximo do mar ou nas mais altas montanhas a fé atinge os melhores níveis...
Experimentem!
Se não me virem por aqui no próximo mês não se admirem.
Mantenham a chama acesa.


F.r. da Árera Benta